São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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Um nobel para a nossa era

Pamuk antecipa dilemas da sociedade atual, diz autora britânica

MARGARET ATWOOD
Orhan Pamuk, o celebrado romancista turco, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Seria difícil conceber um ganhador mais perfeito para nossa era catastrófica.
Da mesma maneira que a Turquia está posicionada na encruzilhada entre o Oriente e Oriente Médio muçulmanos e o Ocidente europeu e norte-americano, a obra de Pamuk habita o mutável terreno de uma sobreposição cultural e religiosa cada vez mais perigosa, na qual colidem não só ideologias como personalidades.
Não é exagero dizer que é necessário ler Pamuk se você deseja começar a compreender o que acontece nos corações, mentes e almas das pessoas, não só na Turquia mas também no Reino Unido, onde a recente controvérsia envolvendo o uso de véus por mulheres muçulmanas reflete de maneira assustadora o tema de "Neve".
Ele nos lembra que a impiedosa campanha de modernização promovida por Atatürk incluía uma proibição muito controversa ao uso de véus.
Pamuk sentiu as ondas de choque geradas por essas colisões de facções. Ele jamais se esquivou de controvérsias: ainda um ano atrás, estava sendo processado por acusações de "falta de espírito turco" -já que fora irresponsável a ponto de mencionar o destino dos armênios no começo do século 20, assunto que é tabu para as autoridades de seu país.
Na Turquia, Pamuk é muito mais que um romancista: as pessoas se apressam a ler seus romances como se ele fosse uma espécie de profeta ou cantor imensamente popular ou psicanalista nacional ou uma espécie de editorial humano.

Linhas tortuosas
Para onde está indo a Turquia? De que maneira ela chegará a um compromisso com sua história -outrora gloriosa e sempre conturbada- e resolverá o conflito entre velho e novo e tratará da disputa de poder entre laicos e islâmicos e encontrará auto-respeito ou paz de espírito ou unidade interior ou um novo caminho?
Os romances de Pamuk não oferecem soluções simples e diretas, mas seguem as linhas tortuosas desse tipo de questionamento com fidelidade angustiada e dilacerante. Algumas vezes seus personagens são quase literalmente dilacerados pelas escolhas que não sabem como fazer, mas são forçados a fazer mesmo assim.
Seu poder como romancista deriva em parte de sua recusa em julgar as escolhas feitas pelos personagens que cria: a tragédia deles é que, não importa que caminho venham a tomar, não têm direito a relaxar; e, pior, ocasionalmente algum outro elemento da sociedade em que vivem se verá forçado a condená-los.
Assim, os heróis de Pamuk -eles são tipicamente heróis, não heroínas- vagueiam pelas tramas de seus romances como se estivessem presos em um sonho coletivo especialmente ansioso, ameaçador. Não é incomum que um protagonista de Pamuk termine morto, vítima de pessoas desconhecidas.
Os heróis de Pamuk vivem perturbados pela antiga preeminência da Turquia: eles ocasionalmente tropeçam em fragmentos arquitetônicos do imenso e opulento Império Otomano ou vêem uma igreja armênia abandonada, vazia, ou são lembrados sobre antigos soberanos russos ou vislumbram uma fotografia, manchada pelos anos, do, um dia, muito reverenciado Atatürk, cujas tentativas de criar uma Turquia laica e completamente ocidentalizada parecem agora tão fúteis.
Para onde foi todo aquele poder?, perguntam esses ecos. A cidade cristã bizantina de Constantinopla lança uma longa sombra; Ocidente europeu e Oriente muçulmano são vistos como gêmeos idênticos, aprisionados em uma armadilha que a ambos sufoca.
Pamuk nos dá aquilo que todos os romancistas nos dão em seus melhores momentos: a verdade. Não a verdade das estatísticas, mas a verdade da experiência humana em um determinado lugar e um determinado tempo. E, como no caso da grande literatura em geral, há momentos em que leitor se sente mais examinado por ele do que examinando seu trabalho. "Ninguém pode nos compreender de longe", diz um personagem de "Neve". Leitor, isso é um desafio.


MARGARET ATWOOD é escritora, autora de "A Vida Antes do Homem" (Rocco), entre outros. Este texto foi publicado no "Guardian".
Tradução de Paulo Migliacci.


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