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Um nobel para a nossa era
Pamuk antecipa dilemas da sociedade atual, diz autora britânica
MARGARET ATWOOD
Orhan Pamuk, o celebrado romancista turco, ganhou o
Prêmio Nobel de
Literatura. Seria
difícil conceber um ganhador
mais perfeito para nossa era
catastrófica.
Da mesma maneira que a
Turquia está posicionada na
encruzilhada entre o Oriente e
Oriente Médio muçulmanos e
o Ocidente europeu e norte-americano, a obra de Pamuk
habita o mutável terreno de
uma sobreposição cultural e
religiosa cada vez mais perigosa, na qual colidem não só ideologias como personalidades.
Não é exagero dizer que é necessário ler Pamuk se você deseja começar a compreender o
que acontece nos corações,
mentes e almas das pessoas,
não só na Turquia mas também
no Reino Unido, onde a recente
controvérsia envolvendo o uso
de véus por mulheres muçulmanas reflete de maneira assustadora o tema de "Neve".
Ele nos lembra que a impiedosa campanha de modernização
promovida por Atatürk incluía
uma proibição muito controversa ao uso de véus.
Pamuk sentiu as ondas de
choque geradas por essas colisões de facções. Ele jamais se
esquivou de controvérsias: ainda um ano atrás, estava sendo
processado por acusações de
"falta de espírito turco" -já
que fora irresponsável a ponto
de mencionar o destino dos armênios no começo do século
20, assunto que é tabu para as
autoridades de seu país.
Na Turquia, Pamuk é muito
mais que um romancista: as
pessoas se apressam a ler seus
romances como se ele fosse
uma espécie de profeta ou cantor imensamente popular ou
psicanalista nacional ou uma
espécie de editorial humano.
Linhas tortuosas
Para onde está indo a Turquia? De que maneira ela chegará a um compromisso com
sua história -outrora gloriosa
e sempre conturbada- e resolverá o conflito entre velho e novo e tratará da disputa de poder
entre laicos e islâmicos e encontrará auto-respeito ou paz
de espírito ou unidade interior
ou um novo caminho?
Os romances de Pamuk não
oferecem soluções simples e diretas, mas seguem as linhas
tortuosas desse tipo de questionamento com fidelidade angustiada e dilacerante. Algumas vezes seus personagens
são quase literalmente dilacerados pelas escolhas que não
sabem como fazer, mas são forçados a fazer mesmo assim.
Seu poder como romancista
deriva em parte de sua recusa
em julgar as escolhas feitas pelos personagens que cria: a tragédia deles é que, não importa
que caminho venham a tomar,
não têm direito a relaxar; e,
pior, ocasionalmente algum
outro elemento da sociedade
em que vivem se verá forçado a
condená-los.
Assim, os heróis de Pamuk
-eles são tipicamente heróis,
não heroínas- vagueiam pelas
tramas de seus romances como
se estivessem presos em um sonho coletivo especialmente ansioso, ameaçador.
Não é incomum que um protagonista de Pamuk termine
morto, vítima de pessoas desconhecidas.
Os heróis de Pamuk vivem
perturbados pela antiga preeminência da Turquia: eles ocasionalmente tropeçam em
fragmentos arquitetônicos do
imenso e opulento Império
Otomano ou vêem uma igreja
armênia abandonada, vazia, ou
são lembrados sobre antigos
soberanos russos ou vislumbram uma fotografia, manchada pelos anos, do, um dia, muito
reverenciado Atatürk, cujas
tentativas de criar uma Turquia laica e completamente
ocidentalizada parecem agora
tão fúteis.
Para onde foi todo aquele poder?, perguntam esses ecos. A
cidade cristã bizantina de
Constantinopla lança uma longa sombra; Ocidente europeu e
Oriente muçulmano são vistos
como gêmeos idênticos, aprisionados em uma armadilha
que a ambos sufoca.
Pamuk nos dá aquilo que todos os romancistas nos dão em
seus melhores momentos: a
verdade. Não a verdade das estatísticas, mas a verdade da experiência humana em um determinado lugar e um determinado tempo. E, como no caso
da grande literatura em geral,
há momentos em que leitor se
sente mais examinado por ele
do que examinando seu trabalho. "Ninguém pode nos compreender de longe", diz um personagem de "Neve". Leitor, isso
é um desafio.
MARGARET ATWOOD é escritora, autora de
"A Vida Antes do Homem" (Rocco), entre outros. Este texto foi publicado no "Guardian".
Tradução de Paulo Migliacci.
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