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Liberdade vigiada
Filósofo descarta argumentos religiosos e científicos e diz que decisão sobre uso de embriões
deve ser exclusivamente dos genitores
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Também quero pôr o
bedelho nessa discussão sobre as pesquisas
com células-tronco.
Aqueles que são
contra invocam o caráter sagrado da vida que já estaria pulsando nessas células humanas.
É muito estranho, entretanto, que muitos deles aceitem e
até mesmo aplaudam a pena de
morte, sendo que alguns chegam a se entusiasmar com o
envio de tropas para combater
o eixo do mal.
E a Igreja Católica, cujos manifestos sobre o pecado de instrumentalizar a vida são os
mais calorosos, no fundo tem
responsabilidade de vir a público para explicar como tem convivido com a pena de morte e
com as guerras santas.
Do ponto de vista biológico, a
vida se resolve em ciclos de
nascimento e devoração. Todos achamos natural comermos carnes e ovos e, no caso de
extrema necessidade, até mesmo a antropofagia tem sido justificada. No limite da sobrevivência, um ser humano fica liberado para comer os restos
mortais de outrem. Biólogos
hoje dizem que a vida começa
na formação do zigoto, mas, como tudo em ciência, o dizem
sob a forma de hipóteses, de
proposições que, a despeito de
serem afirmadas atualmente
com certeza, podem ser reformuladas a partir de novos dados.
Exaltação da vida
São mais emaranhadas as
opiniões dos filósofos a respeito da vida.
Um dos maiores filósofos que
a exaltaram foi sem dúvida
Nietzsche. Para reafirmá-la, diz
ele, cabe recusar as oposições
esclerosadas do bem e do mal,
apostar na vontade de criar um
mundo melhor, onde cada um
afirma fortemente os lados
mais criativos de sua subjetividade. Nem por isso questiona
seu lado corrosivo.
No aforismo 26 de "A Gaia
Ciência", escreve: "O que é viver? Viver?... É constantemente afastar de si o que quer morrer. Viver?... É ser cruel, é ser
impiedoso contra tudo o que
envelhece e se enfraquece em
nós e alhures. Viver? ... É pois
não ter piedade pelos agonizantes, os velhos e os miseráveis? É
assassinar sem descanso?... E,
no entanto, o velho Moisés disse "Não matarás'".
Convém refletir sobre esse
texto. Viver não é ter medo da
morte, mas se afastar dela. O
animal é impiedoso com sua
presa, mas não o é porque ela
ou ele mesmo envelhecem. A
potência do viver vai além da
luta cruel pela sobrevivência da
espécie.
Não é por isso, contudo, que
se deva ser impiedoso com todos aqueles que se enfraquecem ao cumprirem seu ciclo vital. Não se estaria assim contrariando a própria vida que já toma o indivíduo no eterno retorno do mesmo? Mas se a vida
não se esgota no nível biológico, ela não se instala na crueldade da disputa, na afirmação
guerreira de si, na imposição da
vontade do mais forte?
No âmbito desse tipo de ação
o vivente se instala no nível da
religião e da moral e, desse modo, não pode se esquivar do
mandamento do velho Moisés.
No entanto, o que ele não deve matar? O animal que come?
O animal homem? A pergunta
está defasada, pois fica proibido
de liquidar o homem religioso e
moral, aquele que vai além de si
mesmo a partir do fato que ele
é. Para respeitar essa transcendência, precisa ir além da religião e da moral instituída, recusar o mistério bem falante e as
normas do pastoreio do bom
comportamento.
Viver se mostra então a firme
disposição, a vontade de desenvolver a si mesmo, o espírito da
eterna renovação que se faz
mesma porque ama o fato de
ser além de si.
O que tem a ver a disputa sobre o uso de embriões com essas fabulações filosóficas? Não
sou ingênuo a ponto de imaginar que uma decisão dessa espécie poderia ser tomada tendo
por base tais especulações, por
mais profundas que sejam. Mas
essas servem para tirar o cisco
do caminho.
Em resumo: tentei mostrar
que a decisão não pode vir da
argumentação científica. Se esta é um tecido de hipóteses, serve para o entendimento provisório do universo e para orientar como podemos instrumentalizar um pedaço do mundo,
sem que possa discriminá-lo.
Muito menos da filosofia, mesmo daquelas que têm a vida como foco de inspiração.
O homem além dele mesmo,
um eterno experimentador,
não saberá decidir o que fazer
com os embriões congelados.
Direito positivo
Mas o direito sagrado da vida? Não é preciso saber onde
ela começa para que ele possa
ser respeitado? Mas, enquanto
"direito", a questão vem a ser
transposta para o nível da liberdade. Desse ponto de vista, os
embriões são propriedade de
seus genitores.
E, até mesmo segundo o conceito liberal de propriedade,
são eles quem têm o direito de
determinar seu destino, seja
para o congelamento até o fim
dos séculos, seja para o uso
científico, seja para o lixo.
Note-se que nem mesmo estou invocando a teoria moderna do uso social da propriedade. Desse ponto de vista, os genitores têm o direito sobre pedaços de seus corpos até que esses possam ter desenvolvimento autônomo, cortados os laços
de quem os juntou. E não é nesse nível que a questão já está
posta, porquanto será o Supremo Tribunal Federal que decidirá a disputa?
Essa linha de raciocínio não
terminaria defendendo o infanticídio? De novo a questão
está mal posta. A liberdade de
qualquer um de nós se exerce
como liberdade regulada pelo
direito positivo, que por sua
vez se move nesta ou naquela
direção conforme o tipo de sociedade que queremos ter.
É por isso que devemos indagar: qual é a sociedade que nós
brasileiros queremos ter?
Aquela que cuida da preservação de embriões congelados ou
que cuida dos doentes que necessitam de novas terapias?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da Universidade de São Paulo e coordenador da
área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento. Escreve na seção "Autores".
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