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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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Mel e sangue

Juan José Saer

Em 1951, em um artigo intitulado "O Kitsch", Hermann Broch escreveu que o kitsch é facilmente identificado com a mentira, mas que a culpa recai também sobre o homem que necessita desse espelho mentiroso para nele se reconhecer e, não sem certa satisfação, tomar partido de sua falsidade. Mais adiante adverte: "Vale lembrar que o kitsch moderno está longe de ter encerrado sua carreira vitoriosa e que continua a se derramar em mel e sangue, sobretudo no cinema". Não apenas no cinema. Quase todos os aspectos da atualidade estão saturados de kitsch, a tal ponto que se tornou um valor de referência, tanto no plano artístico como no cerimonial, e é praticamente impossível diferenciá-lo da sociedade mesma. No plano artístico, seria absurdo e até injusto citar exemplos, pois, a bem da verdade, quase ninguém poderia atirar a primeira pedra, e os dois ou três bodes expiatórios que acusássemos publicamente de praticar o kitsch teriam de ser escolhidos ao acaso, dentro de uma lista tão extensa que, por falta de espaço, permaneceria a salvo da denúncia. Não há dúvida de que a comunicação de massa é em grande parte responsável por essa situação, mas o discurso e os ritos governamentais, a linguagem diplomática, o Carnaval acadêmico etc. etc. também têm algo a ver com ela. Além disso, o destinatário de todo esse aparato, com a insaciável fome de mau gosto que Broch lhe atribui com tanta pertinência, está muito longe de ser uma vítima inocente. Para falar com propriedade, deveríamos dizer não que o kitsch nasceu na Alemanha e no século 19 (como faz a história da arte), e sim que foi identificado ali, como um vírus que assume formas mais ou menos variadas em diferentes latitudes, mas que tem um ou mais elementos comuns que constituem sua identidade biológica. O contraste de "mel e de sangue" é kitsch, mas também pode sê-lo a irrupção do poético no discurso político ou diplomático, como na expressão "la paix des braves" (a paz dos bravos), que pretende dar um sentido épico à interrupção momentânea de uma série de atos sanguinários perpetrados pelos beligerantes, que se autoqualificam de valentes, com as armas mais covardes, imorais e traiçoeiras. O kitsch dessa expressão não reside na sua hipocrisia, que se aceita como um fato dado, mas no tom descaradamente poético que se imprime ao eufemismo.

Incêndio de Roma
Em seu belo artigo, Hermann Broch comenta de passagem que, não por acaso, Hitler e seu predecessor, o kaiser Guilherme 2º, eram fervorosos adeptos do kitsch, e que Nero o praticou em suas mil facetas, incluído o incêndio de Roma. Aos olhos do imperador, o "espetáculo dos cristãos transformados em tochas vivas nos jardins imperiais devia ter certas tonalidades artísticas, desde que se abstraíssem os gritos de dor das vítimas". Mas esses são casos extremos. Não devemos esquecer que, assim como Hitler, Winston Churchill também pintava quadros e que, quando escreveu suas memórias (que lhe valeram o Prêmio Nobel de Literatura), escolheu o seguinte título para o volume que narrava a iminência da Segunda Guerra Mundial: "The Gathering Storm". No caso de Nero e Hitler, falar em kitsch parece insuficiente. Talvez fosse melhor aplicar-lhes a expressão que Roland Barthes cunhou para definir o estilo de Tácito: "Barroco fúnebre". Agora, no marco da cultura ocidental e onde quer que seus efeitos se manifestem, praticamente não existe esfera oficial onde o discurso, o aparato, a retórica, não estejam sempre, como diz Broch, "resvalando para a fronteira onde começa a pacotilha".

Cerimônias de posse
Quando sabemos que quem chega ao poder fará com ele o que bem entender, na democracia como em qualquer outro sistema, as cerimônias de posse se tornam inexoravelmente kitsch. E elas sempre o são um pouco, por mais que o virtuoso dignitário que jure perante a bandeira, a Constituição ou a Bíblia tenha a intenção de cumprir suas promessas.
O elemento sagrado das cerimônias políticas é kitsch em si mesmo, é o mel que se mistura com o sangue. Sua sobrevivência é mais uma questão de propaganda do que de rotina -ou, pior ainda, de crença-, mas uma propaganda tão introjetada que até seus beneficiários a consideram uma tradição sagrada.


Mais associado à arte, o kitsch acabou por saturar todas as áreas da vida moderna, como a política e a universidade


Os mesmos que hoje querem acabar de uma vez por todas com o Estado sentem seu coração bater mais forte quando ouvem o hino nacional. O protocolo do kitsch às vezes pode ser complicado. Faz alguns anos, o Exército alemão foi convidado a participar da parada militar do 14 de julho francês, o que provocou uma forte polêmica. Uma única pessoa, que viu o lado kitsch da coisa, teve a perspicácia de responder: "Eu sou a favor da participação dos alemães na parada, mas sou contra as paradas militares".
O kitsch sempre traz um efeito de anacronismo, como nos faroestes, onde uma escaramuça entre caubóis e índios rebeldes é invariavelmente acompanhada de música sinfônica; ou na arquitetura monumental pós-moderna, em que um enorme arranha-céu termina nas alturas em forma de templete grego ou de pirâmide vagamente maia ou asteca. No kitsch em escala governamental, o olho atento logo percebe que o que introduz o anacronismo é a razão de Estado.
Se, com o pretexto de que o destinatário aprecia o kitsch, alguém argumenta, porém, que a representação estatal é necessária para que os governados se identifiquem com os símbolos do governo, podemos responder que o bom governante seria antes aquele que induzisse os governados a aprovar ou desaprovar seus atos racionalmente, e não a se conformar cegamente com a duvidosa retórica do Estado. Quem governa, porém, também navega no barco que deriva para as ilhas de Pacotilha, como todo mundo. Mas com uma grande e preocupante diferença: eles seguem convencidos de terem o leme bem firme nas mãos.
O kitsch governamental dá emprego a muita gente, que poderíamos chamar de artistas de utilidade pública: dos que decoram a cidade para as festas até os que constroem pontes e ministérios, passando por quem desenha selos, cunha medalhas de honra ao mérito ou executa os monumentos que surgem da noite para o dia nos cruzamentos ou nas praças.
Mas os principais artistas são os próprios dirigentes, capazes de interpretar vários papéis, lendo textos escritos por outros ou trocando de roupa e de comportamento conforme as circunstâncias -férias, discurso para a nação etc.-, sempre mediante esquemas estudados e invariáveis. Tudo isso seria risível (e, em pequena escala, é mesmo), mas num mundo diferente. No nosso, essas mascaradas podem terminar em massacre.
Talvez o fenômeno kitsch mais chamativo seja a devoção do povo norte-americano por sua bandeira, uma fixação obsessiva anterior a 11 de setembro, que é bastante curiosa quando se sabe que, nos EUA, cada vez menos cidadãos vão às urnas. Mas os norte-americanos põem sua bandeira em tudo, das placas dos automóveis até os túmulos.
Os presidentes põem a mão no coração diante da bandeira, ainda que com estilos diferentes. O gesto de Bill Clinton sugeria distensão e simplicidade, um estilo de interpretação desdramatizada, que era em geral o estilo de suas aparições públicas. O de George W. Bush, ao contrário, transpira solenidade: a bandeira, a mão no coração, os lábios cerrados, o queixo saliente, a intensidade sagrada da situação, nenhum dos ingredientes do kitsch governamental foi esquecido.
Podem dizer que é puro teatro, mas, fingida ou autêntica, essa gravidade excessiva instaura um clima de ameaça. É bom permanecermos atentos porque, como aconteceu tantas outras vezes, quando se exageram os traços dessa retórica rançosa, começam a se insinuar, impacientes e ávidas, as presas da besta.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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