São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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+ psicanálise
Debilidade do superego social e liberação da libido são contrapartes da globalização
Destrutividad e civilização

Michael Rustin
especial para a Folha

O Mal-Estar na Civilização" de Freud, publicado em 1930, discutiu a importância dos instintos libidinosos e destrutivos como elementos básicos da psique humana. "Cheguei à conclusão de que, assim como Eros, havia um instinto de morte", escreveu Freud. Isso se torna mais claramente compreensível para nós "quando uma parte do instinto é desviada para o mundo exterior e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade". Foram Melanie Klein e seus colegas os que mais contribuíram para desenvolver essa visão na psicanálise. Freud propôs que a sociedade adotasse uma abordagem mais realista dos instintos destrutivos ou de morte e disse que eles causariam menos danos à civilização se fossem mais bem compreendidos. Mas essa admissão se mostrou dolorosa e difícil. Por um lado, persistem a negação e a repressão maciças da função desses impulsos na vida humana e nas sociedades. A psicanalista kleiniana britânica Hanna Segal conduziu uma rara intervenção política de psicanalistas nos anos 80, com o grupo chamado Psicanalistas contra a Guerra Nuclear, quando argumentou que a corrida pelas armas nucleares só poderia ser compreendida se admitíssemos que expressava os desejos inconscientes generalizados de destruição apocalíptica, embora estes fossem invariavelmente mascarados pela insistência de ambos os lados em suas intenções exclusivamente pacíficas e amorosas ("Paz é a nossa profissão" era o slogan inscrito nos bombardeiros estratégicos dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.)

Um novo inimigo
De modo semelhante, talvez, a infindável repetição de filmes na televisão com os rastros flamejantes de foguetes ou jatos explodindo traem um "prazer" inconsciente desses espetáculos, embora misturados a sentimentos mais compassivos baseados na identificação com as vítimas, vistas como pessoas iguais a nós. Segal pôde prever com sucesso que o fim da Guerra Fria e o virtual desaparecimento da ameaça do antigo inimigo comunista provocariam a crise das estruturas de sentimento paranóides-esquizóides predominantes, com sua divisão entre o bem e o mal. Ela previu que nessa situação pós-Guerra Fria seria preciso encontrar um novo inimigo, e assim foi, como ela mais tarde indicou, na figura de Saddam Hussein e do Iraque, que a Otan (aliança militar ocidental) continua bombardeando sob a alegação de que o Iraque ainda detém "armas de destruição maciça" (pelas quais nós mesmos não esperamos ser bombardeados). Uma dinâmica psíquica semelhante levou à construção de Milosevic como inimigo na Guerra de Kosovo, embora certamente houvesse outras justificativas relevantes para a intervenção. E também provavelmente no ex-lado comunista da Guerra Fria, na guerra da Tchetchênia. E, quando outros países armados não fornecem objetos convenientes de medo e ódio, outros tipos de guerra mais metafóricos podem ser construídos, como na "guerra antidrogas" atualmente desencadeada pelos Estados Unidos na Colômbia. As defesas contra a ameaça de asteróides espaciais provavelmente têm a mesma função psíquica, sejam quais forem suas justificativas materiais. Outra forma de negação da destrutividade é inerente à ideologia dominante, que insiste no caráter desejável, ou pelo menos na realidade incontestável, da concorrência global. Qual é afinal a estrutura de motivação que sustenta os grandes capitães da indústria que conduzem esse processo? O economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) descreveu com perspicácia o processo de inovação nas economias capitalistas como algo em que "vendavais de destruição criativa" provocaram constantes transformações no sistema de produção. O desejo motivador desse sistema certamente inclui a vontade de triunfar sobre os concorrentes, de reduzir sua participação no mercado, em última instância de expulsá-los do mercado ou subordiná-los. Bill Gates, cujo patrimônio líquido declarado seria igual ao dos 40% mais pobres da população americana, é portanto um herói representativo de nosso tempo, sendo o mercado global um contexto para guerras e conflitos por outros meios que não o exercício da violência. Não se trata, é claro, de negar a possibilidade das consequências benéficas dos mercados globais para os seres humanos. Os defensores do capitalismo gostam de chamar a atenção para a observação de Adam Smith (1723-1790) de que os indivíduos que perseguem seus próprios interesses num mercado adequadamente competitivo, em que se evitam as práticas monopolistas, realizam mais benefícios para o público do que fariam empresários ostensivamente altruístas. Mas existe certa relutância em admitir esses desejos motivadores de triunfar e derrotar os outros. O efeito de nossa tendência a "não enxergar" essa realidade psicológica é dificultar o reconhecimento de que é preciso conter e equilibrar essas motivações destrutivas com as que tendem a gerar integração e inclusão.

Confusão entre o simbólico e o real
Mas, se de um lado existe a negação geral do reconhecimento do poder dos instintos destrutivos como forças motivadoras nas sociedades contemporâneas, a revolução psicanalítica na compreensão humana teve um efeito menos esperado. Tornou-se possível incorporar o conhecimento da "repressão" e das consequências supostamente saudáveis da maior consciência dos motivos, incluindo motivos antes inconscientes, mas de maneiras perversas. A admissão e expressão dos desejos, sejam quais forem, é construída nessa linha de pensamento como uma forma justificada de autoconhecimento e auto-realização. A moralidade e o superego social são definidos como parte de um sistema de repressão e não como limites necessários ao impulso e ao desejo.
A televisão britânica apresentou nos últimos meses um programa extremamente popular chamado "Big Brother" (Grande Irmão), que filmou em estilo de documentário instantâneo uma residência temporária de pessoas que não se conheciam, criada com o objetivo de entretenimento televisivo. O jogo entre os membros voluntários da residência exige que eles votem cada semana para expulsar um deles. A casa não tem comunicação com o mundo exterior durante as dez semanas de duração do programa, e seus habitantes parecem ter uma compreensível dificuldade de combater o tédio em seu isolamento relativo.
Os moradores tinham de indicar por semana dois candidatos à rejeição, e o público espectador era convidado a escolher por voto qual dos dois seria expulso da casa. O último sobrevivente, que conseguisse permanecer na casa, ganharia um prêmio de 70 mil libras (cerca de R$ 190 mil). A sensação nas primeiras semanas do programa foi o sucesso de um "jogador" totalmente maquiavélico que manipulava a expulsão de seus rivais com duplicidades que os telespectadores podiam observar, mas que os membros da casa não identificavam. Embora essa situação criada seja relativamente inofensiva e de intensidade muito menor que os conflitos exibidos nos filmes e na televisão, o fato de confundir os limites entre ficção e realidade e o fascínio do público pelo conflito pessoal apresentado têm certa importância. O programa de Jerry Springer na televisão americana levanta questões semelhantes, de forma mais brutal. Nele, "pessoas reais" são convidadas a participar de um programa de televisão em que confrontam pessoas que conhecem -em geral intimamente- com "verdades domésticas" até então não reveladas, sob o olhar público. Os destinatários dessa informação indesejada (embora não possa ser totalmente indesejada, já que eles participam do programa voluntariamente) são então mostrados "ao vivo" reagindo ao que foi dito a seu respeito. Há informações de que esse programa já teve como consequência direta um assassinato na vida real, e portanto seu futuro foi questionado. Programas desse tipo levantam questões interessantes sobre a confusão dos limites entre o simbólico e o real na era da televisão. De fato, a excitação e o "escândalo" desses dois programas decorrem do fato de romperem deliberadamente esses limites. Em representações admitidamente fictícias, os atos maliciosos como os apresentados nesses programas são totalmente normais, é claro. Vilões maquiavélicos (Iago, Ricardo 3º) e cenas de acusações declaradas são pilares da ficção e do drama que de outro modo seriam quase impossíveis. Mas a característica central dessas representações simbólicas para nós é que elas ocorrem num contexto em que suas consequências perniciosas só precisam ser lamentadas simbolicamente. Pode-se dizer que são sublimações, e não realizações, de nossos sentimentos destrutivos. A emoção especial provocada por esses programas de TV é que o mal e os danos cometidos são sabidamente reais, embora em situações criadas. Uma comparação mais séria pode ser feita com o papel atual da pena de morte na política e na cultura dos Estados Unidos. São atos reais de total brutalidade, efetuados em semipúblico e que, devido à presença frequente e vocal de parentes das vítimas da pessoa condenada, se transformam em exibições de vingança ritual. Foi noticiado recentemente que um novo tipo de brinquedo -um modelo funcional de uma cadeira elétrica, com vítima e efeitos sonoros- está à venda nos Estados Unidos, como um brinquedo comprado por ou dado para crianças. Nesses fenômenos existe portanto um novo tipo de "dessublimação repressiva", agora não apenas dos instintos libidinosos, mas das forças do ódio e do próprio instinto de morte. O ideal de auto-realização, de cada indivíduo ter o direito moral de buscar seus próprios objetivos e sua realização, não importa quais sejam, hoje foi ampliado para incluir as emoções mais destrutivas e perversas dos seres humanos.

Ideologia da comunicação irrestrita
O direito à livre expressão, garantido pela Constituição dos Estados Unidos, que passou a personificar essa ideologia da comunicação irrestrita, hoje está causando sérios problemas na regulamentação da World Wide Web, cujo tráfego está em grande parte na comercialização da pornografia, facilmente acessível por meio dos mecanismos de busca. A Web também conteria instruções para a fabricação de bombas e outros instrumentos de terror. Temo que a "cultura terapêutica", e portanto Freud em última instância, tenha de certa forma contribuído involuntariamente para essa situação, ao legitimar a idéia de que uma possível fonte de saúde psíquica seja o autoconhecimento, a revelação dos impulsos reprimidos e fantasias da mente.
Uma pergunta a se fazer é: quais são os "fatos sociais" que geraram essa aceitação da normalidade e aceitabilidade do instinto de morte e dessas compulsões para lhes dar expressão pública? Parece que as ansiedades geradas pela extrema competição individual, especialmente quando não há uma base de apoio social, e a falta de solidariedade social são parte da explicação. Existe um contraste marcante no que diz respeito aos níveis admitidos de violência entre as sociedades ocidentais européias e os Estados Unidos, nesse sentido. Os níveis mais altos de violência interpessoal são encontrados nas densas metrópoles do mundo em desenvolvimento (incluindo, acredito, algumas cidades do Brasil), cujas características algumas cidades dos Estados Unidos reproduzem em certo grau.
Outro fator é a potência ou falta dela nas estruturas tradicionais de autoridade social que funcionam como mantenedoras de um superego social. É paradoxal que uma sociedade como a dos Estados Unidos, altamente desigual na distribuição dos bens econômicos, permaneça ardentemente igualitária e individualista em suas atitudes diante de outras formas de autoridade cultural e social. Isso continua contrastando com as estruturas sociais da maior parte da Europa Ocidental, onde as hierarquias culturais e sociais mantêm uma autoridade significativa.
Limitações mais amplas continuam em vigor, tanto em questões de política e convenção tácita sobre as formas de expressão pública como em relação às funções da comunicação de massa. Resta ver até onde essas diferenças entre sociedades nas quais há poderes e valores além dos do mercado e formações sociais comercializadas e "populistas" (como a dos EUA) sobreviverão ao processo de globalização, que é em grande parte, é claro, o instrumento de americanização do mundo.
Podemos dizer que esse processo está acarretando, como um de seus efeitos colaterais, o enfraquecimento do superego social, não apenas em relação à expressão dos impulsos e desejos libidinosos, mas também em relação à expressão das forças psíquicas destrutivas.


Michael Rustin é diretor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Leste de Londres e autor de, entre outros, "A Boa Sociedade e o Mundo Interno" (Imago). O texto acima é uma versão de sua conferência na mostra "Conflito e Cultura".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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