São Paulo, domingo, 22 de novembro de 2009

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Ponto de Fuga

Sobre camarões e astronautas


No filme "Distrito 9", o diretor Neill Blomkamp desarranja as regras: os alienígenas não trazem nenhuma lição de sabedoria para a humanidade nem projetos agressivos


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O encontro com discos voadores ou seres de outros planetas sempre se faz em lugares solitários, místicos e propícios às grandes comunhões. "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", de Steven Spielberg, termina-se com o ritual no deserto, noturno e misterioso. Ali, a comunicação se espiritualiza nas notas musicais.
No filme "Distrito 9", o diretor Neill Blomkamp vira tudo pelo avesso e desarranja as regras. Uma astronave se imobiliza sobre Johannesburgo, na África do Sul. Dentro, alienígenas. Não trazem nenhuma lição de sabedoria para a humanidade nem projetos agressivos, destinados a conquistar o planeta.
São pobres camarões mais ou menos da altura de um homem, morrendo de fome e esgotamento. Serão confinados num distrito que vira uma favela imunda.
O diretor mostra, ao invés da cerimônia solene, a banalização. Uma grande ideia, que toma corpo com a escolha do estilo documentário, "cinéma vérité". O tom é a trivialidade do jornalismo. Por aí se insinuam ironia e humor, o que não destrói a dramática condição dos imigrantes vindos do espaço.
Todas as referências, inúmeras, que pipocam na cabeça do espectador (de "A Mosca" a "Vampiros de Almas" ou "A Guerra das Salamandras", de "O Dia em Que a Terra Parou" ou "A Guerra dos Mundos" a... "Cidade de Deus") vão sendo, uma por uma, desmontadas: "Distrito 9" serve-se dos lugares-comuns como trampolins para o inesperado.
No finalzinho, inocula uma pequena dose de sentimentalismo, bastante apenas para que paire uma cumplicidade simpática e divertida.
A seriedade do propósito afirma-se pelo paralelismo com as circunstâncias reais em que os imigrantes pobres são tratados hoje pelos países ricos, pelas diversas segregações, como as que existem na própria África do Sul. "Distrito 9" é um conto filosófico, uma fábula moral.

Zorro
Limber Vilorio, artista de Santo Domingo (República Dominicana), tem espírito criador irrequieto, perpassado por associações fulgurantes. Sua imaginação ultrapassa as intenções críticas que ele possui.
Vilorio veste carrinhos de brinquedo com uma pele de silicone, cheia de pontas, como as desses brinquedinhos para gatos e cachorros. Recobre uma carroceria de BMW com 210 mil cápsulas de balas. Faz isso também com capacetes e pneus.
Metamorfoseia bonecos de metal, que as oficinas mecânicas especializadas em escapamentos expõem como chamariz. Chama-os de "hombres-muffler", homens-silenciosos (silencioso dos escapamentos, entende-se).
Veste-os, põe neles pinças de lagosta ou recobre-os de escamas; diverte-se com todas as variações possíveis.
É um fino desenhista. Ele traça sobre o papel astronautas com olhar ausente, sobre os quais dispõe uma placa de vidro. Com silicone, aqui e ali, cria aspectos de água ou fixa objetos diversos.
Pode também quebrar essas placas, criando ramificações como as provocadas pelo impacto de bala num para-brisa. Elas recobrem os rostos como uma teia de aranha ou como o esquema de um mapa urbano. Formam a série dos "Afogados", tão melancólicos.

Feijoada No cinema de um shopping de Santo Domingo, "Estômago", de Marcos Jorge, é projetado há semanas. Sala cheia. O filme, brilhante, é digno desse sucesso.

Devoração Pode ser, deve ser, a mais pura coincidência. A cena antropofágica de "Estômago" é bem parecida com o primeiro episódio de "O Toque da Morte" ("Quando Alice Ruppe lo Specchio", Lucio Fulci, 1988). Caso não seja, Marcos Jorge soube escolher um grande mestre.


jorgecoli@uol.com.br

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