|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Rebelião a sangue frio
CONCLUINDO TEXTO PUBLICADO NO
MAIS! DE 8/11, TIMOTHY GARTON ASH DESCREVE AS CONDIÇÕES IDEAIS
PARA A EXISTÊNCIA DAS
"REVOLUÇÕES DE VELUDO", INICIADAS EM BERLIM
TIMOTHY GARTON ASH
No outono de 1989, a
expressão "revolução de veludo" foi
cunhada para descrever uma mudança de regime pacífica, teatral e negociada em um pequeno país da Europa central que
não existe mais.
Esse rótulo sedutor foi então
aplicado de forma retrospectiva aos acontecimentos de importância cumulativa que se
desenrolaram na Polônia, na
Hungria e na Alemanha Oriental, como na expressão "as revoluções de veludo de 1989".
Vinte anos depois, no verão
de 2009, a República Islâmica
do Irã encenou um julgamento
farsesco de líderes políticos e
pensadores acusados de fomentar a "enghelab-e makhmali" -isto é, precisamente, a
"revolução de veludo".
Nesse ínterim, eventos dramáticos em lugares como Estônia, Letônia, Lituânia, África
do Sul, Chile, Eslováquia, Croácia, Sérvia, Geórgia, Ucrânia,
Belarus, Quirguistão, Líbano e
Mianmar foram rotulados como "revolução + variantes de
adjetivos".
Assim, lemos sobre a revolução cantada (países bálticos),
pacífica, negociada (África do
Sul, Chile), cor-de-rosa (Geórgia), laranja (Ucrânia), colorida
(amplamente usado, pós-laranja), do cedro (Líbano), da
tulipa (Quirguistão), eleitoral
(genérica), de açafrão (Mianmar) e, mais recentemente, a
Revolução Verde no Irã.
Esses acontecimentos poderiam, com graus variados de
plausibilidade, ser descritos
como tentativas de fazer uma
espécie de mudança de regime
do tipo 1989, pacífica, negociada, incluindo elementos de
protesto em massa, mobilização social e ação não violenta.
O velho estilo
A revolução de veludo não
tem apenas um passado, mas
também um presente e talvez
um futuro. Começando como o
apelido de um único evento
histórico -"a" Revolução de
Veludo na Tchecoslováquia em
1989-, dispensou o artigo definido para tornar-se simplesmente "revolução de veludo": o
gênero RV.
A RV poderia ser comparada
à revolução no estilo de 1789
[ano da Revolução Francesa],
como se desenvolveu mais tarde na Revolução Russa, em
1917, e na revolução chinesa de
Mao Tse-tung.
O tipo ideal de 1789 é violento, utópico, assumidamente baseado em classes e caracterizado por uma radicalização progressiva, culminando no terror.
O tipo de 1989, em contraste,
é não violento, antiutópico, baseado não em uma única classe,
mas em amplas coalizões sociais e caracterizado pela aplicação da pressão social em
massa -"o poder do povo"-
para levar os verdadeiros detentores do poder a negociar.
Ela não culmina em terror,
mas em compromisso. Se o totem da revolução do tipo 1789 é
a guilhotina, o da de 1989 é a
mesa-redonda.
As revoluções de 1789 na
França, a de 1917 na Rússia, a de
1949 na China -todas foram
em algum momento manifestamente utópicas; todas prometeram um paraíso na terra.
Fim das utopias
A RV é tipicamente antiutópica ou, pelo menos, não utópica. Em um determinado lugar,
aspira a criar instituições políticas e jurídicas, esquemas sociais e econômicos que já existem em outro lugar (por exemplo, nas democracias liberais
estabelecidas) ou que teriam
existido (muitas vezes erroneamente ou com muita idealização retrospectiva) no mesmo
lugar, embora em uma época
anterior.
François Furet, o historiador
da Revolução Francesa, duvidou se as revoluções de veludo
de 1989 deveriam ser adequadamente chamadas de "revoluções", já que "não produziram
uma única nova ideia".
Nesse sentido, elas estavam
mais próximas de uma versão
anterior de revolução, pré-1789, a que deu o nome à coisa:
uma revolução, uma reversão,
uma virada para trás da roda
para um passado melhor, real
ou imaginário.
"O retorno à Europa", um
dos grandes motes da Europa
central em 1989, é uma versão
do tema da revolução-restauração. A maioria das alegações
subsequentes ao título de RV
exibem alguma mistura de passado nacional idealizado com
um presente melhor localizado
alhures.
Embora manifestem algumas expectativas irreais, idealistas, nenhum desses movimentos é decisivamente moldado por uma ideologia utópica. A "nova ideia" é a forma da
própria mudança revolucionária, e não o conteúdo de suas aspirações ideológicas.
Na revolução à moda antiga,
as massas iradas na rua são instigadas por líderes revolucionários extremistas -jacobinos,
bolcheviques, Mao- a apoiar a
radicalização, incluindo a violência e o terror, em nome da
utopia.
Na revolução ao novo estilo,
as massas nas ruas estão lá para
levar os detentores do poder à
mesa de negociação.
O momento de maior mobilização das massas é o momento
de recorrer à negociação; isto é,
o momento do compromisso.
Ou, em alguns casos, à repressão violenta.
Dois para dançar
A RV com frequência leva
muito tempo para ter êxito,
após muitas tentativas fracassadas, durante as quais os organizadores da oposição, mas
também os que estão no poder,
aprendem com seus próprios
erros e fracassos.
Foi o caso, por exemplo, na
Polônia, na Sérvia e na Ucrânia.
Os manifestantes "falham de
novo, falham melhor", para
adotar a frase memorável de
Samuel Beckett [1906-89]. Os
dois lados o farão de maneira
diferente da próxima vez.
Eventualmente, chega o momento em que há dois para
dançar.
Por isso, outro nome para esse gênero é "revolução negociada". As perspectivas de saída
para as elites dominantes são
críticas.
Em vez de perder suas cabeças na guilhotina ou acabar
pendurados em postes de iluminação, os membros de um
antigo regime prontos para a
transição -desde um De Klerk
[presidente da África do Sul de
1989 a 1994] até os "apparatchiks" locais e a polícia secreta- veem um futuro suportável
e até mais rosado para si mesmos sob uma nova ordem.
Esses compromissos difíceis
e até moralmente desagradáveis com membros do antigo
regime são uma parte intrínseca e inevitável da revolução de
veludo.
São, como afirmou Ernest
Gellner [filósofo, 1925-95] de
maneira memorável, o preço
do veludo. Mas eles produzem
seus próprios tipos de patologia
pós-revolucionária.
Com o passar dos anos, há
uma sensação de que falta uma
catarse revolucionária; conversas suspeitas sobre acordos sujos entre as antigas e as novas
elites, feitos a portas fechadas;
e, para muitos, uma sensação
de profunda injustiça histórica.
Com a ausência da catarse do
expurgo revolucionário (aquele momento orgíaco em que a
cabeça cortada do rei é exposta
no alto) e de sanções retroativas de Justiça criminal, torna-se ainda mais importante fazer
um acerto de contas público,
simbólico e honesto com o difícil passado de seu país.
Somente isso pode estabelecer uma linha clara entre o passado ruim e o futuro melhor.
Tradicionalmente, concebemos uma revolução como diametralmente oposta a uma
eleição: naquela, a derrubada
violenta de uma ditadura; nesta, a transferência pacífica do
poder em uma democracia.
Mas muitos exemplos recentes de RV, da Sérvia à Ucrânia e
ao Irã, tiveram uma eleição como momento catalisador da revolução em novo estilo.
Mudança pelo voto
Nos regimes híbridos e semiautoritários, a realização de
uma eleição -mesmo que não
seja em condições totalmente
livres, sendo uma importante
distorção o controle da televisão pelo regime- oferece a ocasião para uma mobilização inicial em torno de um candidato
de oposição, seja Vojislav Kostunica na Sérvia, Viktor Yushchenko na Ucrânia ou Mir Hossein Mousavi no Irã.
A fraude real ou alegada da
eleição pelos detentores do poder é então a fagulha para uma
mobilização social maior, com
demandas crescentes por mudança não apenas "no", mas
"do" sistema.
A cor simbólica do candidato
de oposição -laranja na Ucrânia, verde no Irã- torna-se, ou
pelo menos deseja ser, a cor de
toda a nação traída, a cor da "revolução da cor". Assim, outro
nome para esse fenômeno, ou
um grande subconjunto dele, é
"revolução eleitoral".
Examinando a história recente das revoluções eleitorais,
um governante autoritário e
prudente poderia razoavelmente tirar esta conclusão: não
corra o risco de realizar uma
eleição!
Mas é notável como poucos
deles realmente chegaram a essa conclusão.
A democracia formal -que
realiza de tempos em tempos
as cerimônias públicas conhecidas como eleições- se constituiu em uma das mais disseminadas normas internacionais.
As eleições não são apenas,
por assim dizer, o tributo que o
vício paga à virtude; também
parecem fazer parte da panóplia aceita de legitimação para
qualquer ditador com respeito
próprio.
E, em 90% das vezes, os governantes autoritários saem vitoriosos dessas eleições, com
alguma combinação de verdadeiro apoio popular, lealdades
tribais, controle da mídia, propaganda, suborno, intimidação
e simples fraude dos votos.
No caso da Sérvia, por exemplo, Slobodan Milosevic ganhou uma série de eleições semilivres, com apenas um pouco
de fraude, antes de perder o poder em uma revolução eleitoral
em 2000.
A arrogância, baseada nos sucessos do passado, felizmente
conduz esses governantes pelo
caminho da justiça devida.
Novo conceito
Em seu livro "Negotiated Revolutions" [Revoluções Negociadas], George Lawson sugere
que o que define uma bem-sucedida revolução do novo estilo
é "a transformação rápida, maciça, forçada, sistêmica das
principais instituições e organizações de uma sociedade".
(E isso implica acertadamente que a ação não violenta das
massas pode ser "forçosa" sem
ser sanguinolenta.)
Acredito que a maior parte
da Europa oriental-central, incluindo os países bálticos, tenha passado claramente no teste de Lawson, bem como a África do Sul.
No sudeste da Europa, o adjetivo "rápido" pode com frequência parecer menos adequado, mas, para a maior parte,
certamente houve a transformação sistêmica.
Na Geórgia e na Ucrânia, devem-se colocar pontos de interrogação. O Quirguistão certamente não passa no teste de
Lawson. E o Líbano? Também
há casos em que (pelo menos
até o momento) o movimento
por uma transformação rápida,
maciça, forçosa e sistêmica foi
claramente esmagado. Em
Mianmar, por exemplo.
Mas, na Europa, não se deve
esquecer a repressão eficaz a
uma tentativa de revolução de
veludo em Belarus, em 2006.
E muitos afirmariam que o
movimento de estudantes e
trabalhadores chineses, cuja
repressão começou com o massacre na praça Tiananmen, em
Pequim, em 4 de junho de 1989
(o mesmo dia da pioneira eleição semilivre na Polônia), foi o
fracasso de maiores consequências.
A lista de sucessos definitivos
não é muito impressionante. O
maior grupo está em apenas
uma região, a Europa pós-comunista, e a maioria até agora
esteve dentro do Ocidente cultural-histórico, se isso inclui a
América Latina e o mundo do
cristianismo ortodoxo.
Uma possível exceção seriam
as Filipinas, mas as Filipinas
são uma sociedade amplamente cristã. Passe ou não no teste
de Lawson, a "revolução do cedro" no Líbano ocorreu em um
país que é quase 40% cristão.
A grande importância da tentativa da Revolução Verde no
Irã é que ela ocorreu em uma
sociedade muito muçulmana,
em uma república islâmica autoinventada -e que até assume
para si a cor do islã.
Mas é possível apontar uma
revolução de veludo plenamente bem-sucedida em um país
majoritariamente muçulmano
(Mali, Maldivas)? Ou em um
preponderantemente budista
ou confuciano (Coreia do Sul,
Taiwan)?
Parece haver uma correlação
estatística entre a escolha da
ação não violenta e resultados
amplamente liberais e democráticos.
No entanto devemos tomar
cuidado com a falácia de confundir correlação e causa. Pode
ser que os tipos de sociedade
que adotam meios não violentos também tenham maior probabilidade -e estejam mais
bem equipados- de consolidar
a democracia liberal.
Fatores externos
Nunca é o bastante enfatizar
que esses movimentos nascem
das condições e das ações de
pessoas nos lugares envolvidos.
Não são tramas ocidentais,
como os governantes autoritários da Rússia, da China ou do
Irã hoje alegam -apoiados, em
sua paranoia, por alguns observadores ocidentais de mentalidade conspiratória.
É claro que sempre há envolvimento do Ocidente, parte dele público, parte encoberto,
mas em nenhum caso isolado
se pode alegar plausivelmente
que tenha sido decisivo.
Além disso, as alegações de
conspiração ocidental também
fazem parte do jogo político local, destinado a desqualificar os
líderes de oposição diante de
uma opinião pública antiocidental e justificar sua prisão em
termos de traição.
O que surge claramente de
um estudo comparativo internacional é que as probabilidades de sucesso ou fracasso dependem em grau significativo
de fatores externos.
Mas esses devem ser entendidos mais amplamente do que
apenas como supostos complôs
subversivos norte-americanos.
As perspectivas de uma tentativa de revolução de veludo
dependem não só da natureza
do Estado e da sociedade em
que acontece, mas também do
lugar daquele Estado e daquela
sociedade em um ambiente internacional mais amplo.
Pode-se sugerir que as melhores probabilidades serão encontradas nos Estados semiautoritários que dependem em
grau significativo -política,
econômica e, por assim dizer,
psicologicamente- de outros
mais democráticos, especialmente quando os Estados estrangeiros com influência mais
passiva ou ativa sobre eles são
democracias ocidentais.
Por isso falharam as tentativas em grandes Estados independentes e autorreferentes,
como a China, mas também em
outros periféricos, pequenos e
isolados, como Mianmar, ensanduichado como é entre a
China e a Índia.
Curto prazo
Certamente ela se tornou
mais difícil na última década,
quando os governantes autoritários de Rússia, China, Irã etc.
passaram a identificar a RV como um estratagema ocidental
hostil e estudaram cuidadosamente sua história, de modo a
cortá-la pela raiz.
Ao tentar contra-atacá-la,
imitaram algumas de suas técnicas: por exemplo, fundar suas
próprias ONGs e enviar seus
próprios monitores eleitorais.
Hoje, mais do que nunca,
desconfio de que as medidas indiretas de longo prazo que as
sociedades livres podem tomar
serão mais importantes e eficazes do que as diretas de curto
prazo. Essa também é uma lição da história da Guerra Fria e
de seu fim.
Não podemos fingir que não
fazemos parte dessa história
em desdobramento, como meros espectadores neutros.
Essa posição tem um impacto, assim traindo sua própria
reivindicação. Se a revolução de
veludo tem um futuro, assim
como um passado, dependerá,
em primeiro lugar, da vontade e
da capacidade das populações
dos lugares envolvidos; mas
também dependerá, em menor
medida, de nós.
TIMOTHY GARTON ASH é professor de estudos
europeus na Universidade de Oxford e autor de
"Nós, o Povo" (Cia. das Letras). Este texto, originalmente publicado no "New York Review of
Books", é a segunda parte e conclusão do artigo
"1989!", publicado no Mais! de 8/11.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Texto Anterior: +(a)utores: Os exploradores Próximo Texto: Um jantar com Darwin Índice
|