São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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Liberdade vigiada

Filósofo descarta argumentos religiosos e científicos e diz que decisão sobre uso de embriões deve ser exclusivamente dos genitores

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Também quero pôr o bedelho nessa discussão sobre as pesquisas com células-tronco. Aqueles que são contra invocam o caráter sagrado da vida que já estaria pulsando nessas células humanas. É muito estranho, entretanto, que muitos deles aceitem e até mesmo aplaudam a pena de morte, sendo que alguns chegam a se entusiasmar com o envio de tropas para combater o eixo do mal.
E a Igreja Católica, cujos manifestos sobre o pecado de instrumentalizar a vida são os mais calorosos, no fundo tem responsabilidade de vir a público para explicar como tem convivido com a pena de morte e com as guerras santas.
Do ponto de vista biológico, a vida se resolve em ciclos de nascimento e devoração. Todos achamos natural comermos carnes e ovos e, no caso de extrema necessidade, até mesmo a antropofagia tem sido justificada. No limite da sobrevivência, um ser humano fica liberado para comer os restos mortais de outrem. Biólogos hoje dizem que a vida começa na formação do zigoto, mas, como tudo em ciência, o dizem sob a forma de hipóteses, de proposições que, a despeito de serem afirmadas atualmente com certeza, podem ser reformuladas a partir de novos dados.

Exaltação da vida
São mais emaranhadas as opiniões dos filósofos a respeito da vida. Um dos maiores filósofos que a exaltaram foi sem dúvida Nietzsche. Para reafirmá-la, diz ele, cabe recusar as oposições esclerosadas do bem e do mal, apostar na vontade de criar um mundo melhor, onde cada um afirma fortemente os lados mais criativos de sua subjetividade. Nem por isso questiona seu lado corrosivo.
No aforismo 26 de "A Gaia Ciência", escreve: "O que é viver? Viver?... É constantemente afastar de si o que quer morrer. Viver?... É ser cruel, é ser impiedoso contra tudo o que envelhece e se enfraquece em nós e alhures. Viver? ... É pois não ter piedade pelos agonizantes, os velhos e os miseráveis? É assassinar sem descanso?... E, no entanto, o velho Moisés disse "Não matarás'".
Convém refletir sobre esse texto. Viver não é ter medo da morte, mas se afastar dela. O animal é impiedoso com sua presa, mas não o é porque ela ou ele mesmo envelhecem. A potência do viver vai além da luta cruel pela sobrevivência da espécie.
Não é por isso, contudo, que se deva ser impiedoso com todos aqueles que se enfraquecem ao cumprirem seu ciclo vital. Não se estaria assim contrariando a própria vida que já toma o indivíduo no eterno retorno do mesmo? Mas se a vida não se esgota no nível biológico, ela não se instala na crueldade da disputa, na afirmação guerreira de si, na imposição da vontade do mais forte?
No âmbito desse tipo de ação o vivente se instala no nível da religião e da moral e, desse modo, não pode se esquivar do mandamento do velho Moisés.
No entanto, o que ele não deve matar? O animal que come? O animal homem? A pergunta está defasada, pois fica proibido de liquidar o homem religioso e moral, aquele que vai além de si mesmo a partir do fato que ele é. Para respeitar essa transcendência, precisa ir além da religião e da moral instituída, recusar o mistério bem falante e as normas do pastoreio do bom comportamento.
Viver se mostra então a firme disposição, a vontade de desenvolver a si mesmo, o espírito da eterna renovação que se faz mesma porque ama o fato de ser além de si.
O que tem a ver a disputa sobre o uso de embriões com essas fabulações filosóficas? Não sou ingênuo a ponto de imaginar que uma decisão dessa espécie poderia ser tomada tendo por base tais especulações, por mais profundas que sejam. Mas essas servem para tirar o cisco do caminho.
Em resumo: tentei mostrar que a decisão não pode vir da argumentação científica. Se esta é um tecido de hipóteses, serve para o entendimento provisório do universo e para orientar como podemos instrumentalizar um pedaço do mundo, sem que possa discriminá-lo.
Muito menos da filosofia, mesmo daquelas que têm a vida como foco de inspiração. O homem além dele mesmo, um eterno experimentador, não saberá decidir o que fazer com os embriões congelados.

Direito positivo
Mas o direito sagrado da vida? Não é preciso saber onde ela começa para que ele possa ser respeitado? Mas, enquanto "direito", a questão vem a ser transposta para o nível da liberdade. Desse ponto de vista, os embriões são propriedade de seus genitores.
E, até mesmo segundo o conceito liberal de propriedade, são eles quem têm o direito de determinar seu destino, seja para o congelamento até o fim dos séculos, seja para o uso científico, seja para o lixo.
Note-se que nem mesmo estou invocando a teoria moderna do uso social da propriedade. Desse ponto de vista, os genitores têm o direito sobre pedaços de seus corpos até que esses possam ter desenvolvimento autônomo, cortados os laços de quem os juntou. E não é nesse nível que a questão já está posta, porquanto será o Supremo Tribunal Federal que decidirá a disputa? Essa linha de raciocínio não terminaria defendendo o infanticídio? De novo a questão está mal posta. A liberdade de qualquer um de nós se exerce como liberdade regulada pelo direito positivo, que por sua vez se move nesta ou naquela direção conforme o tipo de sociedade que queremos ter.
É por isso que devemos indagar: qual é a sociedade que nós brasileiros queremos ter? Aquela que cuida da preservação de embriões congelados ou que cuida dos doentes que necessitam de novas terapias?

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da Universidade de São Paulo e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores".


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