São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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+ sociedade

Para o psicólogo norte-americano Joseph R. Ferrari, cerca de 25% das pessoas que postergam até o limite a entrega de trabalhos escolares ou a declaração do Imposto de Renda sofrem de procrastinação crônica

Síndrome do atraso

DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO

A recompensa pelo atraso e a inexistência de um incentivo para que as pessoas se adiantem são as razões, segundo o professor de psicologia na Universidade DePaul (Chicago) Joseph R. Ferrari, para que mais da metade dos 22 milhões de contribuintes brasileiros (cerca de 12 milhões de pessoas) tenham deixado para fazer sua declaração de Imposto de Renda nos últimos dez dias do prazo -que se encerra na sexta-, enquanto só 32 mil (0,14% do total de contribuintes) o tenham feito no primeiro dia (dados da Receita Federal).
Segundo Ferrari, que é co-editor de "Procrastination and Task Avoidance - Theory, Research, and Treatment" [Procrastinação e Evitação de Tarefas - Teoria, Pesquisa e Tratamento, Plenum Publications, 1995], para cerca de 75% da população mundial o problema do atraso é uma questão de organização e hierarquização de prioridades e mudaria com algum incentivo ao adiantamento. Já para os 25% restantes, o problema é psicológico e necessita de tratamento. São os procrastinadores crônicos.
O principal diferencial do Brasil, para ele, está ligado à cultura. Em entrevista à Folha, Ferrari parte de dados coletados no Peru e na Venezuela para diagnosticar que na América Latina como um todo há um conceito diferente -mais permissivo- de procrastinação, em comparação com o americano e o europeu.

 

Folha - A procrastinação de uma tarefa como a declaração do Imposto de Renda é igual, do ponto de vista psicológico, à do horário de uma festa ou ao adiamento das compras de Natal?
Joseph R. Ferrari -
Para cerca de 25% das pessoas, os que chamamos de procrastinadores crônicos, aqueles que sempre arrumam uma desculpa para não realizar suas tarefas, independentemente de organização e hierarquia de prioridades, é a mesma coisa; para o restante, não. Há as pessoas que adiam apenas as compras de Natal, outras que deixam para depois apenas a declaração.
O grande problema, do meu ponto de vista, é que nossos sistemas culturais, tanto nos EUA quanto no Brasil, recompensam o atraso. Não há nenhum incentivo para que as pessoas se adiantem. É possível fazer a declaração de Imposto de Renda com dois meses de antecedência, mas não há incentivo para que as pessoas o façam logo.
Os governos poderiam oferecer benefícios, mesmo que mínimos -como 2% de desconto no valor a ser pago-, incentivando o adiantamento e ganhando também com isso, já que teriam receitas antecipadas, e não seria gerado o caos habitual dos últimos dias de prazo. Não há razão prática que estimule as pessoas a anteciparem a entrega.

Folha - Oferecer essas vantagens financeiras mudaria o comportamento das pessoas?
Ferrari -
Para algumas, sim. Mas, para os 25% restantes da sociedade que são os procrastinadores crônicos que diagnosticamos, provavelmente não mudaria nada. Mas, se queremos que o restante da sociedade passe a deixar menos tarefas para depois, sim, o incentivo financeiro mudaria o comportamento e até o padrão de procrastinação. Os procrastinadores crônicos sempre estarão atrasados, mas é possível diminuir o problema diminuindo a taxa de procrastinação em pessoas que não vivem isso como uma doença.

Folha - Como é possível tratar essas pessoas que sofrem de adiamento crônico?
Ferrari -
Os procrastinadores crônicos precisam de terapia. Precisa-se mudar a forma como eles pensam e agem, não é apenas um problema de administração de tempo. Para as pessoas "normais", que podem deixar uma ou outra coisa para depois, talvez seja necessária apenas uma melhor organização do tempo, uma hierarquização da importância das tarefas que devem ser realizadas.

Folha - Como as pesquisas sobre procrastinação crônica podem ser aplicadas à realidade do Brasil?
Ferrari -
Acho que a questão da América Latina, pelo que discuti com os pesquisadores do Peru e da Venezuela, é a definição cultural daquilo que é procrastinação. No Brasil, como no Peru, atrasar-se para uma festa ou algum evento social talvez seja aceitável. Isso é considerado uma ofensa, um insulto, nos EUA.
O significado dessa procrastinação, portanto, é diferente na América Latina e nos EUA, por mais que as taxas sejam similares. O Brasil precisa entender essa diferença na hora de estudar sua situação. À medida que nos tornamos uma sociedade global, precisamos criar algum padrão para as relações internacionais.

Folha - Há diferenças de comportamento segundo o gênero, a idade ou a classe social?
Ferrari -
Gênero e idade, não. No Peru, houve uma diferença quanto às classes sociais, mas dizia respeito mais à educação, que se reflete no comportamento, do que em relação à renda das pessoas.

Folha - A procura imediata por entradas para grandes eventos culturais, como shows cujos ingressos se esgotam rapidamente, demonstra uma mudança no comportamento, segundo o qual pessoas que não se adiantarem ficarão sem ingressos?
Ferrari -
Esse é um ótimo exemplo do que separa as pessoas que adiam algumas tarefas das que têm o adiamento como um problema crônico.
Todo mundo deixa algumas coisas para depois, mas, na hora em que precisa, acaba correndo atrás para não se prejudicar, por isso os ingressos se esgotam rapidamente, por isso no último dia de declaração de Imposto de Renda tanta gente tenta declarar.
Mas aposto que há muita gente, talvez 20 a 25% do público interessado, que acabou se prejudicando e não conseguiu os ingressos de um determinado evento cultural ou não declarou o imposto. Esses são os procrastinadores crônicos, que chegam a deixar de realizar uma dada tarefa simplesmente por irem deixando para depois, até não poderem mais fazê-la.


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