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Renascidos das cinzas
Sediada em Buenos Aires, Equipe de Antropologia Forense busca recuperar os restos mortais e a memória dos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983
Leonardo Wen - 30.abr.2007/Folha Imagem
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Mirta Acuña de Baravalle, fundadora das Mães da Praça de Maio, em passeata em Buenos Aires para lembrar as vítimas |
LEILA GUERRIERO
M
ilhares de pessoas executadas e enterradas em cemitérios clandestinos durante a ditadura militar
argentina. E uma equipe jovem
e eclética, formada em torno de
um texano peculiar, dedicada a
identificar seus restos mortais.
É essa a história da Equipe de
Antropologia Forense, um coletivo humano que rastreia as
pegadas do horror.
O local não é grande: quatro
metros por quatro, apenas, e
uma janela pela qual entra uma
luz pastosa. O teto é alto. As paredes, brancas, mas sem muito
esmero. O apartamento -antigo, em pleno Once, bairro comercial de Buenos Aires- é
discreto: ninguém chega a ele
por equívoco.
O piso de madeira está recoberto de jornais, e, sobre eles,
há um pulôver listrado -rasgado-, um calçado retorcido,
com língua endurecida, e algumas meias.
Todo o resto são ossos. Tíbias e fêmures, vértebras e crânios, pelves, mandíbulas, os
dentes, costelas em pedaços.
São quatro horas da tarde de
uma quinta-feira de novembro.
Patrícia Bernardi está parada
no vão da porta. Tem olhos
grandes e cabelos curtos. Ela
toma um fêmur fino e o apóia
sobre sua coxa. "Os ossos de
mulher são delicados."
Entre 1976 e dezembro de
1983, a ditadura militar na Argentina seqüestrou e executou
milhares de pessoas, que foram
enterradas como NN (indigentes? anônimos?) em cemitérios
e túmulos clandestinos.
Em maio de 1984, já com o
regime democrático, chegaram
ao país sete membros da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Entre eles,
um antropólogo forense -especialista na identificação de
restos ósseos, que consegue ler
neles os rastros de vida e morte-, de nome Clyde Snow.
Nascido no Texas em 1928,
Snow já tinha prestígio por ter
identificado os restos mortais
de Josef Mengele no Brasil.
Nessa primeira viagem, deu
uma palestra sobre ciência forense e desaparecidos, e a tradutora, aturdida com a quantidade de termos técnicos intraduzíveis, renunciou na metade.
Então um homem loiro e carismático se apresentou, dizendo: "Posso fazer a tradução, eu
sei inglês". E foi assim que
Morris Tidball Binz, estudante
de medicina de 26 anos, surgiu
na vida de Clyde Snow.
Nas semanas seguintes, embora não tivesse ido à Argentina para isso, Snow participou
de algumas exumações, a pedido de um juiz.
Exumar o Che
No mês de junho, quando teve que exumar sete corpos de
um cemitério da periferia, decidiu enviar uma carta à Faculdade de Antropologia, pedindo
uma colaboração. Mas não teve
resposta. E foi então que Morris Tidball Binz disse: "Tenho
alguns amigos".
Os amigos de Morris eram
um: chamava-se Douglas Carins, estudava antropologia na
Universidade de Buenos Aires
e disseminou entre seus colegas -Patrícia Bernardi, Luis
Fondebrider, Mercedes Doretti- a mensagem "há um gringo
procurando pessoas para exumar restos de desaparecidos".
E foi assim que, numa tarde
de 1984, os três estudantes tiveram um encontro com Clyde
Snow -e com Morris Tidball
Binz- num hotel do centro de
Buenos Aires.
Entre 1984 e 1989, Clyde
Snow passou mais de 20 meses
na Argentina, e em cada uma de
suas viagens os estudantes o
acompanharam em exumações, mergulhando pouco a
pouco nessa profissão que não
tinha antecedentes nem prestígio no país. Em 1988, quando o
grupo foi convocado para escavar no setor 134 do cemitério de
Avellaneda, um subúrbio de
Buenos Aires onde os militares
haviam enterrado centenas de
corpos, poucos deles tinham
mais de 22 anos.
A vala de Avellaneda permaneceu aberta por dois anos, e
dela o grupo tirou 336 corpos,
quase todos com ferimentos de
bala no crânio. Muitos deles
ainda não foram identificados.
Desde então, a equipe já trabalhou em mais de 30 países,
contratada pela ONU, pelo Comitê Internacional da Cruz
Vermelha e pela comissão para
a busca dos restos mortais de
Che Guevara, entre outros.
Por muito tempo não foram
mais de 12, mas a possibilidade
de aplicar as técnicas de DNA
aos ossos obrigou a equipe a incorporar muitos novos integrantes. Hoje, eles são 37 e, do
grupo original, restam apenas
Luis Fondebrider, Mercedes
Doretti e Patrícia Bernardi.
A Equipe de Antropologia
Forense tem sua sede em dois
apartamentos idênticos no primeiro e segundo andares de um
edifício antigo, de estilo francês, do bairro de Once.
Sofía Egaña -que faz parte
da equipe desde 1999- dá um
clique com o mouse, e uma foto
se abre na tela de seu computador: um crânio. Outro clique: o
crânio e seu orifício.
"Há mais de 11 anos eu viajo
sem parar. Não tenho armário
-tenho duas malas. Mas, quando a gente junta o osso à história, tudo ganha sentido."
No andar de cima, o escritório de Silvana Turner está repleto de caixas marcadas "Kosovo", "Togo", "África do Sul"
ou "Timor". É o roteiro dos
maiores massacres do século
passado. Silvana tem cabelos
curtos e o rosto limpo.
Nesses anos, a equipe já conseguiu 300 identificações com
restituição dos restos mortais e
conheceu o destino de outras
300 pessoas cujos corpos nunca foram encontrados.
A poucos metros dali, numa
sala contígua, há mais caixas,
estas rotuladas com nomes de
cemitérios: "La Plata", "San
Martín", "Ezpeleta", "Lomas de
Zamora", "Ezeiza"...
Corpos de crianças
Patrícia Bernardi tem o tom
doce ao falar. Em 2007, quando
se completaram 40 anos da
morte de Che Guevara, a imprensa tirou suas máquinas de
calcular efemérides, e todas
apontaram para os membros
da equipe, que, atendendo a
convite do governo de Cuba, tinham estado ali.
"Às vezes me sinto obrigada a
dizer que foi motivo de orgulho
para mim ter participado dessa
exumação, mas foi tudo muito
tenso. E foram os cubanos que
encontraram a cova."
"Nós estivemos lá por cinco
meses e voltamos quando encontraram a cova de Guevara,
em julho de 1997. Para mim, o
que marcou muito, antes e depois, foi El Petén, na Guatemala. Lá, em 1982, um pelotão do
Exército executou centenas de
moradores do povoado. Tiramos 162 corpos de uma vala."
"Em sua maioria, crianças de
menos de 12 anos. E não apresentavam ferimentos de bala,
porque, para economizar projéteis, eles batiam a cabeça das
crianças contra a beirada do
poço e as jogavam para dentro.
Chega um momento em que
você se acostuma com os ossinhos pequenos, pois são bonitos, perfeitos. Mas o que fazia a
gente voltar à realidade era
aquilo a que estava associado."
Em 2007, a equipe, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Ministério da Saúde firmaram um convênio para a
criação de um banco de dados
genéticos de familiares de desaparecidos, por meio de uma
campanha que solicita uma
amostra de sangue para cotejar
o DNA com os restos mortais
de 600 pessoas que ainda não
puderam ser identificadas.
O projeto se intitula Iniciativa Latino-americana para a
Identificação de Pessoas Desaparecidas.
Nesta manhã, Mercedes Salado e Sofía Egaña estão dando
voltas em torno de um homem
encarregado de instalar a impressora de códigos de barras
da qual sairão milhares de etiquetas que vão identificar o
sangue dos familiares. Nos próximos dias, todos vão se dedicar
a uma tarefa simples: envelopar formulários para enviá-los
aos quatro cantos do país.
Clima de euforia
Na sala de Carlos Somigliana,
Maco, se espalha uma profusão
de papéis que procuram seu lugar, como num quarto pequeno
demais.
Desde que entrou para a
Equipe Argentina de Antropologia Forense, Maco vem se dedicando a amarrar pontas soltas e a ensinar os outros a fazer
o mesmo: buscar depoimentos,
cruzar informações.
"Enquanto o Estado levava
adiante uma campanha de repressão clandestina, ele continuava registrando coisas com
seu aparelho burocrático. É como uma roda grande e uma roda pequena. Você pode descobrir o que se passa na primeira
através do que acontece na segunda. É um reflexo. E, como
com qualquer reflexo, você se
acostuma a olhar melhor e a entender o reflexo."
Com piercings variados, calças enormes e camisetas superpostas, várias mulheres jovens
-Mariana, Selva, Vicky, Mariela, Alejandra, Celeste, Gabriela- se debruçam sobre as mesas do laboratório.
Semana após semana, como
se uma maré caprichosa os tivesse levado até ali -mais ou
menos inteiros, mais ou menos
lustrosos-, os esqueletos vão
se revezando.
"Estão misturados. Já tenho
cinco mandíbulas -pelo menos cinco indivíduos", diz Gabriela, enquanto cola dois fragmentos de osso.
São horas passadas olhando e
colando e, depois, identificando lesões compatíveis com golpes ou tiros, e, depois, a burocracia: tomar nota de tudo em
infinitas fichas.
Num momento surgirá um
clima de espanto e euforia: um
crânio com o qual acreditavam
ter cometido um erro não é o
que pensavam -um intruso.
A boa notícia -ou a má- é
que, depois de vários exames, o
crânio mostrou ser de fato o de
um desaparecido. As moças o
levantam, o olham como se fosse uma fruta magnífica.
São dez da manhã. Nenhuma
nuvem no céu. O cemitério de
La Plata se multiplica em criptas, depois em lápides e depois
em cruzes. E ali, no meio das
cruzes, há três túmulos abertos. Em volta deles, pilhas de
terra, baldes e pás -coisas com
as quais brincam as crianças.
Debaixo das árvores, ao pé de
uma cova, Patrícia Bernardi
conversa com uma mulher de
traços finos. A mulher está aqui
devido aos restos mortais de de
uma de suas irmãs, desaparecida, e Patrícia explica que, mesmo quando encontrarem os
restos, será preciso ter paciência: o processo de identificação
pode levar tempo.
"Estamos tendo paciência há
30 anos", diz a mulher. "Podemos ter mais um pouco."
Depois, Patrícia se agacha e
limpa, paciente, com um pincel. "Aqui há um projétil no hemitórax esquerdo..."
Em outra das covas, alguém
encontra um pulôver listrado,
um sapato, um crânio com três
balas, redondas como três bocas de peixe. Os ossos de mulher são delicados.
Amanhã, num apartamento
discreto no bairro de Once, em
cima dos jornais com notícias
de ontem e sob a luz pastosa da
tarde, serão secados os ossos, o
pulôver rasgado e o sapato com
língua enrijecida. Mas agora, no
cemitério, a tarde é um véu celeste perturbado apenas por
uma brisa fina.
A íntegra deste texto foi publicada no "El País".
Tradução de Clara Allain.
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