São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2000

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Ponto de fuga

A raposa azul

Jorge Coli
especial para a Folha

Perceber o expressionismo dentro de uma dimensão "clássica" pode parecer um absurdo. A própria palavra expressão, que traz consigo princípios de força e subjetividade, a própria história do movimento, situada num momento de crises sociais e políticas muito graves, feita de escândalos e de perseguições políticas, negam qualquer idéia de equilíbrio, de prazer sereno, que classicismo contém forçosamente.
Alguns exemplos célebres: "O Grito", de Munch (1863-1944), toda a obra de Ensor (1860-1949), de Otto Dix (1891-1969), de George Grosz (1893-1959) são explosões de angústia exacerbada e violenta. O expressionismo emerge como um desenvolvimento extremo das tempestades espirituais inauguradas na época romântica.
Entretanto ele não é apenas isso. A grande e bela mostra "O Expressionismo Alemão", trazendo obras significativas do museu Van der Heydt, de Wuppertal, faz prova do contrário. Demonstra que o expressionismo possui uma face serena, proporcionada, luminosa, se entregando ao prazer intenso de cores lindas e vivas, bem dispostas em equilíbrio. Força e energia estão quase sempre presentes, mas contidas no jogo estrito das composições. As estruturas podem ser tensas, mas não se rompem nunca e, por isso mesmo, constroem. O quadro "A Raposa Negro-Azulada", de Franz Marc (1880-1916), obra-prima absoluta, é um esplendor, no seu acorde harmônico de tons e de formas, na captação elegante da pose. Ele manda às favas os termos classificatórios e dá o tom para a grande maioria das outras obras, que encontraram, cada qual à sua maneira, uma felicidade apolínea.
Paredes - A mostra do museu Van der Heydt esteve no Rio, nas salas do Paço Imperial. Ela vem agora para São Paulo, no Museu de Arte Moderna (MAM), e apresenta, além dessa parte mais importante, um apêndice exclusivo no Museu Lasar Segall. A curadoria é alemã, completada por um setor brasileiro, com obras de Segall (1891-1957), Oswaldo Goeldi (1895-1961) e Lívio Abramo (1903-1992). São exposições cuidadas, mas individuais, uma para cada artista: perdeu-se a oportunidade de um jogo comparativo que seria muito fecundo e que poderia dialogar também com os mestres vindos de fora.
Espírito - As obras do grupo Support(s)-Surface(s), expostas primeiro no MAM-SP, seguiram para o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio. Em São Paulo, elas se beneficiaram da neutralidade dos espaços daquele museu, de uma iluminação homogênea, que reduzia as obras à sua substância: matérias, texturas, marcas de gestos, comportamentos cromáticos reduzidos. No Rio, tiveram um tratamento suntuoso de "obras de arte". Penumbras, holofotes (às vezes coloridos, para combinar com os tons dos objetos). Tudo chique. Mas perdeu-se, pela eloquência da encenação, a experiência imediata, a singularidade simples, artesanal, que confere sentido àquelas obras.
Tela - O Festival de Cinema do Rio de Janeiro é uma bem-aventurança. A vontade é de estar lá, de tudo ver, e fica uma ponta de despeito quando isso não é possível. Bastaria a retrospectiva John Waters para fazer cócegas de ir, de não sair das salas. Há os grandes nomes: Clint Eastwood, Peter Greenaway e outros. E há as descobertas, os filmes mais discretos, pequenas vibrações que permanecem na memória.
É assim o "Estranhas Vozes", do britânico Simon Cellan Jones, que tem o sentido "antropológico" dos ambientes e da mistura entre drama e humor, explorando os limites da loucura no cotidiano. "Fast Food, Fast Women", fita americana de Amos Kollek, embaça a fronteira entre real e imaginário para contar, de maneira comovida, histórias de desejo e de amor, fazendo cruzar meios sociais e incorporando, em sua órbita, a fragilidade da velhice. Há ainda, eufórico, suntuoso, o inglês "Topsy-Turvy", de Mike Leigh. Ele põe em cena, com entusiasmo, Gilbert e Sullivan, os dois inenarráveis autores de operetas gozadíssimas. Um maravilhoso filme "de época", como poucos o são.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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