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A necessidade do realismo psicológico
Leia, a seguir, entrevista com o sociólogo inglês Michael
Rustin. (André Singer)
O sr. afirma que algumas sociedades podem ser entendidas como "limítrofes". O que quer dizer isso?
É uma idéia preliminar. O conceito de personalidade
limítrofe, como uma personalidade capaz de ter um
funcionamento intelectual e social normal, mas não
verdadeiros sentimentos ou relacionamentos, está
bem estabelecido na escola britânica de psicanálise.
Em pesquisas que eu e meus alunos temos feito,
encontramos instituições responsáveis pelo cuidado
de crianças carentes que têm equipes muito bem-intencionadas, mas que não conseguem perceber e fixar em suas mentes o que está ocorrendo com as
crianças. Uma explicação para isso é que essas instituições estavam se protegendo, psiquicamente, do
sofrimento de ver os danos que essas crianças haviam sofrido. Em Montenegro, estudamos um orfanato muito pobre. A equipe, embora não fosse grosseira com as crianças, estava mais preocupada consigo mesma. Assim a instituição se defendia da dor
que circulava em torno dela.
Talvez sociedades que emergem de situações de
conflito muito arraigadas tenham dificuldade em
olhar para seus próprios problemas. Quando se está
em uma situação de guerra, tudo é simples. Trata-se
de saber o que fazer com o inimigo. Mas, quando se
tem de lidar com os problemas internos, pode ocorrer de a sociedade fechar os olhos para as dificuldades. Eu notei, na África do Sul, que os ricos vivem em
total reclusão em relação a todo o resto e em um estado de grande ansiedade. Mas talvez a ansiedade não
diga respeito apenas ao medo de ser roubado, mas
de contemplar o horror em volta.
O sr. tem dito que uma estrutura psíquica "esquizóide-paranóide" levou o Ocidente, depois da Guerra Fria, a
"inventar" um novo inimigo, que acabou por ser Saddam
Hussein. Pode explicar esse ponto de vista?
A idéia original é da psicanalista Hannah Segal. Ela
chamou a atenção para os desejos inconscientes de
destruição e mostrou que, depois que a Guerra Fria
terminou, seria difícil desmontar essa estrutura porque as pessoas tinham um investimento emocional
colocado no ódio e na destruição. Quando os russos
deixaram de ser a grande ameaça, teria que surgir
um novo inimigo para ocupar esse lugar inconsciente. O interessante é que ela, com essa análise, antecipou a Guerra do Golfo. Algo semelhante ocorre agora com a guerra contra as drogas, na Colômbia.
Estaremos, então, condenados a isso para sempre?
Não. Precisamos nos perguntar que estruturas sociais e ideológicas geram uma política de tipo paranóide. A Europa é hoje menos paranóica, em seu
sentimento político, do que os EUA. Isso ocorre porque as populações européias recebem mais segurança e apoio das suas sociedades, que são mais tradicionais, têm menos mobilidade e instabilidade do
que nos EUA. Os EUA são uma sociedade muito
competitiva, na qual há pouco apoio para os de menos riqueza e, além disso, racialmente dividida.
Os EUA continuamente reproduzem condições de
insegurança e pobreza em razão do grande fluxo de
imigrantes. Eles combinam, no mesmo espaço, uma
sociedade de Terceiro Mundo com outra que é a
mais avançada do planeta. Isso causa um alto grau
de ansiedade pública.
Para evitar estruturas paranóides é preciso ter igualdade
social, então?
Eu diria que se pode cuidar das pessoas sem dizer
que elas precisam ser iguais. Algumas sociedades
conseguem dar um reconhecimento às pessoas, suficiente para que elas sintam que a ordem social cuida
delas. Claro que há evidências de que, quanto mais
igualitária é a sociedade, menos paranóide é a estrutura política. No entanto para efeitos políticos práticos eu diria que transmitir às pessoas certa confiança
na ordem social é mais importante do que criar uma
igualdade entre todos.
O sucesso de programas de TV do tipo "No Limite" são expressão de relações sociais paranóides?
Esses programas são uma expressão simbólica do
aumento da competitividade na sociedade. Reproduzem a experiência de lutar por um lugar e ser aceito ou rejeitado. Mas, além disso, convidam o espectador a assumir o papel do agressor, daquele que escolhe e não do que é escolhido. Faz parte de um processo, que começa com o próprio Freud, em que nós
somos chamados a conhecer melhor nossa própria
destrutividade. Até aí tudo bem, mas, nos EUA, um
desses programas acabou por ocasionar um assassinato real. Há um risco em aceitar a agressão como algo psicológica e socialmente normal.
De fato, desde a publicação do "Mal-Estar na Civilização"
por Freud, em 1930, a repressão diminuiu muito. Isso foi
bom?
De modo geral, as mudanças foram para melhor. A
diminuição da repressão é boa. O problema é o estímulo incessante dos apetites pela sociedade de consumo e determinados esforços para despertar esses
apetites por meio de drogas e pornografia. Isso cria
problemas. Numa sociedade competitiva, na qual as
pessoas são encorajadas a satisfazerem os seus desejos, algumas não conseguirão. Vão sofrer a dor e o
ressentimento de não conseguirem.
Trata-se de uma sociedade que tantaliza as pessoas, que lhes oferece ideais de como as coisas deveriam ou poderiam ser, em termos de sua vida sexual,
da beleza. Mas as pessoas que aparecem nas revistas
de moda não são reais. São artefatos. A diminuição
da repressão, portanto, ocasiona alguns problemas
que nós precisamos reconhecer. A solução não é voltar para uma sociedade na qual ninguém tem nada e
não pode pensar nada. Mas a estrutura de relações
nas quais se dá a contenção dos indivíduos e o "self"
dos indivíduos se desenvolve, a saber, o tipo de família, a qualidade da escola, a maneira pela qual as pessoas são tratadas pelos empregadores, a distribuição
de bens e serviços -porque se a qualidade material
de vida for alta, as pessoas se sentirão gratificadas-,
tudo precisa ser levado em conta. Em todo caso, a
qualidade do ambiente em que se vive hoje é melhor.
Há pelo menos uma melhora estética do ambiente.
Qual a importância da família?
A família é a incubadora do indivíduo. A importância da família é que ela o reconhece independentemente das suas capacidades. É um desses "settings"
que lhe dão um reconhecimento incondicional. Nela, as pessoas se preocupam umas com as outras porque existe uma ligação entre elas, não por interesse.
Claro que a família tradicional era intolerante, mas
não creio que haja nenhum substituto para a contenção das necessidades emocionais dos indivíduos. A
nova família é mais aberta e complexa. As pessoas
pertencerão a mais de uma família durante as suas
vidas. Mas deveria haver um reconhecimento social
da importância da família. O sistema de saúde, por
exemplo, deveria apoiá-la e não substituí-la.
O sr. tenta juntar a teoria socialista à teoria kleiniana.
Por quê?
Tento introduzir no discurso socialista alguns elementos realistas sobre a natureza humana. Você tem
que levar em conta a propensão a odiar e a invejar
quando elabora um programa de desenvolvimento
social. Assim como é preciso levar em conta a diferença geracional e a necessidade de haver relações de
autoridade, há alguns "fatos da vida" e da psicologia
que os socialistas têm que levar em conta. Creio que
os movimentos tendem a se auto-idealizar.
Se tivermos uma noção mais clara do que os seres
humanos precisam e de como eles funcionam, seremos melhores ao desenhar programas e instituições
sociais que sejam bons para as pessoas. Precisamos
ter realismo psicológico.
Qual a seu ver é o papel social da psicanálise?
Há vários serviços sociais que melhoram muito se os
trabalhadores envolvidos neles conhecem as necessidades emocionais. Por exemplo, muitas mães sofrem de depressão após o parto. Se você lhes dá o
apoio adequado, elas conseguem se recuperar e se
tornam "mães boas o suficiente", como diz Winnicott. Se você só cuida dos aspectos físicos, a relação
entre mãe e filho pode ficar muito prejudicada.
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