São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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Para o crítico inglês John Gledson, "Trina e Una" traz a criação mais completa de Machado de uma personagem feminina sem vida interior
A mulher nula

Paulo Giandália/Folha Imagem
O crítico John Gledson, que planeja fazer uma biografia de Machado de Assis


da Redação

O professor e crítico literário inglês John Gledson, que organizou a antologia de contos de Machado de Assis, vem se dedicando há quase 20 anos ao estudo da obra do autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
É autor de, entre outros estudos, "Machado de Assis - Impostura e Realismo" (Companhia das Letras), texto fundamental para a compreensão de "Dom Casmurro", uma das obras-primas do escritor, que, aliás, ele traduziu para o inglês (Oxford University Press).
Gledson está, ainda, cuidando da preparação das crônicas de "A Semana", publicadas por Machado em "A Gazeta de Notícias", projeto que já se transformou em um de três volumes planejados (Editora Hucitec).
O crítico, que vem ao Brasil para o lançamento da antologia de contos, sobre a qual fala a seguir, também acaba de preparar uma coletânea de traduções feitas por Machado. (AS)


Folha - Há outras antologias de contos de Machado de Assis. Por que o sr. resolveu preparar mais uma?
John Gledson -
Resolvi organizá-la porque as anteriores são muito restritas, contêm, normalmente, 30 contos ou menos. Outro motivo importante é o fato de as obras "menores" de Machado não serem devidamente apreciadas. A crítica costuma concentrar-se nos romances. Os contos são uma parte importante da obra dele que precisa ser valorizada.
Para auxiliar o leitor, tive a preocupação de, além da introdução, inserir também notas de rodapé, explicando as referências dos contos. Há ainda um mapa do Rio de Janeiro da época para que os textos possam ser contextualizados.
Folha - Como apareceram os contos inéditos?
Gledson -
Todos estão mencionados na bibliografia de Machado de Assis que Galante de Souza publicou em 1955, e eu creio que ele havia visto todos os contos nas coletâneas de "A Estação" na Biblioteca Nacional. Entre essa data e os anos 60, alguns desapareceram de lá. Depois, não sei bem como, talvez em algum sebo, surgiram alguns dos números que faltavam de "A Estação", de onde vêm as cópias xerox que me foram fornecidas pelo crítico Galante de Souza. Apesar de a coleção da Casa de Rui Barbosa ter mais números da revista do que existiam na época em que se publicou, por exemplo, a edição da "Obra Completa" da Nova Aguilar (1959), ainda estão desaparecidos alguns números de "A Estação".
Folha - Podem existir ainda outros contos inéditos?
Gledson -
Pode ser que existam também, mas acho muito difícil. O que está desaparecido são alguns capítulos da primeira versão de "O Alienista", que foi publicado em "A Estação". Quem sabe no futuro eles apareçam.
Folha - E como o sr. analisa os contos inéditos?
Gledson -
"Trina e Una" é o mais interessante deles. A figura central do conto é uma mulher, Clara, como é o caso em muitos dos contos de Machado. No começo do texto, a vemos uma loja de roupas, escolhendo coisas para comprar. Ela olha para fora e o leitor se pergunta o que ela procura, para onde olha. Ela aguarda um homem -é a conclusão natural, pensar que ela tem um compromisso amoroso. Mas a motivação da mulher continua sendo um mistério ao longo do todo o conto, até que, ao final, ela se casa por um motivo inteiramente frívolo.
Quando o conto termina, Machado diz (é bom citar as palavras dele, porque eu não tenho a mesma graça): "A verdade única e verdadeira é que ela era um modelo acabado de inércia moral; e, casou para acabar com a importunação do Matias. Casaria com o diabo, se fosse necessário. Severiano reconheceu isso mesmo com o tempo. Uma vez casada, Clara ficou sendo o que sempre fora, capaz de gastar duas horas numa loja, quatro num canapé, vinte numa cama com o pensamento em coisa nenhuma". Essa "inércia moral" o preocupa em outros contos, que são ou de inércia moral verdadeira ou de inércia moral aparente, como acontece com a personagem Mariana, de "Capítulo dos Chapéus", que é outra pessoa inteiramente negativa, que não tem vontade própria. Há vários casos ao longo de sua obra desse tipo de mulher, e Clara é o exemplo mais acabado dessa inércia, é a mais completa, a mais extrema.
Folha - Há uma certa misoginia nisso?
Gledson -
Acho que não, pois Machado acreditava que a sociedade de classe média brasileira tinha criado dois tipos de mulheres opostas, mas igualmente nocivas, a mulher frívola e a mulher negativa, nula, que não tinha vida intelectual, emocional. Suponho que ele julgava que isso fosse uma criação cultural, uma criação da sociedade da época que fazia com que as mulheres fossem assim. Clara é o exemplo mais acabado e engraçado desse tipo de mulher. Como Machado escreve em outro conto, "Uma Senhora": "Como quer que sejam as mulheres de nossa época...".
Talvez, inclusive, esse conto não tenha sido republicado em um dos volumes organizados por Machado porque ele traz uma visão muito aguda da mulher nula. Pode ser que exista no texto uma espécie de experimentação. Logo no começo, ele ensaia uma espécie de prosa muito lenta, de repetição, de fazer a mulher repetir certas coisas. Aí o narrador fala com o leitor e avisa que não há naquele parágrafo nenhuma palavra em excesso, que não seja necessária. É como se ele estivesse brincando com o leitor, tentando amolá-lo. É possível que Machado julgasse ter passado um pouquinho do limite.
Folha - Em que lugares Machado publicava seus contos?
Gledson -
Machado trabalhou ao longo da carreira basicamente para três órgãos de imprensa -sendo dois deles "revistas de senhoras". Ele escreveu para o "Jornal das Famílias", no qual publicou durante a primeira fase de sua obra -décadas de 60 e 70 do século passado- e para "A Estação", também dedicada a senhoras, só que um pouco mais avançada, a partir da década de 80. Nesta época, ele também passou a colaborar frequentemente com a "Gazeta de Notícias", provavelmente o jornal mais avançado do Brasil no período.
Folha - E qual era concretamente a relação de trabalho do escritor com os órgãos de imprensa? Ele tinha, por exemplo, um espaço prefixado? Ele ganhava bem?
Gledson -
Esse três órgãos lidavam os contos de maneiras diversas. No "Jornal das Famílias", ele publicava contos extensos, quase novelas. E, como os romances do período, esses contos da primeira fase são em geral os mais chatos, em que a ironia e o aspecto brincalhão de Machado estão menos presentes, atuantes. Os contos da segunda fase -posteriores a "Memórias Póstumas de Brás Cubas"- mudam de tamanho. Em "A Estação", não há uma rigidez. Ele pode publicar continhos curtos, de uma só página, e também mais compridos, ao longo de três ou quatro números, já que ele mais ou menos dirigia a revista, o que lhe propiciava bastante liberdade. Na "Gazeta de Notícias" havia um padrão -cerca de duas colunas, duas colunas e meia- a que ele se submetia.
Quanto ao pagamento, suponho que ele fosse bem remunerado. Antes de aceitar a colaboração com a "Gazeta de Notícias", em 1881, ele já tinha, por exemplo, recusado um convite do mesmo órgão em 1876. E a "Gazeta" era dirigida pelo seu amigo Ferreira de Araújo, um homem poderoso.
Folha - O sr. pretende fazer uma biografia de Machado?
Gledson -
É um projeto bastante ambicioso, pretendo fazer uma biografia limitada, fazendo um corte entre 1868 e 1882, compreendendo a grande mudança que ocorre entre a publicação de "Iaiá Garcia" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", ou seja, entre o Machado bonzinho e o Machado excelente. Pretendo explicar um pouco isso. Mas quero fazer uma biografia intelectual. Se você quiser contar tudo pelo viés da vida do escritor, você acaba criando simplificações, e eu queria dar conta da riqueza intelectual do escritor.
Folha - Quais são as principais correntes do estudo de Machado atualmente?
Gledson -
Existe a tendência, representada pelo Roberto Schwarz e por mim, que analisa Machado sobretudo do ponto de vista social -tendência que eu acho a mais frutífera, é claro (ri). Há, também, um crítico português, que vem publicando sobre Machado nos últimos anos, Abel Barros Baptista, e que vai lançar agora, antes do fim do ano, em Portugal, um volume grande sobre o romance em geral e sobre Machado em particular, que vai se chamar "Autobibliografias: Solicitação do Livro na Ficção e na Ficção de Machado de Assis". Ele atua numa linha muito oposta a nossa, que é derridiana, desconstrucionista. Existe, ainda, o estudo das fontes, das citações, como é feita, por exemplo, pelo Gilberto Pinheiro Passos.
E há, o que é muito bom sinal, um interesse crescente da parte de certos historiadores pelo Machado: publicou-se há pouco, pela Nova Fronteira, o volume "A História Contada", com quatro ensaios de Sidney Chalhoub e outros. Sintoma bastante importante da saúde do panorama atual são as edições novas e anotadas que surgem, por exemplo, das crônicas. Finalmente, está saindo agora uma edição das traduções poéticas de Machado, com prefácio meu: "Machado de Assis e os Seus Confrades de Letras", pela Editora Minden.



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