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"Brasil e Argentina", de Boris Fausto e Fernando Devoto, confronta
os pontos em comum dos dois países desde o século 19 até o 21
A angústia da influência
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
A história comparada passou
muito tempo sendo recebida de cara feia entre muitos
historiadores. Desde fins do
século 19 e ao longo do 20, muitos
defendiam que a comparação, tão
comum às ciências sociais, impedia
o conhecimento único do passado,
considerado essencial para legitimar
a história como ciência.
Ao decidir comparar mais de 150
anos de história de Brasil e Argentina, Boris Fausto e Fernando Devoto
agarraram-se aos argumentos de
Marc Bloch, um dos fundadores da
escola dos Annales e defensor do
comparativismo como instrumento
essencial ao historiador.
Bloch (1886-1944) sugeria alguns
requisitos para seu uso, a saber, que
houvesse similaridade entre os fatos
observados, uma certa dessemelhança dos ambientes e fossem comparadas sociedades próximas no
tempo e no espaço que exercessem
influência mútua.
Não é preciso rastrear muito o passado de Brasil e Argentina para perceber que tais requisitos encontram-se perfeitamente nos dois países.
Ambos passaram por processos de
ruptura em 1930, tiveram líderes populistas nas figuras de Juan Perón e
Getúlio Vargas, atravessaram ditaduras militares e, hoje, enfrentam os
dilemas da economia globalizada.
"Brasil e Argentina - Um Ensaio de
História Comparada" foi escrito a
quatro mãos, duas brasileiras, as do
professor aposentado de ciência política da USP Boris Fausto, autor de
"A Revolução de 1930" [Cia. das Letras]; e duas argentinas, as do professor da Universidade de Buenos
Aires Fernando Devoto.
Se levar o tema para até apenas três
anos atrás (2002) é no mínimo polêmico do ponto de vista da análise
histórica, os autores se justificam
afirmando que aproximar a discussão do "calor dos acontecimentos"
permite a formulação de hipóteses.
Uma delas é a de que, a partir do
que se vive neste princípio de século,
se pode ver a atual aproximação política entre Brasil e Argentina com
otimismo.
Leia abaixo trechos da entrevista
que Boris Fausto concedeu à Folha,
em sua casa, em São Paulo.
Folha - O livro enfatiza o papel do
Estado na formação dos dois países.
Por essa via é possível entender por
que o Brasil tem hoje um sistema partidário mais forte, enquanto na Argentina tem mais relevo a sociedade
mobilizada?
Boris Fausto - No fim do século 19 e
no século 20 até 1930, quem tinha
um sistema de partidos maduro era
a Argentina. Havia, por exemplo, o
Partido Socialista, forte em Buenos
Aires, e a União Cívica Radical
(UCR), que deixou as tentativas de
golpe para disputar eleições e que
chegou, com Hipólito Yrigoyen [em
1916, derrotando facções conservadoras], ao poder. No Brasil, no mesmo período, não havia nada disso.
Folha - A Argentina amadureceu o
sistema democrático antes do Brasil
por causa da lei Saenz Peña [de 1912,
que estabeleceu o voto secreto e obrigatório]?
Fausto - Sem dúvida. No Brasil,
nessa mesma época, não tínhamos
nem sequer um partido nacional. Tínhamos a política do café-com-leite
e partidos regionais que mais pareciam clubes de notáveis. Em 1930, isso mudou. A Argentina viveu a chamada década infame e depois viu a
emergência do peronismo, que definiu o declínio dos partidos.
Há também um fenômeno curioso
a registrar. Quando, mais tarde, acabaram as ditaduras, países que tiveram um sistema partidário forte antes, como a Argentina e o Chile, viram voltar à cena partidos construídos há muito tempo. A UCR e o peronismo voltaram. Só que o peronismo já era a morte de um sistema
partidário.
E a UCR, com [Raul] Alfonsín e
com Fernando de la Rúa [levado a
renunciar em 2001] deu com os burros n'água.
Folha - A UCR, aliás, encerrou o século 20 colecionando desastres: Yrigoyen, Alfonsín, De la Rúa...
Fausto - Sim, mas diria que Yrigoyen foi só um semidesastre. Quando
ele chegou ao poder, era como se o
povo estivesse entrando com ele na
Casa Rosada. Mal comparando, sua
posse foi parecida com a de Lula.
Mas, de fato, ele se arrebentou no segundo mandato [1928-30].
Folha - E aqui, após a ditadura?
Fausto - Aqui os velhos partidos
não subsistiram. Construiu-se um
outro sistema partidário, que tem
mais pluralismo que o argentino hoje. Temos o fenômeno do PT, que
não existe lá e que é um avanço inegável. E temos mais diversificação,
embora muita coisa aqui ainda seja
caricatural.
Folha - O livro chama a atenção para
o fato de que a ruptura que houve na
Argentina, nos anos 30, voltou-se para trás, enquanto no Brasil ela se deu
para a frente. Pode explicar melhor?
Fausto - O golpe argentino de 1930
foi de ideologia conservadora e tinha
como lema o anti-yrigoyenismo. No
caso do Brasil, a Revolução de 30 foi
promovida em nome da liquidação
da oligarquia. Pelo menos para um
setor, ela representava a idéia de introduzir um regime democrático.
Isso acabou se frustrando com o
Estado Novo, em 1937. Mas, ainda
assim, houve uma perspectiva de
modernização na ruptura brasileira
que foi além dos regimes políticos. A
idéia da construção de um Brasil que
iria para a frente.
Enquanto isso, na Argentina, uma
figura que representasse essa mesma
transformação só surgiria mais tarde, com o peronismo.
Folha - A que se deve o distanciamento que vivem Brasil e Argentina
ao longo da história?
Fausto - É algo que começou a se
acirrar depois da Primeira Guerra
Mundial e que tem a ver com a economia. Ambos passaram, então, a
voltar seus olhos preferencialmente
para a Europa e os EUA.
Depois, houve uma retomada de
contatos favorecida, entre aspas, pelas ditaduras militares. Os exílios, as
semelhanças da violência e o encontro de gente na Europa aproximaram os dois países.
Folha - Também os militares se integraram nessa época...
Fausto - Isso mesmo, houve um lado obscuro dessa integração, que foi
a Operação Condor [plano concebido pelos regimes militares de Chile,
Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai para, mutuamente, perseguir
seus opositores].
Folha - E, hoje, o sr. é otimista a esse
respeito?
Fausto - Sim, há um impulso para
a integração pela tendência mundial
de formação de blocos. E até na área
cultural há um crescente interesse
mútuo. Mas o produto desse processo ainda não é significativo para
uma história comparativa. No caso
deste livro, nós tivemos a pretensão
de, pelo menos, abrir um caminho.
Brasil e Argentina
286 págs., R$ 36,00
de Boris Fausto e Fernando J. Devoto. Ed. 34
(r. Hungria, 592, CEP 01455-000, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/ 11/3816-6777).
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