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Tendo escrito 13 livros, Heleno Godoy destaca-se pela qualidade de sua poesia, mas permanece desconhecido
A arte secreta
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Não é novidade que o nosso
é o país das desigualdades
-desigualdade do ponto
de vista interno, que favorece alguns poucos; desigualdade
para fora, que prejudica a todos (que
dicionário consigna que "emergente" é sinônimo de marginal?). Mas
não é comum estender-se a desigualdade à possibilidade de divulgação de seus autores.
Para ir direto à questão: quem sabe
quem é Heleno Godoy? Não é incrível que, ao lerem seu nome, muitos
pensem que se trate de um estreante.
Como estreante, se o livro que aqui
destaco ("Lugar-Comum e Outros
Poemas", ed. Kelps) é o 13º desse
poeta, prosador e ensaísta? Como
diria "o poeta federal" do primeiro
Drummond, é desconhecido porque
ousa viver distante da república das
letras, em Goiânia e, acrescente-se,
por não compensar essa falta com
versos folclórico-pitorescos.
Ao dizê-lo, não suponho que um
pequeno artigo mude a situação.
Mas alguma coisa poderá causar
esperança dos que escrevem contra
a corrente. Para tentá-lo, destacarei
de "Lugar-Comum" apenas um de
seus veios. Declaro, pois, a base do
que me proponho: Heleno Godoy
está, ao mesmo tempo, próximo e
distante de nosso máximo poeta da
memória: Carlos Drummond de
Andrade.
A proximidade é declarada por
uma quase-citação: "Minhas fazendas nem estavam/ no ar, estavam
aqui mesmo,/ plantadas neste chão
de possibilidades/ impossíveis de serem mapeadas" ("Fazendas").
Várias trilhas
Já a distância caminha por várias
trilhas. A mais evidente o separa não
só de Drummond: eis uma lírica
que, pela condução dos versos, apenas aproximadamente isossilábicos,
pela sobriedade das metáforas (e demais figuras), pelo tom de monólogo cotidiano, pela ausência tanto de
construções em quebra-cabeça
quanto de soluções coloquiais, está à
beira da prosa; de uma prosa sóbria,
a que repugna qualquer derramamento. Em mínimas palavras: do
fundamento drummondiano se
acerca a sombra cabralina, que, entretanto, permanece à distância, em
postura de sentinela.
Isso posto, me proponho mostrar
mais concretamente como se cumpre a divergência. Recorro às estrofes iniciais de um de seus maiores
poemas, "Marcas": "Restam sobre
mim, como num/ desafio, certas
marcas de outro/ dia: um calendário
de anos antes,/ guardado como relíquia, retalhos/ e panos velhos, sobras de roupas/ não vestidas, promessas de ternos,/ gravatas nunca lá
usadas, algumas meias sujas (...)/
coisas externas,/ que não fazem mais
parte de mim(...); -(...) vai ficando
de mim este pobre/ esquecimento de
alguns ritos e outros/ tantos risos artificiais, (...)/ (...) uma quantidade
pouca/ de ilusões, como se a vida natural que/ aqui ainda restasse, sobre
essa mesma/ toalha suja, tão carcomida, substituísse/ aquela que se esvai líqüida e certa como/ erva usada
apenas por seu próprio cheiro".
Em Drummond, a lembrança é
encerrada, como diria outro grande
poeta, por um "anfiteatro de montanhas" e, dentro dele, pelo círculo da
família. A lembrança condensa-se
no patos da "falta que ama".
Em Godoy, não há recinto fechado
que motive a intensidade. Os retratos não se expõem em paredes, mas
se amontoam em "caixas de sapatos" ("Álbum de Família"); são restos, poeira de fantasmas. As lembranças perdem seu status de íntima
nobreza; dispersam-se em aberta
planície, em que se tornariam indistintas caso não interviesse quem lhes
desse outra estrutura, além da memória. Daí a importância da parte
transcrita da segunda estrofe.
Dois leitos
Por ela, estabelece-se outra conexão: o rio da vida contém dois leitos,
o ressaltado pela "toalha suja" que
guarda a memória e o que se esvai,
"liqüid(o) e cert(o)".
O leito que se esvai não pertence à
memória, conquanto seja visto a
partir dela. A "toalha suja" tanto
pertence ao que foi quanto serve de
guia para o que resta da "vida natural". Isso não mantém a memória
em sua posição dominante? Sim,
mas releiamos o último verso: "(...)
como/ erva usada apenas por seu
próprio cheiro": embora a vida que
resta seja lida pela mesma "toalha
suja" da memória, ela é erva que vale
por seu próprio cheiro.
A memória passa a dar lugar a
uma dupla entrada: a vida que foi e a
que se espera; o retrospectivo e o
prospectivo; prospectivo pré-orientado pelo que foi. Assim se mostra
no primeiro poema sobre a cidade
de Tulsa (Oklahoma): "(...) uma ausência a fazer/ existirem outras, cor
que/ clama por outras e exige mais".
O prospectivo claramente se alimenta da memória, mas nela não se
encerra. A "toalha suja" é agora uma
ausência que engendra outras. O
prospectivo sai da ordem das coisas
e seus lugares e se encaminha para o
lugar a ser formulado pela palavra.
Esta é um vazio adiante. O que então
chamamos de dupla entrada mostra-se cabalmente em "Amigos", de
que transcrevo o indispensável:
"Existem amigos de todos os jeitos:/
pássaros, répteis, pequenos insetos".
A equivalência dos amigos em espécies diversas -pegajosos, escorregadios, transformistas, flutuantes,
transitórios- implica lembrança e
prospecção das lembranças. A prospecção aponta para a diversidade da
conduta dos que se declaram amigos. É a memória que dirige suas distinções, mas estas supõem um trabalho diferenciador sobre aquela.
A memória não dirige -mas serve de lastro para a vida que segue;
que segue para que (também) se
transforme em verso. Ou seria mais
correto dizer-se para que se aprenda
a distinguir entre as condutas humanas? Nem só aquilo, tampouco só isso. Prospecção da palavra e das condutas competem em saber qual das
duas é a mais esquiva.
A segunda estrofe de "Tempo Perdido" tematiza a metamorfose do
amigo em atacante: "Uma estocada
só. Gesto amigo, sim,/ mãos amigas
matam mais, como voz/ que consola, soluço a acompanhar/ este e outros gestos de tanto afeto". Já a quarta estrofe não exime a palavra da
prática da esgrima: "Múltipla excitação, uma conversa/ de esquina e esquiva, exploração/ de trapaças traças
com que somos/ obrigados a conviver e a sobreviver".
Comprovação do desejo
Entende-se então melhor por que
essa lírica parece tão próxima da
prosa, em que, no entanto, não cai.
Se à palavra cabe ler o passado para
dele extrair o que se espera do resto
da "vida natural", ela, por um lado, é
instrumento de resgate, e não só
meio de condensar o que houve
-"erva usada por seu próprio cheiro". Mas não é resgate senão do que
"(...) sobrevive/ engastado, como
musgo ou/ ferrugem, sujeira irremovível". Por outro lado, em vez de resgate, ela é mera comprovação do
"desejo/ do outro e nada satisfeito, a
eterna/ busca de uma incerta transcendência".
A poesia nada salva, exceto a pergunta de como se viveu e vive a vida,
em uma planície desmedida e intranscendente. Só isso lhe concede o
direito de distinguir-se da prosa cotidiana: esta prefere esquivar-se daquela pergunta, preterindo-a por dizer de golpes e trapaças próprios e
alheios.
O leitor pode estar certo que "Lugar Comum e Outros Poemas" é
muito mais do que isso. Mas a amostra já declara que deveria ser lido.
Luiz Costa Lima é crítico e professor da
Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia
Universidade Católica (RJ). É autor de, entre
outros, "Limites da Voz" (ed. TopBooks).
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