São Paulo, domingo, 22 de novembro de 2009

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Um jantar com Darwin

NUM DIÁLOGO FANTASIOSO, UM GENETICISTA, UM BIÓLOGO, UM HISTORIADOR DA CIÊNCIA E UM JORNALISTA TIRAM DÚVIDAS COM O NATURALISTA INGLÊS SOBRE EVOLUÇÃO, FÉ E CRIACIONISMO


Darwin acreditava que uma inteligência criadora poderia ter estabelecido as leis da natureza


CASPAR MELVILLE

Para o 200º aniversário de nascimento de Darwin e o 150º aniversário de publicação de "A Origem das Espécies", a revista "New Humanist" perguntou a quatro comentaristas o que gostariam de conversar com o naturalista inglês em um jantar.

 

PERGUNTA - O que os senhores diriam a Darwin?
STEVE JONES -
Contaria que aquilo que o derrotou durante toda a vida, o mecanismo da hereditariedade, foi resolvido e não destruiu sua teoria. Pelo contrário: deu-lhe sustentação. Darwin era um artigo raro: um cientista honesto.
Quando escreveu "A Origem das Espécies", recebeu de um engenheiro escocês chamado Fleeming Jenkin uma carta contendo o que Darwin imaginava que pudesse ser uma questão absolutamente fatal.
Ele pensava que a hereditariedade funcionasse por meio da mistura de uma média dos sangues dos pais.
Nesse caso, questionou Jenkin, se houvesse no sangue um traço vantajoso de caráter, como é que ele seria transmitido? Não terminaria completamente diluído?
Darwin percebeu imediatamente que essa objeção era fatal para sua teoria.
Mas estava trabalhando com a substância errada -o sangue. A hereditariedade não se baseia em líquidos, como ele imaginava, mas em partículas: os genes. A genética dá razão a Darwin.
É claro que a descoberta cabe a Mendel [1822-84], em trabalho que foi enviado a Darwin, mas que este nunca leu.
JOHN VON WYHE - Eu teria de lhe contar sobre a maneira como a história de sua vida evoluiu ao longo dos anos.
Inicialmente era o grande santo científico que baniu a religião do reino da ciência; depois, se tornou um títere freudiano reagindo a um pai supostamente tirânico (e assim, com sua teoria da evolução, "matando Deus" como uma forma de patricídio).
Posteriormente, se tornaria o cientista que descobriu a evolução nas ilhas Galápagos em um momento de brilhantismo intuitivo ao observar os bicos dos tentilhões.
Ainda mais tarde, teria supostamente postergado a publicação da teoria por 20 anos, porque tinha medo das consequências de divulgá-la.
JERRY COYNE - Contaria sobre os espantosos fósseis que foram descobertos desde que "A Origem" foi publicado: formas transicionais que conectam grandes grupos como os répteis aos mamíferos, animais terrestres a baleias, peixes a anfíbios.
Esses fósseis oferecem ainda mais sustentação ao conceito de evolução, provas de que Darwin jamais dispôs, ainda que previsse que fósseis transicionais existissem.
Seu maior interesse talvez fosse o grupo de fósseis hominídeos encontrados na África, com datação de 6 milhões de anos.
Eles claramente demonstram que descendemos dos macacos e confirmam de forma integral a contida previsão que Darwin fez em 1871, afirmando que "parece ligeiramente mais provável que nossos primeiros ancestrais tenham vivido no continente africano".
JAMES RANDERSON - O professor Jones dirá a Darwin tudo sobre os genes; eu iria um passo além e lhe contaria sobre o DNA.
O mais interessante para ele, creio, seria a universalidade (com algumas pequenas exceções) do DNA em todos os reinos da vida -das bactérias aos elefantes. Essa importante prova sustenta o conceito da origem comum para toda a vida, que ele defendia.
É notável que Darwin tenha obtido sucesso com sua teoria ainda que não compreendesse plenamente o mecanismo da herança genética.

PERGUNTA - O que os senhores lhe perguntariam?
JONES -
Perguntaria que doença ele supunha ter. Há discussões infinitas sobre isso. Ele jamais tratou disso, ainda que fale sem parar sobre os sintomas.
A alegação padrão é a de que sofria da doença de Chagas, transmitida por insetos sugadores de sangue mortíferos na América do Sul.
Mas, se considerarmos os sintomas -inchaço, vômito etc.-, eles não se enquadram. E a doença surgiu de modo muito repentino, antes que embarcasse no Beagle. Com isso emergiu essa ideia muito idiota de que se tratava de um conflito psicológico, o que parece altamente improvável.
Minha teoria é a de que talvez estivesse sofrendo de uma úlcera. A medicina não seria capaz de diagnosticá-la então.
VON WYHE - Perguntaria sobre a maneira como ele começou a aceitar a evolução. Essa é realmente a grande pergunta que falta responder, e há pouco em que nos possamos basear.
Apenas um correspondente parece lhe ter perguntado se ele já acreditava em evolução durante a viagem do Beagle.
Darwin respondeu que, até onde se lembrava, ainda acreditava que as espécies fossem fixas, mas que vagas dúvidas lhe surgiam à mente ocasionalmente.
COYNE - Faria uma pergunta que preocupa os estudiosos de Darwin há décadas.
É sabido que Darwin e Alfred Russell Wallace apresentaram a teoria da evolução por seleção natural mais ou menos ao mesmo tempo. Darwin descobriu suas ideias paralelas quando Wallace lhe enviou uma carta e um ensaio, da Indonésia, pedindo-lhe a opinião.
O material incomodou Darwin, que queria se comportar como cavalheiro diante de uma descoberta simultânea, mas também queria o crédito por uma teoria que estava gestando havia 20 anos.
Suas teorias foram lidas juntas, perante a Sociedade Lineana de Londres, em 1º de julho de 1858, e publicadas uma em sucessão à outra na revista da organização.
Darwin escreveu ao amigo Charles Lyell, em 18 de junho de 1858, dizendo ter recebido a carta e o ensaio de Wallace naquele dia. Os documentos de Wallace, no entanto, desapareceram da correspondência de Darwin.
Os estudiosos que pesquisaram os cronogramas das viagens dos navios postais da época sugeriram, com bons fundamentos, que Darwin, na verdade, recebeu os escritos de Wallace em maio -e não em meados de junho- de 1858.
Isso significa que Darwin pode ter tido um mês todo para considerar a coincidência e descobrir como agir a respeito.
Alguns historiadores sugeriram que Darwin empregou esse tempo para roubar as ideias de Wallace e que "A Origem das Espécies", publicado em 1859, não é de todo original.
Isso é quase certamente bobagem, mas a questão da datação ainda não foi resolvida.
RANDERSON - Perguntaria sobre sua fé, ou falta de fé, pessoal.
Talvez surpreendentemente para um homem cujas grandes obras fizeram mais do que quaisquer outros trabalhos científicos para desafiar a religião, é difícil depreender, com base em suas cartas e escritos, o que ele realmente pensava sobre Deus.
As pessoas costumavam escrever sempre perguntando que efeito sua teoria teria sobre a fé que elas defendiam.
Ele sempre respondia de forma sucinta e cortês, sem se estender muito a respeito da questão. Uma dessas respostas, em 1866, estipulava que "minha opinião não vale mais do que a de qualquer outro homem que tenha refletido sobre o assunto".
Sua mulher, Emma, era profundamente religiosa e escreveu sobre um "vazio penoso" que poderia surgir entre eles devido às dúvidas de Darwin quanto à religião.
Em 1879, escreveu a seu amigo John Fordyce dizendo que "em minhas mais extremas flutuações, nunca fui ateu no sentido de negar a existência de um Deus".
"Creio que em termos gerais, e cada vez mais à medida que envelheço, a palavra "agnóstico" seria a mais correta descrição do meu estado mental."

PERGUNTA - Que livro lhe dariam?
JONES -
"Middlemarch" [ed. Record]. George Eliot [1819-80] dramatiza a tensão entre os novos cientistas céticos e os crentes, exatamente o mundo de que proveio Darwin.
VON WYHE - "Armas, Germes e Aço", de Jared Diamond [ed. Record]. Ele ficaria fascinado pela reconstrução do passado humano de forma tão detalhada, realizada por meio de uma síntese das descobertas de tantos campos de estudo, ao longo de tantos anos.
COYNE - Não quero fazer autopromoção, mas lhe daria uma cópia de "Speciation" [Especiação], um resumo sobre a origem das espécies que fiz com Allen Orr.
Escreveria, na dedicatória, "com respeito e afeto. Espero que aprecie este livro que escrevi sobre a origem das espécies. Não vendeu tão bem quanto o seu".
RANDERSON - "Narrow Roads of Gene Land" [Estradas Estreitas da Terra dos Genes], de William Hamilton. É o grande biólogo evolutivo do século 20, por seu elegante trabalho para explicar como o egoísmo em nível genético pode resultar em cooperação nos níveis individual e de grupo.

PERGUNTA - Que filmes exibiriam para ele?
JONES -
"Life on Earth" [A Vida na Terra, série documental], de David Attenborough.
VON WYHE - O mesmo filme. Por isso, o sr. Darwin ficaria com duas cópias.
COYNE - "O Dorminhoco", de Woody Allen. Além de ajudar Darwin a enfrentar a situação (como diria Kurt Vonnegut) de estar "descolado do tempo", o filme mostra muitas situações vitais, como a guerra nuclear, a clonagem e o humor judaico.
RANDERSON - "Guerra nas Estrelas". Talvez o cérebro do grande homem precisasse de algum tempo para repouso.

PERGUNTA - O que ele acharia do fato de que suas ideias continuam sendo atacadas, por adeptos do criacionismo e do design inteligente?
JONES -
Provavelmente não se interessaria por isso. À época, suas teorias foram amplamente aceitas, mesmo pela igreja.
VON WYHE - Teria considerado que as pessoas que não são trabalhadores da ciência não merecem atenção quanto a questões referentes à natureza e à maneira como ela funciona.
Mas, em um sentido bastante limitado, Darwin acreditava na teoria do design. Acreditava que uma inteligência criadora poderia ter estabelecido as leis da natureza, as quais a ciência é capaz de descobrir.
COYNE - Talvez ficasse um pouco frustrado por, depois de 150 anos de provas acumuladas em confirmação do darwinismo, algumas pessoas religiosas ainda se recusarem a aceitar suas ideias.
Quanto ao argumento do design inteligente, a posição de Darwin é famosa: "A ignorância gera confiança mais do que conhecimento; são aqueles que pouco sabem, e não os que sabem muito, que asseveram com tamanha certeza que tal ou qual problema jamais será resolvido pela ciência".
RANDERSON - Não seria grande surpresa. Darwin compreendia a dificuldade que suas ideias apresentavam para alguém que acreditasse em um Deus em forma de pessoa, que criou o universo.
Contudo provavelmente se admiraria por tanta gente, no país tecnologicamente mais avançado e mais informado em termos científicos do planeta, os EUA, rejeitar com tamanha veemência sua teoria.


A íntegra deste texto saiu na "New Humanist".
Tradução de Paulo Migliacci.


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