São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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Tendo escrito 13 livros, Heleno Godoy destaca-se pela qualidade de sua poesia, mas permanece desconhecido

A arte secreta

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Não é novidade que o nosso é o país das desigualdades -desigualdade do ponto de vista interno, que favorece alguns poucos; desigualdade para fora, que prejudica a todos (que dicionário consigna que "emergente" é sinônimo de marginal?). Mas não é comum estender-se a desigualdade à possibilidade de divulgação de seus autores.
Para ir direto à questão: quem sabe quem é Heleno Godoy? Não é incrível que, ao lerem seu nome, muitos pensem que se trate de um estreante. Como estreante, se o livro que aqui destaco ("Lugar-Comum e Outros Poemas", ed. Kelps) é o 13º desse poeta, prosador e ensaísta? Como diria "o poeta federal" do primeiro Drummond, é desconhecido porque ousa viver distante da república das letras, em Goiânia e, acrescente-se, por não compensar essa falta com versos folclórico-pitorescos.
Ao dizê-lo, não suponho que um pequeno artigo mude a situação.
Mas alguma coisa poderá causar esperança dos que escrevem contra a corrente. Para tentá-lo, destacarei de "Lugar-Comum" apenas um de seus veios. Declaro, pois, a base do que me proponho: Heleno Godoy está, ao mesmo tempo, próximo e distante de nosso máximo poeta da memória: Carlos Drummond de Andrade.
A proximidade é declarada por uma quase-citação: "Minhas fazendas nem estavam/ no ar, estavam aqui mesmo,/ plantadas neste chão de possibilidades/ impossíveis de serem mapeadas" ("Fazendas").

Várias trilhas
Já a distância caminha por várias trilhas. A mais evidente o separa não só de Drummond: eis uma lírica que, pela condução dos versos, apenas aproximadamente isossilábicos, pela sobriedade das metáforas (e demais figuras), pelo tom de monólogo cotidiano, pela ausência tanto de construções em quebra-cabeça quanto de soluções coloquiais, está à beira da prosa; de uma prosa sóbria, a que repugna qualquer derramamento. Em mínimas palavras: do fundamento drummondiano se acerca a sombra cabralina, que, entretanto, permanece à distância, em postura de sentinela.
Isso posto, me proponho mostrar mais concretamente como se cumpre a divergência. Recorro às estrofes iniciais de um de seus maiores poemas, "Marcas": "Restam sobre mim, como num/ desafio, certas marcas de outro/ dia: um calendário de anos antes,/ guardado como relíquia, retalhos/ e panos velhos, sobras de roupas/ não vestidas, promessas de ternos,/ gravatas nunca lá usadas, algumas meias sujas (...)/ coisas externas,/ que não fazem mais parte de mim(...); -(...) vai ficando de mim este pobre/ esquecimento de alguns ritos e outros/ tantos risos artificiais, (...)/ (...) uma quantidade pouca/ de ilusões, como se a vida natural que/ aqui ainda restasse, sobre essa mesma/ toalha suja, tão carcomida, substituísse/ aquela que se esvai líqüida e certa como/ erva usada apenas por seu próprio cheiro".
Em Drummond, a lembrança é encerrada, como diria outro grande poeta, por um "anfiteatro de montanhas" e, dentro dele, pelo círculo da família. A lembrança condensa-se no patos da "falta que ama".
Em Godoy, não há recinto fechado que motive a intensidade. Os retratos não se expõem em paredes, mas se amontoam em "caixas de sapatos" ("Álbum de Família"); são restos, poeira de fantasmas. As lembranças perdem seu status de íntima nobreza; dispersam-se em aberta planície, em que se tornariam indistintas caso não interviesse quem lhes desse outra estrutura, além da memória. Daí a importância da parte transcrita da segunda estrofe.

Dois leitos
Por ela, estabelece-se outra conexão: o rio da vida contém dois leitos, o ressaltado pela "toalha suja" que guarda a memória e o que se esvai, "liqüid(o) e cert(o)".
O leito que se esvai não pertence à memória, conquanto seja visto a partir dela. A "toalha suja" tanto pertence ao que foi quanto serve de guia para o que resta da "vida natural". Isso não mantém a memória em sua posição dominante? Sim, mas releiamos o último verso: "(...) como/ erva usada apenas por seu próprio cheiro": embora a vida que resta seja lida pela mesma "toalha suja" da memória, ela é erva que vale por seu próprio cheiro.
A memória passa a dar lugar a uma dupla entrada: a vida que foi e a que se espera; o retrospectivo e o prospectivo; prospectivo pré-orientado pelo que foi. Assim se mostra no primeiro poema sobre a cidade de Tulsa (Oklahoma): "(...) uma ausência a fazer/ existirem outras, cor que/ clama por outras e exige mais".
O prospectivo claramente se alimenta da memória, mas nela não se encerra. A "toalha suja" é agora uma ausência que engendra outras. O prospectivo sai da ordem das coisas e seus lugares e se encaminha para o lugar a ser formulado pela palavra. Esta é um vazio adiante. O que então chamamos de dupla entrada mostra-se cabalmente em "Amigos", de que transcrevo o indispensável: "Existem amigos de todos os jeitos:/ pássaros, répteis, pequenos insetos".
A equivalência dos amigos em espécies diversas -pegajosos, escorregadios, transformistas, flutuantes, transitórios- implica lembrança e prospecção das lembranças. A prospecção aponta para a diversidade da conduta dos que se declaram amigos. É a memória que dirige suas distinções, mas estas supõem um trabalho diferenciador sobre aquela.
A memória não dirige -mas serve de lastro para a vida que segue; que segue para que (também) se transforme em verso. Ou seria mais correto dizer-se para que se aprenda a distinguir entre as condutas humanas? Nem só aquilo, tampouco só isso. Prospecção da palavra e das condutas competem em saber qual das duas é a mais esquiva.
A segunda estrofe de "Tempo Perdido" tematiza a metamorfose do amigo em atacante: "Uma estocada só. Gesto amigo, sim,/ mãos amigas matam mais, como voz/ que consola, soluço a acompanhar/ este e outros gestos de tanto afeto". Já a quarta estrofe não exime a palavra da prática da esgrima: "Múltipla excitação, uma conversa/ de esquina e esquiva, exploração/ de trapaças traças com que somos/ obrigados a conviver e a sobreviver".

Comprovação do desejo
Entende-se então melhor por que essa lírica parece tão próxima da prosa, em que, no entanto, não cai. Se à palavra cabe ler o passado para dele extrair o que se espera do resto da "vida natural", ela, por um lado, é instrumento de resgate, e não só meio de condensar o que houve -"erva usada por seu próprio cheiro". Mas não é resgate senão do que "(...) sobrevive/ engastado, como musgo ou/ ferrugem, sujeira irremovível". Por outro lado, em vez de resgate, ela é mera comprovação do "desejo/ do outro e nada satisfeito, a eterna/ busca de uma incerta transcendência".
A poesia nada salva, exceto a pergunta de como se viveu e vive a vida, em uma planície desmedida e intranscendente. Só isso lhe concede o direito de distinguir-se da prosa cotidiana: esta prefere esquivar-se daquela pergunta, preterindo-a por dizer de golpes e trapaças próprios e alheios.
O leitor pode estar certo que "Lugar Comum e Outros Poemas" é muito mais do que isso. Mas a amostra já declara que deveria ser lido.


Luiz Costa Lima é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). É autor de, entre outros, "Limites da Voz" (ed. TopBooks).

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