São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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Renascidos das cinzas

Sediada em Buenos Aires, Equipe de Antropologia Forense busca recuperar os restos mortais e a memória dos desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983

Leonardo Wen - 30.abr.2007/Folha Imagem
Mirta Acuña de Baravalle, fundadora das Mães da Praça de Maio, em passeata em Buenos Aires para lembrar as vítimas


LEILA GUERRIERO

M ilhares de pessoas executadas e enterradas em cemitérios clandestinos durante a ditadura militar argentina. E uma equipe jovem e eclética, formada em torno de um texano peculiar, dedicada a identificar seus restos mortais. É essa a história da Equipe de Antropologia Forense, um coletivo humano que rastreia as pegadas do horror.
O local não é grande: quatro metros por quatro, apenas, e uma janela pela qual entra uma luz pastosa. O teto é alto. As paredes, brancas, mas sem muito esmero. O apartamento -antigo, em pleno Once, bairro comercial de Buenos Aires- é discreto: ninguém chega a ele por equívoco.
O piso de madeira está recoberto de jornais, e, sobre eles, há um pulôver listrado -rasgado-, um calçado retorcido, com língua endurecida, e algumas meias. Todo o resto são ossos. Tíbias e fêmures, vértebras e crânios, pelves, mandíbulas, os dentes, costelas em pedaços. São quatro horas da tarde de uma quinta-feira de novembro. Patrícia Bernardi está parada no vão da porta. Tem olhos grandes e cabelos curtos. Ela toma um fêmur fino e o apóia sobre sua coxa. "Os ossos de mulher são delicados."
Entre 1976 e dezembro de 1983, a ditadura militar na Argentina seqüestrou e executou milhares de pessoas, que foram enterradas como NN (indigentes? anônimos?) em cemitérios e túmulos clandestinos. Em maio de 1984, já com o regime democrático, chegaram ao país sete membros da Associação Americana para o Progresso da Ciência. Entre eles, um antropólogo forense -especialista na identificação de restos ósseos, que consegue ler neles os rastros de vida e morte-, de nome Clyde Snow.
Nascido no Texas em 1928, Snow já tinha prestígio por ter identificado os restos mortais de Josef Mengele no Brasil.
Nessa primeira viagem, deu uma palestra sobre ciência forense e desaparecidos, e a tradutora, aturdida com a quantidade de termos técnicos intraduzíveis, renunciou na metade. Então um homem loiro e carismático se apresentou, dizendo: "Posso fazer a tradução, eu sei inglês". E foi assim que Morris Tidball Binz, estudante de medicina de 26 anos, surgiu na vida de Clyde Snow. Nas semanas seguintes, embora não tivesse ido à Argentina para isso, Snow participou de algumas exumações, a pedido de um juiz.

Exumar o Che
No mês de junho, quando teve que exumar sete corpos de um cemitério da periferia, decidiu enviar uma carta à Faculdade de Antropologia, pedindo uma colaboração. Mas não teve resposta. E foi então que Morris Tidball Binz disse: "Tenho alguns amigos".
Os amigos de Morris eram um: chamava-se Douglas Carins, estudava antropologia na Universidade de Buenos Aires e disseminou entre seus colegas -Patrícia Bernardi, Luis Fondebrider, Mercedes Doretti- a mensagem "há um gringo procurando pessoas para exumar restos de desaparecidos". E foi assim que, numa tarde de 1984, os três estudantes tiveram um encontro com Clyde Snow -e com Morris Tidball Binz- num hotel do centro de Buenos Aires.
Entre 1984 e 1989, Clyde Snow passou mais de 20 meses na Argentina, e em cada uma de suas viagens os estudantes o acompanharam em exumações, mergulhando pouco a pouco nessa profissão que não tinha antecedentes nem prestígio no país. Em 1988, quando o grupo foi convocado para escavar no setor 134 do cemitério de Avellaneda, um subúrbio de Buenos Aires onde os militares haviam enterrado centenas de corpos, poucos deles tinham mais de 22 anos.
A vala de Avellaneda permaneceu aberta por dois anos, e dela o grupo tirou 336 corpos, quase todos com ferimentos de bala no crânio. Muitos deles ainda não foram identificados. Desde então, a equipe já trabalhou em mais de 30 países, contratada pela ONU, pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e pela comissão para a busca dos restos mortais de Che Guevara, entre outros.
Por muito tempo não foram mais de 12, mas a possibilidade de aplicar as técnicas de DNA aos ossos obrigou a equipe a incorporar muitos novos integrantes. Hoje, eles são 37 e, do grupo original, restam apenas Luis Fondebrider, Mercedes Doretti e Patrícia Bernardi.
A Equipe de Antropologia Forense tem sua sede em dois apartamentos idênticos no primeiro e segundo andares de um edifício antigo, de estilo francês, do bairro de Once. Sofía Egaña -que faz parte da equipe desde 1999- dá um clique com o mouse, e uma foto se abre na tela de seu computador: um crânio. Outro clique: o crânio e seu orifício.
"Há mais de 11 anos eu viajo sem parar. Não tenho armário -tenho duas malas. Mas, quando a gente junta o osso à história, tudo ganha sentido." No andar de cima, o escritório de Silvana Turner está repleto de caixas marcadas "Kosovo", "Togo", "África do Sul" ou "Timor". É o roteiro dos maiores massacres do século passado. Silvana tem cabelos curtos e o rosto limpo.
Nesses anos, a equipe já conseguiu 300 identificações com restituição dos restos mortais e conheceu o destino de outras 300 pessoas cujos corpos nunca foram encontrados. A poucos metros dali, numa sala contígua, há mais caixas, estas rotuladas com nomes de cemitérios: "La Plata", "San Martín", "Ezpeleta", "Lomas de Zamora", "Ezeiza"...

Corpos de crianças
Patrícia Bernardi tem o tom doce ao falar. Em 2007, quando se completaram 40 anos da morte de Che Guevara, a imprensa tirou suas máquinas de calcular efemérides, e todas apontaram para os membros da equipe, que, atendendo a convite do governo de Cuba, tinham estado ali.
"Às vezes me sinto obrigada a dizer que foi motivo de orgulho para mim ter participado dessa exumação, mas foi tudo muito tenso. E foram os cubanos que encontraram a cova."
"Nós estivemos lá por cinco meses e voltamos quando encontraram a cova de Guevara, em julho de 1997. Para mim, o que marcou muito, antes e depois, foi El Petén, na Guatemala. Lá, em 1982, um pelotão do Exército executou centenas de moradores do povoado. Tiramos 162 corpos de uma vala."
"Em sua maioria, crianças de menos de 12 anos. E não apresentavam ferimentos de bala, porque, para economizar projéteis, eles batiam a cabeça das crianças contra a beirada do poço e as jogavam para dentro.
Chega um momento em que você se acostuma com os ossinhos pequenos, pois são bonitos, perfeitos. Mas o que fazia a gente voltar à realidade era aquilo a que estava associado." Em 2007, a equipe, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e o Ministério da Saúde firmaram um convênio para a criação de um banco de dados genéticos de familiares de desaparecidos, por meio de uma campanha que solicita uma amostra de sangue para cotejar o DNA com os restos mortais de 600 pessoas que ainda não puderam ser identificadas.
O projeto se intitula Iniciativa Latino-americana para a Identificação de Pessoas Desaparecidas. Nesta manhã, Mercedes Salado e Sofía Egaña estão dando voltas em torno de um homem encarregado de instalar a impressora de códigos de barras da qual sairão milhares de etiquetas que vão identificar o sangue dos familiares. Nos próximos dias, todos vão se dedicar a uma tarefa simples: envelopar formulários para enviá-los aos quatro cantos do país.

Clima de euforia
Na sala de Carlos Somigliana, Maco, se espalha uma profusão de papéis que procuram seu lugar, como num quarto pequeno demais.
Desde que entrou para a Equipe Argentina de Antropologia Forense, Maco vem se dedicando a amarrar pontas soltas e a ensinar os outros a fazer o mesmo: buscar depoimentos, cruzar informações.
"Enquanto o Estado levava adiante uma campanha de repressão clandestina, ele continuava registrando coisas com seu aparelho burocrático. É como uma roda grande e uma roda pequena. Você pode descobrir o que se passa na primeira através do que acontece na segunda. É um reflexo. E, como com qualquer reflexo, você se acostuma a olhar melhor e a entender o reflexo." Com piercings variados, calças enormes e camisetas superpostas, várias mulheres jovens -Mariana, Selva, Vicky, Mariela, Alejandra, Celeste, Gabriela- se debruçam sobre as mesas do laboratório.
Semana após semana, como se uma maré caprichosa os tivesse levado até ali -mais ou menos inteiros, mais ou menos lustrosos-, os esqueletos vão se revezando.
"Estão misturados. Já tenho cinco mandíbulas -pelo menos cinco indivíduos", diz Gabriela, enquanto cola dois fragmentos de osso. São horas passadas olhando e colando e, depois, identificando lesões compatíveis com golpes ou tiros, e, depois, a burocracia: tomar nota de tudo em infinitas fichas.
Num momento surgirá um clima de espanto e euforia: um crânio com o qual acreditavam ter cometido um erro não é o que pensavam -um intruso. A boa notícia -ou a má- é que, depois de vários exames, o crânio mostrou ser de fato o de um desaparecido. As moças o levantam, o olham como se fosse uma fruta magnífica.
São dez da manhã. Nenhuma nuvem no céu. O cemitério de La Plata se multiplica em criptas, depois em lápides e depois em cruzes. E ali, no meio das cruzes, há três túmulos abertos. Em volta deles, pilhas de terra, baldes e pás -coisas com as quais brincam as crianças.
Debaixo das árvores, ao pé de uma cova, Patrícia Bernardi conversa com uma mulher de traços finos. A mulher está aqui devido aos restos mortais de de uma de suas irmãs, desaparecida, e Patrícia explica que, mesmo quando encontrarem os restos, será preciso ter paciência: o processo de identificação pode levar tempo.
"Estamos tendo paciência há 30 anos", diz a mulher. "Podemos ter mais um pouco." Depois, Patrícia se agacha e limpa, paciente, com um pincel. "Aqui há um projétil no hemitórax esquerdo..." Em outra das covas, alguém encontra um pulôver listrado, um sapato, um crânio com três balas, redondas como três bocas de peixe. Os ossos de mulher são delicados.
Amanhã, num apartamento discreto no bairro de Once, em cima dos jornais com notícias de ontem e sob a luz pastosa da tarde, serão secados os ossos, o pulôver rasgado e o sapato com língua enrijecida. Mas agora, no cemitério, a tarde é um véu celeste perturbado apenas por uma brisa fina.


A íntegra deste texto foi publicada no "El País". Tradução de Clara Allain.


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