São Paulo, domingo, 22 de novembro de 2009

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Rebelião a sangue frio

CONCLUINDO TEXTO PUBLICADO NO MAIS! DE 8/11, TIMOTHY GARTON ASH DESCREVE AS CONDIÇÕES IDEAIS PARA A EXISTÊNCIA DAS "REVOLUÇÕES DE VELUDO", INICIADAS EM BERLIM

TIMOTHY GARTON ASH

No outono de 1989, a expressão "revolução de veludo" foi cunhada para descrever uma mudança de regime pacífica, teatral e negociada em um pequeno país da Europa central que não existe mais.
Esse rótulo sedutor foi então aplicado de forma retrospectiva aos acontecimentos de importância cumulativa que se desenrolaram na Polônia, na Hungria e na Alemanha Oriental, como na expressão "as revoluções de veludo de 1989".
Vinte anos depois, no verão de 2009, a República Islâmica do Irã encenou um julgamento farsesco de líderes políticos e pensadores acusados de fomentar a "enghelab-e makhmali" -isto é, precisamente, a "revolução de veludo".
Nesse ínterim, eventos dramáticos em lugares como Estônia, Letônia, Lituânia, África do Sul, Chile, Eslováquia, Croácia, Sérvia, Geórgia, Ucrânia, Belarus, Quirguistão, Líbano e Mianmar foram rotulados como "revolução + variantes de adjetivos".
Assim, lemos sobre a revolução cantada (países bálticos), pacífica, negociada (África do Sul, Chile), cor-de-rosa (Geórgia), laranja (Ucrânia), colorida (amplamente usado, pós-laranja), do cedro (Líbano), da tulipa (Quirguistão), eleitoral (genérica), de açafrão (Mianmar) e, mais recentemente, a Revolução Verde no Irã.
Esses acontecimentos poderiam, com graus variados de plausibilidade, ser descritos como tentativas de fazer uma espécie de mudança de regime do tipo 1989, pacífica, negociada, incluindo elementos de protesto em massa, mobilização social e ação não violenta.

O velho estilo
A revolução de veludo não tem apenas um passado, mas também um presente e talvez um futuro. Começando como o apelido de um único evento histórico -"a" Revolução de Veludo na Tchecoslováquia em 1989-, dispensou o artigo definido para tornar-se simplesmente "revolução de veludo": o gênero RV.
A RV poderia ser comparada à revolução no estilo de 1789 [ano da Revolução Francesa], como se desenvolveu mais tarde na Revolução Russa, em 1917, e na revolução chinesa de Mao Tse-tung.
O tipo ideal de 1789 é violento, utópico, assumidamente baseado em classes e caracterizado por uma radicalização progressiva, culminando no terror.
O tipo de 1989, em contraste, é não violento, antiutópico, baseado não em uma única classe, mas em amplas coalizões sociais e caracterizado pela aplicação da pressão social em massa -"o poder do povo"- para levar os verdadeiros detentores do poder a negociar.
Ela não culmina em terror, mas em compromisso. Se o totem da revolução do tipo 1789 é a guilhotina, o da de 1989 é a mesa-redonda.
As revoluções de 1789 na França, a de 1917 na Rússia, a de 1949 na China -todas foram em algum momento manifestamente utópicas; todas prometeram um paraíso na terra.

Fim das utopias
A RV é tipicamente antiutópica ou, pelo menos, não utópica. Em um determinado lugar, aspira a criar instituições políticas e jurídicas, esquemas sociais e econômicos que já existem em outro lugar (por exemplo, nas democracias liberais estabelecidas) ou que teriam existido (muitas vezes erroneamente ou com muita idealização retrospectiva) no mesmo lugar, embora em uma época anterior.
François Furet, o historiador da Revolução Francesa, duvidou se as revoluções de veludo de 1989 deveriam ser adequadamente chamadas de "revoluções", já que "não produziram uma única nova ideia".
Nesse sentido, elas estavam mais próximas de uma versão anterior de revolução, pré-1789, a que deu o nome à coisa: uma revolução, uma reversão, uma virada para trás da roda para um passado melhor, real ou imaginário.
"O retorno à Europa", um dos grandes motes da Europa central em 1989, é uma versão do tema da revolução-restauração. A maioria das alegações subsequentes ao título de RV exibem alguma mistura de passado nacional idealizado com um presente melhor localizado alhures.
Embora manifestem algumas expectativas irreais, idealistas, nenhum desses movimentos é decisivamente moldado por uma ideologia utópica. A "nova ideia" é a forma da própria mudança revolucionária, e não o conteúdo de suas aspirações ideológicas.
Na revolução à moda antiga, as massas iradas na rua são instigadas por líderes revolucionários extremistas -jacobinos, bolcheviques, Mao- a apoiar a radicalização, incluindo a violência e o terror, em nome da utopia.
Na revolução ao novo estilo, as massas nas ruas estão lá para levar os detentores do poder à mesa de negociação.
O momento de maior mobilização das massas é o momento de recorrer à negociação; isto é, o momento do compromisso. Ou, em alguns casos, à repressão violenta.

Dois para dançar
A RV com frequência leva muito tempo para ter êxito, após muitas tentativas fracassadas, durante as quais os organizadores da oposição, mas também os que estão no poder, aprendem com seus próprios erros e fracassos.
Foi o caso, por exemplo, na Polônia, na Sérvia e na Ucrânia.
Os manifestantes "falham de novo, falham melhor", para adotar a frase memorável de Samuel Beckett [1906-89]. Os dois lados o farão de maneira diferente da próxima vez.
Eventualmente, chega o momento em que há dois para dançar.
Por isso, outro nome para esse gênero é "revolução negociada". As perspectivas de saída para as elites dominantes são críticas.
Em vez de perder suas cabeças na guilhotina ou acabar pendurados em postes de iluminação, os membros de um antigo regime prontos para a transição -desde um De Klerk [presidente da África do Sul de 1989 a 1994] até os "apparatchiks" locais e a polícia secreta- veem um futuro suportável e até mais rosado para si mesmos sob uma nova ordem.
Esses compromissos difíceis e até moralmente desagradáveis com membros do antigo regime são uma parte intrínseca e inevitável da revolução de veludo.
São, como afirmou Ernest Gellner [filósofo, 1925-95] de maneira memorável, o preço do veludo. Mas eles produzem seus próprios tipos de patologia pós-revolucionária.
Com o passar dos anos, há uma sensação de que falta uma catarse revolucionária; conversas suspeitas sobre acordos sujos entre as antigas e as novas elites, feitos a portas fechadas; e, para muitos, uma sensação de profunda injustiça histórica.
Com a ausência da catarse do expurgo revolucionário (aquele momento orgíaco em que a cabeça cortada do rei é exposta no alto) e de sanções retroativas de Justiça criminal, torna-se ainda mais importante fazer um acerto de contas público, simbólico e honesto com o difícil passado de seu país.
Somente isso pode estabelecer uma linha clara entre o passado ruim e o futuro melhor.
Tradicionalmente, concebemos uma revolução como diametralmente oposta a uma eleição: naquela, a derrubada violenta de uma ditadura; nesta, a transferência pacífica do poder em uma democracia.
Mas muitos exemplos recentes de RV, da Sérvia à Ucrânia e ao Irã, tiveram uma eleição como momento catalisador da revolução em novo estilo.

Mudança pelo voto
Nos regimes híbridos e semiautoritários, a realização de uma eleição -mesmo que não seja em condições totalmente livres, sendo uma importante distorção o controle da televisão pelo regime- oferece a ocasião para uma mobilização inicial em torno de um candidato de oposição, seja Vojislav Kostunica na Sérvia, Viktor Yushchenko na Ucrânia ou Mir Hossein Mousavi no Irã.
A fraude real ou alegada da eleição pelos detentores do poder é então a fagulha para uma mobilização social maior, com demandas crescentes por mudança não apenas "no", mas "do" sistema.
A cor simbólica do candidato de oposição -laranja na Ucrânia, verde no Irã- torna-se, ou pelo menos deseja ser, a cor de toda a nação traída, a cor da "revolução da cor". Assim, outro nome para esse fenômeno, ou um grande subconjunto dele, é "revolução eleitoral".
Examinando a história recente das revoluções eleitorais, um governante autoritário e prudente poderia razoavelmente tirar esta conclusão: não corra o risco de realizar uma eleição!
Mas é notável como poucos deles realmente chegaram a essa conclusão.
A democracia formal -que realiza de tempos em tempos as cerimônias públicas conhecidas como eleições- se constituiu em uma das mais disseminadas normas internacionais.
As eleições não são apenas, por assim dizer, o tributo que o vício paga à virtude; também parecem fazer parte da panóplia aceita de legitimação para qualquer ditador com respeito próprio.
E, em 90% das vezes, os governantes autoritários saem vitoriosos dessas eleições, com alguma combinação de verdadeiro apoio popular, lealdades tribais, controle da mídia, propaganda, suborno, intimidação e simples fraude dos votos.
No caso da Sérvia, por exemplo, Slobodan Milosevic ganhou uma série de eleições semilivres, com apenas um pouco de fraude, antes de perder o poder em uma revolução eleitoral em 2000.
A arrogância, baseada nos sucessos do passado, felizmente conduz esses governantes pelo caminho da justiça devida.

Novo conceito
Em seu livro "Negotiated Revolutions" [Revoluções Negociadas], George Lawson sugere que o que define uma bem-sucedida revolução do novo estilo é "a transformação rápida, maciça, forçada, sistêmica das principais instituições e organizações de uma sociedade".
(E isso implica acertadamente que a ação não violenta das massas pode ser "forçosa" sem ser sanguinolenta.)
Acredito que a maior parte da Europa oriental-central, incluindo os países bálticos, tenha passado claramente no teste de Lawson, bem como a África do Sul.
No sudeste da Europa, o adjetivo "rápido" pode com frequência parecer menos adequado, mas, para a maior parte, certamente houve a transformação sistêmica.
Na Geórgia e na Ucrânia, devem-se colocar pontos de interrogação. O Quirguistão certamente não passa no teste de Lawson. E o Líbano? Também há casos em que (pelo menos até o momento) o movimento por uma transformação rápida, maciça, forçosa e sistêmica foi claramente esmagado. Em Mianmar, por exemplo.
Mas, na Europa, não se deve esquecer a repressão eficaz a uma tentativa de revolução de veludo em Belarus, em 2006.
E muitos afirmariam que o movimento de estudantes e trabalhadores chineses, cuja repressão começou com o massacre na praça Tiananmen, em Pequim, em 4 de junho de 1989 (o mesmo dia da pioneira eleição semilivre na Polônia), foi o fracasso de maiores consequências.
A lista de sucessos definitivos não é muito impressionante. O maior grupo está em apenas uma região, a Europa pós-comunista, e a maioria até agora esteve dentro do Ocidente cultural-histórico, se isso inclui a América Latina e o mundo do cristianismo ortodoxo.
Uma possível exceção seriam as Filipinas, mas as Filipinas são uma sociedade amplamente cristã. Passe ou não no teste de Lawson, a "revolução do cedro" no Líbano ocorreu em um país que é quase 40% cristão.
A grande importância da tentativa da Revolução Verde no Irã é que ela ocorreu em uma sociedade muito muçulmana, em uma república islâmica autoinventada -e que até assume para si a cor do islã.
Mas é possível apontar uma revolução de veludo plenamente bem-sucedida em um país majoritariamente muçulmano (Mali, Maldivas)? Ou em um preponderantemente budista ou confuciano (Coreia do Sul, Taiwan)?
Parece haver uma correlação estatística entre a escolha da ação não violenta e resultados amplamente liberais e democráticos.
No entanto devemos tomar cuidado com a falácia de confundir correlação e causa. Pode ser que os tipos de sociedade que adotam meios não violentos também tenham maior probabilidade -e estejam mais bem equipados- de consolidar a democracia liberal.
Fatores externos
Nunca é o bastante enfatizar que esses movimentos nascem das condições e das ações de pessoas nos lugares envolvidos.
Não são tramas ocidentais, como os governantes autoritários da Rússia, da China ou do Irã hoje alegam -apoiados, em sua paranoia, por alguns observadores ocidentais de mentalidade conspiratória.
É claro que sempre há envolvimento do Ocidente, parte dele público, parte encoberto, mas em nenhum caso isolado se pode alegar plausivelmente que tenha sido decisivo.
Além disso, as alegações de conspiração ocidental também fazem parte do jogo político local, destinado a desqualificar os líderes de oposição diante de uma opinião pública antiocidental e justificar sua prisão em termos de traição.
O que surge claramente de um estudo comparativo internacional é que as probabilidades de sucesso ou fracasso dependem em grau significativo de fatores externos.
Mas esses devem ser entendidos mais amplamente do que apenas como supostos complôs subversivos norte-americanos.
As perspectivas de uma tentativa de revolução de veludo dependem não só da natureza do Estado e da sociedade em que acontece, mas também do lugar daquele Estado e daquela sociedade em um ambiente internacional mais amplo.
Pode-se sugerir que as melhores probabilidades serão encontradas nos Estados semiautoritários que dependem em grau significativo -política, econômica e, por assim dizer, psicologicamente- de outros mais democráticos, especialmente quando os Estados estrangeiros com influência mais passiva ou ativa sobre eles são democracias ocidentais.
Por isso falharam as tentativas em grandes Estados independentes e autorreferentes, como a China, mas também em outros periféricos, pequenos e isolados, como Mianmar, ensanduichado como é entre a China e a Índia.

Curto prazo
Certamente ela se tornou mais difícil na última década, quando os governantes autoritários de Rússia, China, Irã etc. passaram a identificar a RV como um estratagema ocidental hostil e estudaram cuidadosamente sua história, de modo a cortá-la pela raiz.
Ao tentar contra-atacá-la, imitaram algumas de suas técnicas: por exemplo, fundar suas próprias ONGs e enviar seus próprios monitores eleitorais.
Hoje, mais do que nunca, desconfio de que as medidas indiretas de longo prazo que as sociedades livres podem tomar serão mais importantes e eficazes do que as diretas de curto prazo. Essa também é uma lição da história da Guerra Fria e de seu fim.
Não podemos fingir que não fazemos parte dessa história em desdobramento, como meros espectadores neutros.
Essa posição tem um impacto, assim traindo sua própria reivindicação. Se a revolução de veludo tem um futuro, assim como um passado, dependerá, em primeiro lugar, da vontade e da capacidade das populações dos lugares envolvidos; mas também dependerá, em menor medida, de nós.


TIMOTHY GARTON ASH é professor de estudos europeus na Universidade de Oxford e autor de "Nós, o Povo" (Cia. das Letras). Este texto, originalmente publicado no "New York Review of Books", é a segunda parte e conclusão do artigo "1989!", publicado no Mais! de 8/11.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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