|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
Para o psicólogo norte-americano Joseph R. Ferrari, cerca de 25% das pessoas que postergam até o limite a entrega de trabalhos escolares ou a declaração do Imposto de Renda sofrem de procrastinação crônica
Síndrome do atraso
DANIEL BUARQUE
DA REDAÇÃO
A recompensa pelo atraso e a
inexistência de um incentivo para que as pessoas se
adiantem são as razões, segundo o professor de psicologia na
Universidade DePaul (Chicago) Joseph R. Ferrari, para que mais da
metade dos 22 milhões de contribuintes brasileiros (cerca de 12 milhões de pessoas) tenham deixado
para fazer sua declaração de Imposto de Renda nos últimos dez dias do
prazo -que se encerra na sexta-,
enquanto só 32 mil (0,14% do total
de contribuintes) o tenham feito no
primeiro dia (dados da Receita Federal).
Segundo Ferrari, que é co-editor
de "Procrastination and Task Avoidance - Theory, Research, and
Treatment" [Procrastinação e Evitação de Tarefas - Teoria, Pesquisa e
Tratamento, Plenum Publications,
1995], para cerca de 75% da população mundial o problema do atraso é
uma questão de organização e hierarquização de prioridades e mudaria com algum incentivo ao adiantamento. Já para os 25% restantes, o
problema é psicológico e necessita
de tratamento. São os procrastinadores crônicos.
O principal diferencial do Brasil,
para ele, está ligado à cultura. Em
entrevista à Folha, Ferrari parte de
dados coletados no Peru e na Venezuela para diagnosticar que na América Latina como um todo há um
conceito diferente -mais permissivo- de procrastinação, em comparação com o americano e o europeu.
Folha - A procrastinação de uma tarefa como a declaração do Imposto de
Renda é igual, do ponto de vista psicológico, à do horário de uma festa ou
ao adiamento das compras de Natal?
Joseph R. Ferrari - Para cerca de
25% das pessoas, os que chamamos
de procrastinadores crônicos, aqueles que sempre arrumam uma desculpa para não realizar suas tarefas,
independentemente de organização
e hierarquia de prioridades, é a mesma coisa; para o restante, não. Há as
pessoas que adiam apenas as compras de Natal, outras que deixam para depois apenas a declaração.
O grande problema, do meu ponto
de vista, é que nossos sistemas culturais, tanto nos EUA quanto no Brasil, recompensam o atraso. Não há
nenhum incentivo para que as pessoas se adiantem. É possível fazer a
declaração de Imposto de Renda
com dois meses de antecedência,
mas não há incentivo para que as
pessoas o façam logo.
Os governos poderiam oferecer
benefícios, mesmo que mínimos
-como 2% de desconto no valor a
ser pago-, incentivando o adiantamento e ganhando também com isso, já que teriam receitas antecipadas, e não seria gerado o caos habitual dos últimos dias de prazo. Não
há razão prática que estimule as pessoas a anteciparem a entrega.
Folha - Oferecer essas vantagens financeiras mudaria o comportamento
das pessoas?
Ferrari - Para algumas, sim. Mas,
para os 25% restantes da sociedade
que são os procrastinadores crônicos que diagnosticamos, provavelmente não mudaria nada. Mas, se
queremos que o restante da sociedade passe a deixar menos tarefas para
depois, sim, o incentivo financeiro
mudaria o comportamento e até o
padrão de procrastinação. Os procrastinadores crônicos sempre estarão atrasados, mas é possível diminuir o problema diminuindo a taxa
de procrastinação em pessoas que
não vivem isso como uma doença.
Folha - Como é possível tratar essas
pessoas que sofrem de adiamento
crônico?
Ferrari - Os procrastinadores crônicos precisam de terapia. Precisa-se
mudar a forma como eles pensam e
agem, não é apenas um problema de
administração de tempo. Para as
pessoas "normais", que podem deixar uma ou outra coisa para depois,
talvez seja necessária apenas uma
melhor organização do tempo, uma
hierarquização da importância das
tarefas que devem ser realizadas.
Folha - Como as pesquisas sobre
procrastinação crônica podem ser
aplicadas à realidade do Brasil?
Ferrari - Acho que a questão da
América Latina, pelo que discuti
com os pesquisadores do Peru e da
Venezuela, é a definição cultural daquilo que é procrastinação. No Brasil, como no Peru, atrasar-se para
uma festa ou algum evento social talvez seja aceitável. Isso é considerado
uma ofensa, um insulto, nos EUA.
O significado dessa procrastinação, portanto, é diferente na América Latina e nos EUA, por mais que as
taxas sejam similares. O Brasil precisa entender essa diferença na hora
de estudar sua situação. À medida
que nos tornamos uma sociedade
global, precisamos criar algum padrão para as relações internacionais.
Folha - Há diferenças de comportamento segundo o gênero, a idade ou a
classe social?
Ferrari - Gênero e idade, não. No
Peru, houve uma diferença quanto
às classes sociais, mas dizia respeito
mais à educação, que se reflete no
comportamento, do que em relação
à renda das pessoas.
Folha - A procura imediata por entradas para grandes eventos culturais, como shows cujos ingressos se
esgotam rapidamente, demonstra
uma mudança no comportamento, segundo o qual pessoas que não se
adiantarem ficarão sem ingressos?
Ferrari - Esse é um ótimo exemplo
do que separa as pessoas que adiam
algumas tarefas das que têm o adiamento como um problema crônico.
Todo mundo deixa algumas coisas
para depois, mas, na hora em que
precisa, acaba correndo atrás para
não se prejudicar, por isso os ingressos se esgotam rapidamente, por isso no último dia de declaração de
Imposto de Renda tanta gente tenta
declarar.
Mas aposto que há muita gente,
talvez 20 a 25% do público interessado, que acabou se prejudicando e
não conseguiu os ingressos de um
determinado evento cultural ou não
declarou o imposto. Esses são os
procrastinadores crônicos, que chegam a deixar de realizar uma dada
tarefa simplesmente por irem deixando para depois, até não poderem
mais fazê-la.
Texto Anterior: Biblioteca básica - Ney Latorraca: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha Próximo Texto: + autores: A arte secreta Índice
|