São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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O silogismo da corrupção

Jacques Rancière

Todos corruptos!", costumávamos dizer quando sobrevinha a notícia de maquinações fraudulentas de tal ou qual governante. Mas todas as coisas de nosso tempo tendem a se sofisticar e se elevar ao segundo ou terceiro graus. Quando o presidente dos Estados Unidos da América tem de explicar, com um quadrado vermelho na tela, o detalhe de suas relações com a estagiária ou quando o antigo tesoureiro do partido do presidente francês põe em questão o sistema de tráfico de influências reinante na prefeitura de Paris na época em que o dito presidente era prefeito, ninguém vê mais, nas ruas das respectivas capitais, manifestantes se acotovelarem para vociferar contra os governos corruptos. Vemos, isso sim, muitos homens graves, com frequência os próprios governantes ou ex-governantes, manifestarem sua consternação.

Política assassinada
Que outro propósito têm essas revelações, dizem eles, senão dar ocasião a que os inimigos do governo republicano gritem: "Todos corruptos!"? É a política, dizem ainda, que resulta assassinada. Quem ainda irá querer governar ante a fúria dos juízes e a da mídia? A "república dos juízes" e o "linchamento midiático" desencorajam a boa vontade daqueles que assumem os encargos da vida pública. E desacreditam a própria política. Na verdade, já é hora de lançar um véu sobre todas essas torpezas e conferir brio à política. Evidentemente, esses argumentos pro domo prestam-se a alguma suspeita. Mas ao lado dos políticos, que são um pouco interessados demais no assunto, há os filósofos, desinteressados por definição, com laivos de Aristóteles e do bem comum, de Locke e do Estado de Direito, de Kant e do Iluminismo, de Hannah Arendt e da glória da vida pública. A França, em especial, produz uma incrível quantidade deles, boa parte da qual circula entre as esferas governamentais e o mundo midiático. E estes alçam a voz e dispõem-se a remontar à raiz do mal. Há, nos dizem eles, um tempo da política, que impõe enxergar longe e agir para o futuro. Como preservá-lo se ele está submetido ao tempo da mídia, que só vive do presente e da obrigação de vender o novo a cada dia? Há uma vida pública que deve ser preservada das torpezas da vida privada, e uma vida privada que deve ser subtraída ao olhar público. As instituições da vida comum repousam num simbolismo que não é para ser tocado. A política funda-se na distância. Ela é ameaçada de morte quando se faz menção de submetê-la ao reino midiático da visibilidade e da publicidade integrais. O grande inimigo da política é a idéia da transparência. Como nossos filósofos são imparciais, não hesitam em pôr em dúvida um membro de sua corporação. Foi de Jean-Jacques Rousseau, segundo eles, que veio essa idéia funesta da transparência da vida comum. Esta produziu as utopias e os crimes da virtude revolucionária e nutriu o Terror conduzido pelo incorruptível Robespierre. No tempo da arquitetura de vidro e dos pequenos heróis soviéticos que denunciavam as tramas anti-revolucionárias de seus pais, foi essa mesma idéia de transparência que engendrou o horror totalitário.

Restaurar o segredo
Hoje, sem dúvida, ela assume uma forma mais branda no apetite das multidões da sociedade democrática pelos segredos dos príncipes e pela vida íntima das estrelas. Mas, precisamente, o verme totalitário está no fruto democrático. É para satisfazer os apetites dos indivíduos da sociedade de massas que os jornalistas lhes franqueiam o destino daqueles que conduzem a vida em comum e fazem a cama para os doces totalitarismos de amanhã. Restauremos, pois, antes que seja tarde demais, o segredo e a distância que convêm ao bom governo republicano. Tais discursos, apesar de tudo, são de deixar perplexo. Aqueles que vêem na "Arquitetura de Vidro", publicada por Paul Scherbart em 1910, a consequência do sonho rousseauísta e a marca da cumplicidade dos arquitetos futuristas com os poderes totalitários do futuro parecem ignorar, para começo de conversa, que a casa sonhada por Scherbart não era transparente e não esboçava nenhum projeto de comunidade. Mas, sobretudo, qual ditadura real se fundou na transparência? O regime stalinista pôde erigir estátuas ao pequeno Pavel Morozov, morto por sua família por ter denunciado seu pai. Ele, o regime, não foi menos fundado no emprego sistemático do segredo, que culminou na existência de uma Constituição segundo a qual os interessados não tinham meios de tomar conhecimento da realidade. Certas comunidades do tipo religioso podem ser governadas pelo princípio da transparência. Nenhum Estado o é, e os Estados totalitários menos que todos os outros. Por trás da falaciosa equação rousseauísmo = casa de vidro = totalitarismo, o que de fato buscam os raciocínios é firmar a idéia que identifica a democracia ao triunfo de um individualismo de massas, indiferente às formas simbólicas da vida pública, mas ávido de publicidade como de mercadorias. Nessa democracia, é fácil ver o princípio de um desprezo pela política que abre caminho ao totalitarismo. E é fácil também opor a ela uma virtude republicana, olhando altiva e remota para as grandes finalidades da vida em comum, encarnadas no serviço do Estado. É aqui que os governos aproveitam a ocasião ensejada pelos filósofos. Afinal de contas, observam eles, a quem se deve essa corrupção que reina nos mercados públicos? Servem-se os políticos de seus poderes municipais para chantagear as empresas e financiar as despesas de seus partidos? Mas para que essas despesas senão para as exorbitantes campanhas eleitorais, nas quais é preciso fazer alarde de publicidade para satisfazer o gosto depravado dos indivíduos da massa democrática? Melhor seria, então, que não houvesse mais partidos nem eleições? Portanto nada de hipocrisia! Que o povo dos indivíduos democráticos tenha a honestidade de aceitar esse mal que ele torna necessário. E mesmo que por inadvertência caia algum dinheiro público nos bolsos de alguns eleitos, que ele reconheça nesses excessos individuais a imagem magnificada de seus apetites ordinários. É por causa dele que os eleitos republicanos são às vezes obrigados a desviar para algum tráfico mesquinho seus olhares geralmente voltados para as grandes finalidades da vida comum.

Pagar o preço devido
Nossa virtude, comprometendo-se assim, paga o preço devido a seu vício. Que ele tenha, pois, a honestidade de pagar de volta o preço devido a nosso sacrifício. E que não vá, pelas suas hipócritas denúncias de uma corrupção da qual ele é a causa, agravar ainda mais os perigos a que ele expõe a causa política e abrir caminho ao totalitarismo!
Tudo se passa, pois, como se a prova da corrupção agora funcionasse às avessas. Antes ela acusava o governo, em nome do povo, de trair os assuntos comuns em favor dos interesses privados. Hoje a corrupção serve para provar que os governantes são infelizmente obstados na gestão dos assuntos comuns pelas más tendências do povo democrático. O detalhe do argumento conta menos do que ele quer provar: a necessidade de deixar governar em paz os que disso se incumbem. É sem dúvida para aprimorar essa técnica que os homens do poder se adiantam tantas vezes aos supostos desejos dessa multidão de pequenos democratas, ávida de conhecer os segredos escandalosos do poder.
A mídia jamais põe em circulação senão os segredos que lhe são franqueados. Os que exigem do presidente americano detalhes anatômicos sobre a exata natureza de suas relações com Monica Lewinsky não eram jornalistas a serviço dos leitores da imprensa sensacionalista. Eram bons cristãos e honestos juízes e representantes, defensores da paz das famílias e do segredo da vida privada. E a fita que revela os segredos do financiamento do partido do presidente francês transitou pelas mãos de um ministério socialista antes de ganhar a praça pública. Os que desvendam os segredos, em suma, são também os que usam do segredo para mesclar os assuntos da coletividade e os de seu partido ou deles próprios. Usam portanto, de forma alternada, as vantagens do segredo de Estado e as da transparência midiática que o denuncia. Sob a condição de denunciarem como demolidores da virtude política os jornalistas a quem transmitem suas informações e os leitores que as lêem e de apelar à solidariedade de seus colegas contra o "linchamento midiático" e os abusos da democracia.

Denúncia da denúncia
Às vantagens do segredo e às de sua denúncia juntam-se, pois, as da denúncia da denúncia. É todo um círculo no qual o próprio fato da corrupção serve para provar que não cabe analisar de muito perto os assuntos do Estado, sob pena de pôr a República em perigo. Nessa lógica sinuosa, os interessados acabam por unir-se sem muito custo. Quanto aos filósofos, o assunto é outro.


Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.


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