São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

A erosão do trabalho

Rogerio Cassimiro - 4.set.2006/Folha Imagem
Funcionários da Volkswagen em assembléia que decidiu pela volta ao trabalho, em São Bernardo do Campo (SP)


Estudo analisa as mudanças por que têm passado as relações entre patrões e empregados no Brasil p ERNANE GUIMARÃES NETO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Enquanto a indústria se moderniza, postos de trabalho são substituídos por máquinas; como alternativa ao desemprego, as empresas oferecem soluções como flexibilização de horários e contratos temporários.
Para o professor de sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ricardo Antunes, que pesquisa as mutações no mundo do trabalho desde o início da década de 1990, esse tipo de solução (a "desconstrução da legislação social") não só piora as condições dos que têm emprego como não resolve o problema do desemprego estrutural.
Tendo estudado como Japão, EUA e Europa lidaram com a pressão sobre os trabalhadores, Antunes escreveu "Adeus ao Trabalho?" (ed. Cortez) e "Os Sentidos do Trabalho" (Boitempo). Voltando-se agora para o Brasil, ele lança "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil" (Boitempo), coletânea de artigos de diversos autores sobre o tema.
Além de investigar a reestruturação em setores tradicionais, como o automobilístico e o bancário, o novo livro apresenta setores pouco estudados, como a música erudita e o telemarketing. Baseado nesses dados e na evolução da legislação trabalhista no Brasil, Antunes deu à Folha sua interpretação para a atual situação do trabalho e o futuro que se desvela.

 

FOLHA - Por que cinco capítulos só sobre indústria automobilística?
RICARDO ANTUNES
- Porque ela tem muita importância: o novo sindicalismo nasceu no ABC paulista. Tem uma tradição na história do trabalho, na história sindical e enorme importância nos ciclos de industrialização.

FOLHA - Houve surpresa com os recentes cortes e medidas, como os da Volkswagen?
ANTUNES
- Para nós não foi surpresa. A pesquisa empírica pegou toda a década de 1990 e se concluiu em torno do início de 2005. Era fundamental entender como, em São Bernardo do Campo (SP), ocorreu o desmonte de uma planta que chegou a ter 44 mil trabalhadores, juntando as unidades dos anos dourados -1970-80-, contingente reduzido a menos da metade e produzindo três vezes mais. A Volkswagen perdeu competitividade e veio com uma proposta muito dura, de perda de direitos com demissão em massa.

FOLHA - O sr. diz que centrais sindicais aceitaram acordos ruins para os trabalhadores. Por quê?
ANTUNES
- Foi uma combinação complexa de elementos. Na década de 90 ocorreram no Brasil dois movimentos simultâneos: um foi a monumental reestruturação produtiva das empresas...

FOLHA - E ela teve mais impacto porque as indústrias haviam se acomodado e então, no início dos anos 1990, passaram a sofrer com a liberação das importações?
ANTUNES
- Certamente. Freqüentemente se diz que a década de 1980 foi perdida. Foi perdida talvez para o capital, mas para o mundo do trabalho no Brasil foi uma década de florescimento. Basta dizer que em 80 nasce o Partido dos Trabalhadores, em 83 a Central Única dos Trabalhadores, em 84 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra... Foi um período de vivificação das lutas sociais. Quando Collor ganhou a eleição [em 1989], houve o segundo elemento fundamental: tivemos, de modo intenso, a pragmática neoliberal da desregulamentação. Voltando à questão anterior, [por esses motivos] a década de 90 bateu duro nas centrais sindicais, no PT. Esses abalos no mundo do trabalho têm seu impacto na representação política. A CUT e a Força Sindical viveram esse ciclo de uma onda ideopolítica muito forte: em 1989, o fim do Leste Europeu, expandido como o "fim do socialismo". Se não havia alternativa, muitos partidos mudaram.

FOLHA - Então os sindicalistas compactuaram com o capital?
ANTUNES
- Eu usaria termos mais sofisticados: abandonaram a prática da luta social, foram buscar recursos do Estado -o Fundo de Amparo ao Trabalhador, por exemplo, e mais recentemente estão de olho nos fundos de pensão- e implantaram uma espécie de neocorporativismo, que oscila entre depender do Estado e de outros recursos. É um neopeleguismo da era lulista, diferente do velho peleguismo da era getulista. O resultado final: a CUT de 2006 é completamente prisioneira do Estado, do Ministério do Trabalho, de verbas públicas -não é por acaso que algumas de suas principais lideranças estiveram diretamente envolvidas em todos os escândalos, do mensalão ao dossiê contra a candidatura do [governador eleito por SP José] Serra.

FOLHA - Que projeções podem ser feitas sobre o desemprego, com base nas políticas atuais?
ANTUNES
- Nesse ponto não é possível ter ilusões. [O economista americano] Jeremy Rifkin publicou um artigo no "Guardian" em 2004 dizendo que, entre 1995 e 2002, a China perdeu 15 milhões de trabalhadores industriais crescendo 10%, 12% ao ano. O crescimento não é sinônimo de inclusão no trabalho. Ele é possível com maquinário e trabalho multifuncional (em bom e claro português, significa o trabalhador fazer muitas coisas). Teremos um mundo do trabalho mais ou menos assim (excluindo-se as classes proprietárias, que estão cada vez mais ricas): na ponta de cima, trabalhos ultraqualificados, com uma remuneração relativamente alta, mas um trabalho virtual. Trabalha-se hoje numa grande transnacional, e amanhã pode-se ser transferido para as Filipinas, a Rússia ou perder o emprego. Na base, o desemprego estrutural. Os dados da Organização Internacional do Trabalho são muito minimizadores. No meio, vamos ter um conjunto muito grande de trabalhos, alguns bastante qualificados no que concerne à atividade, mas sob condições bastante instáveis ou mesmo virtuais. São trabalhadores técnicos que ficam oscilando: quando há uma fusão, há o desemprego. Deixada a lógica do século 21 como está hoje, com o chamado "mercado" dizendo o que deve ser feito, com o Estado em retração, cada vez mais privatizado, caminhamos para um estado de desertificação social. O que era típico do Terceiro Mundo chegou ao Primeiro. Os bolsões de pobreza, o "lavoro nero" na Itália, os árabes muçulmanos e os negros africanos na França, os brasileiros em Portugal, na Espanha e Inglaterra são uma "terceiromundização" do trabalho no Primeiro Mundo, enquanto nossas burguesias vivem um prolongamento do Primeiro Mundo. Haverá esse fosso social. Mas isso cria para o capital pelo menos três problemas. Primeiro, a classe trabalhadora sem trabalho não tem salário e não consome; o capital resolve isso com consumo sofisticado para as classes médias altas e uma produção de péssima qualidade para os pobres. Segundo, os bolsões de miséria; nos anos dourados do Estado de Bem-Estar Social, o desempregado europeu recebia o equivalente a seu salário quando estava sem emprego. Não só isso nunca ocorreu por aqui como está em erosão nos países europeus. São bolsões sem trabalho nem remuneração, o que leva ao terceiro ponto: esses bolsões de pauperismo são base para a economia política do tráfico, do crime ou são pólos de rebelião. Por que o MST teve força? Porque aglutinava em seu acampamento os excluídos do campo e os da cidade.

FOLHA - Mas o que fazer então?
ANTUNES
- Responder é um desafio. Queremos uma produção destrutiva -em que a acumulação de valor é o "modus operandi" fundamental- ou queremos recuperar uma humanidade para a qual questões vitais são preservadas? Além de uma nova morfologia do trabalho, há uma nova morfologia das lutas sociais. Aquilo de "primeiro vem o partido" soçobrou. Hoje, os mais importantes movimentos são os que tocam as questões vitais.

FOLHA - Qual a diferença entre Lula e Alckmin em relação à desmontagem da legislação trabalhista?
ANTUNES
- Ambos farão a mesma reforma. A reforma de Lula é a reforma de Fernando Henrique Cardoso, com um acento diferente aqui e ali. Lula não fez uma reforma em benefício dos trabalhadores, contra a reforma do FHC. Ambas têm relativa timidez em flexibilizar porque haverá muita resistência sindical e dos trabalhadores -apesar de todos os limites, o sindicato se arraigou na história da classe trabalhadora brasileira. E alguns sindicatos importantes não aceitam transferir sua autonomia às centrais. Lula e Alckmin tenderão a vir com as imposições do capital global. Só que há um problema: como Lula vem do movimento sindical, é muito mais difícil se opor a ele. FHC tentou privatizar a Previdência e taxar os aposentados e não conseguiu. Taxar os aposentados foi o primeiro ato importante de Lula. A racionalidade no ideário neoliberal implantada por FHC é marcada por uma destrutividade que está presente no livro. Esse desmonte dos anos 90 -com Collor, Itamar e FHC, até 2002-, quando imaginávamos que fosse estancar, ganhou novo fôlego com Lula. Essa é a tragédia brasileira.


RIQUEZA E MISÉRIA DO TRABALHO NO BRASIL
Organização:
Ricardo Antunes
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/ 3875-7250)
Quanto: R$ 62 (528 págs.)



Texto Anterior: + lançamentos
Próximo Texto: + literatura: Salada turca
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.