São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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Manual de sobrevivência acadêmica

Em "A Irrecusável Busca de Sentido", a especialista em Nietzsche e professora de filosofia Scarlett Marton relembra sua formação intelectual em um dos períodos mais influentes da Faculdade de Filosofia da USP

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Especialista na obra do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), Scarlett Marton foi recentemente aprovada como professora titular do departamento de filosofia da USP, onde leciona desde 1985. Uma das exigências para a obtenção desse título é a apresentação de um memorial, em que o candidato recenseia todas as suas publicações e atividades universitárias. Quase 200 páginas de "A Irrecusável Busca de Sentido" -isto é, aproximadamente dois terços de todo o volume- originaram-se desse memorial acadêmico, que sem dúvida não se conteve dentro do formato burocrático de costume. Publicado sob a denominação de "autobiografia intelectual", o texto adquire uma tonalidade melancólica, beirando às vezes o espírito de quem faz um ajuste de contas -consigo mesmo e com os outros.
"Marcada por sucessivos abortos, minha vida intelectual converteu-se em acúmulo de frustrações", afirma Scarlett Marton.
A autora não é a única a ser tratada com dureza nestas páginas; colegas, alunos e instituições não saem ilesos do retrospecto. Os estudantes, por exemplo, já "não dispõem de meios para expressar idéias e sentimentos; não chegam inclusive a deles ter ciência. (...) Com uma visão reduzida do mundo, nem sequer se dão conta da banalização das próprias experiências".
Entre os projetos frustrados da autora, conta-se o de realizar uma edição comentada de "Assim Falava Zaratustra", idéia que acalentou "tendo ciência de que não seria oportuna; no Brasil, não haveria público interessado nem interesse editorial". Outras publicações, entretanto, deram certo: a revista "Discurso", órgão oficial do departamento de filosofia da USP, teve em Scarlett Marton uma editora dedicada. "É lamentável", lemos numa nota de rodapé, "que os colegas que me sucederam no cargo de diretor-responsável -por negligência ou desleixo- dela tenham descuidado", fazendo com que a revista corra o risco, assim, "de ser descredenciada junto do programa de apoio aos periódicos da USP".
Se a universidade hoje se encontra degradada, nem todos os mestres de antigamente estariam a merecer gestos de carinho. "De [José Arthur] Giannotti, lembro-me bem. (...) Vez ou outra, num arroubo, ao ouvir uma pergunta que lhe parecia impertinente, não se furtava em mostrar ao interlocutor a sua asnice e chegava a fazer voar pela sala de aula giz e, certa vez, até apagador. Categórico, afirmava que naquela sala começava, de fato, o vestibular. Pois, para estar lá e lá permanecer, era preciso conhecer inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, além de grego e latim."


Colegas, alunos e instituições não saem ilesos do retrospecto


Bons tempos, quem sabe. Pois atualmente -e a voz da autora se impregna de dor intensa e genuína- "a formação humanista que tanto prezei não voltará; tampouco é possível preservá-la. A convicção de que filosofia e cultura se acham vinculadas ultrapassou o seu prazo de validade; não há como mantê-la".
A pesquisa filosófica tem seu âmbito diminuído, e esse fenômeno é "indício de sua falta de inserção num universo que lhe dê sentido; é sintoma da ausência de um projeto intelectual". Com certo malabarismo vocabular, Scarlett Marton prossegue: "Porque vivemos num mundo sem referentes, faz-se desnecessário no correr da pesquisa o recurso a obras de referência. Não há mais como levar em conta a fortuna crítica. Abandonam-se os comentadores de peso (...), parece igualmente desnecessário trabalhar com os originais, apreciar o caráter das distintas edições, avaliar a qualidade das diferentes traduções".

Disposições sombrias
Livro corajoso, como observa o filósofo Renato Janine Ribeiro na contracapa. Mas não estaria tomado por um estado de espírito excessivamente derrotista, queixoso e mesmo ressentido, para usar um termo de graves implicações entre os nietzschianos? E como conciliar a admiração pelo autor de "A Gaia Ciência" com disposições tão sombrias? O interesse de "A Irrecusável Busca do Sentido" se torna maior justamente em razão desse contraste. Scarlett Marton discorda dos intérpretes que vêem em Nietzsche um "filósofo da afirmação jubilosa", esquecendo seu imperativo de uma "aceitação incondicional do sofrimento como parte integrante da existência".
A autora explica de que modo sua análise de Nietzsche difere das leituras em voga na década de 1980. Não existe em sua obra apenas a face corrosiva e iconoclasta, privilegiada por autores como [Michel] Foucault [1926-84] e [Gilles] Deleuze [1925-95] mas também "uma cosmologia que pretendia apoiar-se em dados científicos", bem ao gosto do século 19. Nietzsche precisaria ser entendido no contexto de seu tempo, o que de certa forma implica apontar as limitações de seu pensamento.
O jogo entre positivismo darwinista e crítica radical dos valores, presente na obra de Nietzsche, também organiza esta autobiografia intelectual. De um lado, trata-se de uma "irrecusável busca do sentido", como diz o título, em que [Jean-Paul] Sartre [1905-80] e Nietzsche inspiram a autora a buscar uma unidade do sujeito "que não é pressuposta nem adquirida, mas conquistada."
De fato, Scarlett Marton enfatiza a idéia de uma subjetividade que surge "de múltiplos atos de consciência. Constituindo-se na relação com o mundo, não conhece trégua ou termo; ela se desfaz, se refaz, sem nenhuma garantia", mostrando que em Sartre (e em Nietzsche) podemos ver um sujeito que é descontinuidade, fuga e ruptura, fenda, dilaceramento e explosão.
Se isso pressupõe um exercício do risco e da liberdade, há que considerar entretanto que o mundo das determinações darwinistas está à espreita, não apenas na selva tropical como também nos bosques da academia. Chama a atenção, no livro de Scarlett Marton, a quantidade de vezes em que se repete a palavra "sobrevivência", num sentido às vezes negativo, outras não.

"Noites de terror"
O desafio de construir um sentido para a própria vida, como no caso do Orestes de "As Moscas", que a autora cita no ensaio que completa o volume, implica encarar a morte de Deus e -digamos- até mesmo a morte de Nietzsche. A autora rememora uma viagem a Weimar em 1994, quando passou "quatro noites de terror" hospedada no próprio quarto em que Nietzsche morreu.
"Aterrorizada, via diluírem-se as máscaras a que recorrera por tanto tempo; haveria um rosto por trás delas? Via, aterrorizada, desmontar-se uma identidade; haveria outra?" Em outra passagem, o balanço se torna ainda mais pessimista: "Tomei por causa o que não passava de projeto; em causa converti o que não era mais que experimento. Bem mais, abracei como causa interesses de outros e até veleidades alheias".
Scarlett Marton conclui: "Hoje, digo, sem uma ponta de insolência: sobrevivi". Não deve ter sido fácil.

A Irrecusável Busca de Sentido
286 págs., R$ 36,00
de Scarlett Marton. Ed. Unijuí/Ateliê (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/ xx/11/ 4612-9666).


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