São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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"Brasil e Argentina", de Boris Fausto e Fernando Devoto, confronta os pontos em comum dos dois países desde o século 19 até o 21

A angústia da influência

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

A história comparada passou muito tempo sendo recebida de cara feia entre muitos historiadores. Desde fins do século 19 e ao longo do 20, muitos defendiam que a comparação, tão comum às ciências sociais, impedia o conhecimento único do passado, considerado essencial para legitimar a história como ciência.
Ao decidir comparar mais de 150 anos de história de Brasil e Argentina, Boris Fausto e Fernando Devoto agarraram-se aos argumentos de Marc Bloch, um dos fundadores da escola dos Annales e defensor do comparativismo como instrumento essencial ao historiador.
Bloch (1886-1944) sugeria alguns requisitos para seu uso, a saber, que houvesse similaridade entre os fatos observados, uma certa dessemelhança dos ambientes e fossem comparadas sociedades próximas no tempo e no espaço que exercessem influência mútua.
Não é preciso rastrear muito o passado de Brasil e Argentina para perceber que tais requisitos encontram-se perfeitamente nos dois países. Ambos passaram por processos de ruptura em 1930, tiveram líderes populistas nas figuras de Juan Perón e Getúlio Vargas, atravessaram ditaduras militares e, hoje, enfrentam os dilemas da economia globalizada.
"Brasil e Argentina - Um Ensaio de História Comparada" foi escrito a quatro mãos, duas brasileiras, as do professor aposentado de ciência política da USP Boris Fausto, autor de "A Revolução de 1930" [Cia. das Letras]; e duas argentinas, as do professor da Universidade de Buenos Aires Fernando Devoto.
Se levar o tema para até apenas três anos atrás (2002) é no mínimo polêmico do ponto de vista da análise histórica, os autores se justificam afirmando que aproximar a discussão do "calor dos acontecimentos" permite a formulação de hipóteses.
Uma delas é a de que, a partir do que se vive neste princípio de século, se pode ver a atual aproximação política entre Brasil e Argentina com otimismo.
Leia abaixo trechos da entrevista que Boris Fausto concedeu à Folha, em sua casa, em São Paulo.

 

Folha - O livro enfatiza o papel do Estado na formação dos dois países. Por essa via é possível entender por que o Brasil tem hoje um sistema partidário mais forte, enquanto na Argentina tem mais relevo a sociedade mobilizada?
Boris Fausto -
No fim do século 19 e no século 20 até 1930, quem tinha um sistema de partidos maduro era a Argentina. Havia, por exemplo, o Partido Socialista, forte em Buenos Aires, e a União Cívica Radical (UCR), que deixou as tentativas de golpe para disputar eleições e que chegou, com Hipólito Yrigoyen [em 1916, derrotando facções conservadoras], ao poder. No Brasil, no mesmo período, não havia nada disso.

Folha - A Argentina amadureceu o sistema democrático antes do Brasil por causa da lei Saenz Peña [de 1912, que estabeleceu o voto secreto e obrigatório]?
Fausto -
Sem dúvida. No Brasil, nessa mesma época, não tínhamos nem sequer um partido nacional. Tínhamos a política do café-com-leite e partidos regionais que mais pareciam clubes de notáveis. Em 1930, isso mudou. A Argentina viveu a chamada década infame e depois viu a emergência do peronismo, que definiu o declínio dos partidos.
Há também um fenômeno curioso a registrar. Quando, mais tarde, acabaram as ditaduras, países que tiveram um sistema partidário forte antes, como a Argentina e o Chile, viram voltar à cena partidos construídos há muito tempo. A UCR e o peronismo voltaram. Só que o peronismo já era a morte de um sistema partidário.
E a UCR, com [Raul] Alfonsín e com Fernando de la Rúa [levado a renunciar em 2001] deu com os burros n'água.

Folha - A UCR, aliás, encerrou o século 20 colecionando desastres: Yrigoyen, Alfonsín, De la Rúa...
Fausto -
Sim, mas diria que Yrigoyen foi só um semidesastre. Quando ele chegou ao poder, era como se o povo estivesse entrando com ele na Casa Rosada. Mal comparando, sua posse foi parecida com a de Lula. Mas, de fato, ele se arrebentou no segundo mandato [1928-30].

Folha - E aqui, após a ditadura?
Fausto -
Aqui os velhos partidos não subsistiram. Construiu-se um outro sistema partidário, que tem mais pluralismo que o argentino hoje. Temos o fenômeno do PT, que não existe lá e que é um avanço inegável. E temos mais diversificação, embora muita coisa aqui ainda seja caricatural.

Folha - O livro chama a atenção para o fato de que a ruptura que houve na Argentina, nos anos 30, voltou-se para trás, enquanto no Brasil ela se deu para a frente. Pode explicar melhor?
Fausto -
O golpe argentino de 1930 foi de ideologia conservadora e tinha como lema o anti-yrigoyenismo. No caso do Brasil, a Revolução de 30 foi promovida em nome da liquidação da oligarquia. Pelo menos para um setor, ela representava a idéia de introduzir um regime democrático.
Isso acabou se frustrando com o Estado Novo, em 1937. Mas, ainda assim, houve uma perspectiva de modernização na ruptura brasileira que foi além dos regimes políticos. A idéia da construção de um Brasil que iria para a frente.
Enquanto isso, na Argentina, uma figura que representasse essa mesma transformação só surgiria mais tarde, com o peronismo.

Folha - A que se deve o distanciamento que vivem Brasil e Argentina ao longo da história?
Fausto -
É algo que começou a se acirrar depois da Primeira Guerra Mundial e que tem a ver com a economia. Ambos passaram, então, a voltar seus olhos preferencialmente para a Europa e os EUA.
Depois, houve uma retomada de contatos favorecida, entre aspas, pelas ditaduras militares. Os exílios, as semelhanças da violência e o encontro de gente na Europa aproximaram os dois países.

Folha - Também os militares se integraram nessa época...
Fausto -
Isso mesmo, houve um lado obscuro dessa integração, que foi a Operação Condor [plano concebido pelos regimes militares de Chile, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai para, mutuamente, perseguir seus opositores].

Folha - E, hoje, o sr. é otimista a esse respeito?
Fausto -
Sim, há um impulso para a integração pela tendência mundial de formação de blocos. E até na área cultural há um crescente interesse mútuo. Mas o produto desse processo ainda não é significativo para uma história comparativa. No caso deste livro, nós tivemos a pretensão de, pelo menos, abrir um caminho.


Brasil e Argentina
286 págs., R$ 36,00
de Boris Fausto e Fernando J. Devoto. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3816-6777).


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