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O silogismo da corrupção
Jacques Rancière
Todos corruptos!", costumávamos
dizer quando sobrevinha a notícia
de maquinações fraudulentas de
tal ou qual governante. Mas todas
as coisas de nosso tempo tendem a se sofisticar e se elevar ao segundo ou terceiro
graus. Quando o presidente dos Estados
Unidos da América tem de explicar, com
um quadrado vermelho na tela, o detalhe
de suas relações com a estagiária ou
quando o antigo tesoureiro do partido
do presidente francês põe em questão o
sistema de tráfico de influências reinante
na prefeitura de Paris na época em que o
dito presidente era prefeito, ninguém vê
mais, nas ruas das respectivas capitais,
manifestantes se acotovelarem para vociferar contra os governos corruptos. Vemos, isso sim, muitos homens graves,
com frequência os próprios governantes
ou ex-governantes, manifestarem sua
consternação.
Política assassinada
Que outro
propósito têm essas revelações, dizem
eles, senão dar ocasião a que os inimigos
do governo republicano gritem: "Todos
corruptos!"? É a política, dizem ainda,
que resulta assassinada. Quem ainda irá
querer governar ante a fúria dos juízes e a
da mídia? A "república dos juízes" e o
"linchamento midiático" desencorajam
a boa vontade daqueles que assumem os
encargos da vida pública. E desacreditam a própria política. Na verdade, já é
hora de lançar um véu sobre todas essas
torpezas e conferir brio à política.
Evidentemente, esses argumentos pro
domo prestam-se a alguma suspeita.
Mas ao lado dos políticos, que são um
pouco interessados demais no assunto,
há os filósofos, desinteressados por definição, com laivos de Aristóteles e do bem
comum, de Locke e do Estado de Direito,
de Kant e do Iluminismo, de Hannah
Arendt e da glória da vida pública. A
França, em especial, produz uma incrível
quantidade deles, boa parte da qual circula entre as esferas governamentais e o
mundo midiático. E estes alçam a voz e
dispõem-se a remontar à raiz do mal.
Há, nos dizem eles, um tempo da política, que impõe enxergar longe e agir para o futuro. Como preservá-lo se ele está
submetido ao tempo da mídia, que só vive do presente e da obrigação de vender
o novo a cada dia? Há uma vida pública
que deve ser preservada das torpezas da
vida privada, e uma vida privada que deve ser subtraída ao olhar público. As instituições da vida comum repousam num
simbolismo que não é para ser tocado. A
política funda-se na distância. Ela é
ameaçada de morte quando se faz menção de submetê-la ao reino midiático da
visibilidade e da publicidade integrais. O
grande inimigo da política é a idéia da
transparência.
Como nossos filósofos são imparciais,
não hesitam em pôr em dúvida um
membro de sua corporação. Foi de Jean-Jacques Rousseau, segundo eles, que
veio essa idéia funesta da transparência
da vida comum. Esta produziu as utopias e os crimes da virtude revolucionária e nutriu o Terror conduzido pelo incorruptível Robespierre. No tempo da
arquitetura de vidro e dos pequenos heróis soviéticos que denunciavam as tramas anti-revolucionárias de seus pais, foi
essa mesma idéia de transparência que
engendrou o horror totalitário.
Restaurar o segredo
Hoje, sem dúvida, ela assume uma forma mais branda
no apetite das multidões da sociedade
democrática pelos segredos dos príncipes e pela vida íntima das estrelas. Mas,
precisamente, o verme totalitário está no
fruto democrático. É para satisfazer os
apetites dos indivíduos da sociedade de
massas que os jornalistas lhes franqueiam o destino daqueles que conduzem a vida em comum e fazem a cama
para os doces totalitarismos de amanhã.
Restauremos, pois, antes que seja tarde
demais, o segredo e a distância que convêm ao bom governo republicano.
Tais discursos, apesar de tudo, são de
deixar perplexo. Aqueles que vêem na
"Arquitetura de Vidro", publicada por
Paul Scherbart em 1910, a consequência
do sonho rousseauísta e a marca da cumplicidade dos arquitetos futuristas com
os poderes totalitários do futuro parecem ignorar, para começo de conversa,
que a casa sonhada por Scherbart não
era transparente e não esboçava nenhum
projeto de comunidade. Mas, sobretudo,
qual ditadura real se fundou na transparência? O regime stalinista pôde erigir estátuas ao pequeno Pavel Morozov, morto por sua família por ter denunciado seu
pai. Ele, o regime, não foi menos fundado no emprego sistemático do segredo,
que culminou na existência de uma
Constituição segundo a qual os interessados não tinham meios de tomar conhecimento da realidade.
Certas comunidades do tipo religioso
podem ser governadas pelo princípio da
transparência. Nenhum Estado o é, e os
Estados totalitários menos que todos os
outros. Por trás da falaciosa equação
rousseauísmo = casa de vidro = totalitarismo, o que de fato buscam os raciocínios é firmar a idéia que identifica a democracia ao triunfo de um individualismo de massas, indiferente às formas
simbólicas da vida pública, mas ávido de
publicidade como de mercadorias. Nessa democracia, é fácil ver o princípio de
um desprezo pela política que abre caminho ao totalitarismo. E é fácil também
opor a ela uma virtude republicana,
olhando altiva e remota para as grandes
finalidades da vida em comum, encarnadas no serviço do Estado.
É aqui que os governos aproveitam a
ocasião ensejada pelos filósofos. Afinal
de contas, observam eles, a quem se deve
essa corrupção que reina nos mercados
públicos? Servem-se os políticos de seus
poderes municipais para chantagear as
empresas e financiar as despesas de seus
partidos? Mas para que essas despesas
senão para as exorbitantes campanhas
eleitorais, nas quais é preciso fazer alarde
de publicidade para satisfazer o gosto depravado dos indivíduos da massa democrática? Melhor seria, então, que não
houvesse mais partidos nem eleições?
Portanto nada de hipocrisia! Que o povo dos indivíduos democráticos tenha a
honestidade de aceitar esse mal que ele
torna necessário. E mesmo que por inadvertência caia algum dinheiro público
nos bolsos de alguns eleitos, que ele reconheça nesses excessos individuais a imagem magnificada de seus apetites ordinários. É por causa dele que os eleitos republicanos são às vezes obrigados a desviar para algum tráfico mesquinho seus
olhares geralmente voltados para as
grandes finalidades da vida comum.
Pagar o preço devido
Nossa virtude, comprometendo-se assim, paga o
preço devido a seu vício. Que ele tenha,
pois, a honestidade de pagar de volta o
preço devido a nosso sacrifício. E que
não vá, pelas suas hipócritas denúncias
de uma corrupção da qual ele é a causa,
agravar ainda mais os perigos a que ele
expõe a causa política e abrir caminho ao
totalitarismo!
Tudo se passa, pois, como se a prova da
corrupção agora funcionasse às avessas.
Antes ela acusava o governo, em nome
do povo, de trair os assuntos comuns em
favor dos interesses privados. Hoje a corrupção serve para provar que os governantes são infelizmente obstados na gestão dos assuntos comuns pelas más tendências do povo democrático. O detalhe
do argumento conta menos do que ele
quer provar: a necessidade de deixar governar em paz os que disso se incumbem. É sem dúvida para aprimorar essa
técnica que os homens do poder se
adiantam tantas vezes aos supostos desejos dessa multidão de pequenos democratas, ávida de conhecer os segredos escandalosos do poder.
A mídia jamais põe em circulação senão os segredos que lhe são franqueados.
Os que exigem do presidente americano
detalhes anatômicos sobre a exata natureza de suas relações com Monica Lewinsky não eram jornalistas a serviço
dos leitores da imprensa sensacionalista.
Eram bons cristãos e honestos juízes e
representantes, defensores da paz das famílias e do segredo da vida privada. E a
fita que revela os segredos do financiamento do partido do presidente francês
transitou pelas mãos de um ministério
socialista antes de ganhar a praça pública. Os que desvendam os segredos, em
suma, são também os que usam do segredo para mesclar os assuntos da coletividade e os de seu partido ou deles
próprios. Usam portanto, de forma alternada, as vantagens do segredo de Estado
e as da transparência midiática que o denuncia. Sob a condição de denunciarem
como demolidores da virtude política os
jornalistas a quem transmitem suas informações e os leitores que as lêem e de
apelar à solidariedade de seus colegas
contra o "linchamento midiático" e os
abusos da democracia.
Denúncia da denúncia
Às vantagens do segredo e às de sua denúncia
juntam-se, pois, as da denúncia da denúncia. É todo um círculo no qual o próprio fato da corrupção serve para provar
que não cabe analisar de muito perto os
assuntos do Estado, sob pena de pôr a
República em perigo. Nessa lógica sinuosa, os interessados acabam por unir-se
sem muito custo. Quanto aos filósofos, o
assunto é outro.
Jacques Rancière é professor da Universidade de
Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve
regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.
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