São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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HISTÓRIA UNIVERSAL DA TRAIÇÃO

Associated Press/Museum of Modern Art - 2.mar.2004
"A Família Presidencial" (1967), quadro do artista colombiano Fernando Botero


"ENFANT TERRIBLE" DA NOVA LITERATURA COLOMBIANA, EFRAIM MEDINA REYES COMENTA SEU LIVRO, DESQUALIFICA GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E DIZ QUE A MENTIRA MOLDA A CONDIÇÃO HUMANA

da Redação

Efraim Medina Reyes posa de outsider: recusa ser incluído na nova geração da literatura de seu país -um "bando de pentelhos"-, mas, com suas declarações sarcásticas dadas sob medida, se tornou o "darling" das mídias colombiana e espanhola. Ele desqualifica os escritores do "boom" dos anos 60 -"García Márqueting" à frente-, mas com seu debochado "Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin" (ed. Planeta, trad. Luís Reyes Gil, 300 págs., preço a definir), que está saindo nesta semana no Brasil, se tornou a aposta mais segura do principal grupo editorial de língua espanhola.
Na entrevista a seguir, Medina Reyes também se diz influenciado pela nata da cultura "pop cabeça" -o cineasta alemão Wim Wenders, as bandas americanas Pixies e Nirvana-, por lutas de boxe e, também, pela literatura -o italiano Cesare Pavese, a poeta dos EUA Emily Dickinson e a geração "beat" (Medina Reyes já chegou a ser chamado de "Bukowski colombiano"). Contudo seu livro é recheado de máximas e sentenças bem ao gosto dos moralistas franceses do século 18.
Colagem de narrativas mais ou menos desconexas girando em torno das inquietações sexuais, existenciais e sociais do escritor fracassado Sergio Bocafloja, "Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin" é, contudo, uma obra singular. Isso não se deve tanto ao experimentalismo (Cortázar já havia sido muito mais radical) ou às referências à cultura pop (comum nos próprios beats ou em contemporâneos, como o americano Dave Eggers), mas por sua grande capacidade imagética.
Ironicamente, essa sempre foi uma das virtudes mais celebradas em autores como Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, a quem Medina Reyes tanto desqualifica. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
 
A crítica o situa como parte de um novo boom da literatura colombiana? O que o você vê de continuidade e ruptura nisso?
Boom da literatura colombiana? É uma brincadeira? Os chamados novos escritores colombianos não passam de um bando de pentelhos. O que escrevem Héctor Abad [Faciolince], Jorge Franco e o resto é tão sem graça quanto seus traseiros. Não me sinto parte de nenhum boom, nem sequer me sinto colombiano. Prefiro ser argentino.

Mas você não vê nenhum ponto de contato entre vocês, como, por exemplo, a crítica social?
Certamente há, pois pertencemos a um mesmo tempo e a um mesmo país. Entretanto me sinto muito distante de qualquer escritor colombiano. Eles se levam muito a sério, inclusive os mais jovens, que já parecem mumificados. Para mim a literatura é um meio, para eles, um fim. Eles assumem a figura do escritor e produzem livros cheios de retórica.

Autor mal-sucedido do ponto de vista comercial, Sergio Bocafloja, o protagonista de seu livro, mantém uma relação negativa com os autores do boom. Qual foi a influência (angustiada ou não) de García Márquez em sua formação? Ele é um fantasma assombrando sua geração?
Minha cultura está em mim e em meus sonhos, não nos livros de García Márquez. Eu o considero um bom escritor e um péssimo ser humano (alguém que paparica Fidel Castro e o presidente dos EUA na mesma semana não merece respeito). García Márquez é filho da "cumbia" [dança popular colombiana], e eu cresci escutando rock, imitando a forma de vestir dos "Temptations" e os passos de dança de Michael Jackson. Que posso ter em comum com esse papagaio dissecado?

A fama, talvez?
A fama é agradável, pode proporcionar certas vantagens para conseguir uma mesa em um restaurante ou conquistar uma garota. "Márqueting" usou a fama segundo seu critério: adorar qualquer coisa que cheire a poder. Ele usou a fama para obter mais fama com uma voracidade que os anos e a decrepitude não apagaram. Talvez fosse bom se ele a tivesse usado em benefício do povoado em que nasceu, Aracataca, que hoje talvez esteja mais miserável e abandonado do que quando ele era um menino.

"Meu desejo era fazer uma história fragmentada em mil pedaços": ao descrever a própria obra, Sergio Bocafloja parece estar falando de "Técnicas...". Em que medida ele é um personagem autobiográfico?
Tudo o que existe em meus livros é absolutamente autobiográfico. Sou cada um de meus personagens: Rep, Sergio, Marianne... Nada foi inventado. Saí com 800 mulheres nos últimos 25 anos, consumi todas as drogas possíveis e algumas impossíveis, roubei...

Então como você mesmo definiria seu livro?
Sentia a necessidade de contar minha vida precária e suja, que não cabia nesse pomposo ataúde chamado literatura. Venho de um país feito em pedaços, eu mesmo sou um maldito quebra-cabeças sem raça definida, sem origem nem futuro. Alguma coisa à deriva. Com esses pedaços escrevi meus livros. Com esses pedaços trato de saber quem sou.

E quem é você?
Alguém que se entristece quando toca peitos repletos de silicone. Que não confunde informação com sabedoria. Que, quando está apaixonado, não pára de transar e o resto do tempo se masturba pela internet. Embora venha de um país mentiroso, minha mãe me ensinou que a verdade tem sua importância.

Por que o título "Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin", que diz respeito apenas a um pequeno trecho da obra?
Os títulos e o conteúdo de meus livros correspondem à estética de um roqueiro decadente. Eu me sinto assim e isso me agrada. O que busco nesta vida é chamar a atenção, movimentar a massa encefálica dos mamíferos que me cercam.

E você conseguiu?
Acho que algo do que tento comunicar chega aos leitores. Ler me fez mais forte diante da estupidez, escrever me ajudou a aceitar minhas taras e conviver com elas.

Ao contrário da editora do pratagonista Sergio Bocafloja -a Fracasso Limitada-, a sua é a maior do mercado de língua espanhola. Pode-se dizer que você é um Sergio Bocafloja que deu certo?
Vender um milhão de livros, ter um conversível vermelho, fazer amor com Sônia Braga são coisas que aceitaria de boa vontade. Sei que o êxito ajuda a aliviar as noites escuras, mas o fracasso sobrevive. Qualquer ser medianamente lúcido sabe que tudo isso é uma farsa, que rodamos como tontos por superfícies frias e que, quando encontrar Sônia Braga, será tarde demais para ambos.

A Cidade Imóvel de seu livro pode ser considerada uma Macondo em negativo, de onde "a magia" está ausente?
A magia colombiana é um produto de García Márqueting. Macondo lhe deu muito dinheiro e atraiu muitos turistas europeus. Nós que vivemos na Colômbia sabemos que as pessoas aqui não voam pelos ares vítimas de um esconjuro, mas, sim, de uma bomba. Não escrevo catálogos para agências de viagens, mas livros sobre o ruim que é estar aqui e o bom que é um Jack Daniels no café da manhã.

"Mentir é a religião na Cidade Imóvel"; "ameaçar de morte é a segunda religião na Cidade Imóvel". Ela é uma alegoria da Colômbia, extensiva a toda a América Latina?
Eu me comunico por meio de uma estética e de uma sensibilidade contemporâneas. Vivi, li e escrevi sem regras. Sei que, devido a essa mescla incessante, posso me sair melhor do que qualquer outro escritor de minha geração: dançar um blues de Muddy Waters e atravessar as ruas mais perigosas de Bogotá.

A comunicação é um ponto cego em seu horizonte -ou há em excesso ou há de menos. Do amor, em seu livro, pode-se dizer que é uma forma degradada de comunicação?
"Quem te ama deveria te ajudar a ser livre", diz um de meus personagens. Entretanto o amor e o sexo são usados pelos seres humanos para manifestar seu grau de poder. Em vez de nos comunicarmos com o corpo e os sentimentos, nós os convertemos em parte do consumo. Manipulamos aqueles que dizem nos amar; o amor e o sexo acabam sendo outra carnificina. Desejamos mal, amar não significa submeter. Beijamos mal, fazemos amor mal, comemos como porcos... Homens e mulheres insatisfeitos povoam este mundo; homens e mulheres traídos e, ao mesmo tempo, traidores. A traição é a única filosofia possível entre aqueles que perderam toda dignidade.

Como a situação explosiva em que vive a Colômbia influiu em sua literatura?
Meus livros tratam da incomunicação e de estar à deriva. Nasci em um bairro popular de Cartagena e cresci, como todos meus amigos, sem oportunidades. Nossos esportes na adolescência: caçar gringas na praia e brigar com gringos. Escrevo sobre isso. Parece-me infame e estúpido que certos autores colombianos tenham como fórmula transcrever tragédias da imprensa em formato de livro para vender merda repleta de merda. Se se escreve, é para ir mais além, para transcender a notícia da imprensa.

Quais são suas influências?
As canções de Prince e os livros de Truman Capote, filmes como "Paris, Texas", de Wim Wenders, a música de Pixies e Nirvana, as propostas de John Galliano, a comida da minha mãe, as lutas de Cassius Clay e Sugar Ray Leonard. As mulheres que me despedaçaram o coração quando tudo parecia perfeito. Os medos da minha infância, que ainda me assolam certas noites. A poesia de Emily Dickinson e Cesare Pavese. As feridas de bala que tenho na perna direita e na barriga, a de faca que tenho no lábio e as milhares que não se vêem por estarem lá dentro.

Em seu livro, a relação hostil e anti-romântica com o mar -que é "um limite, e não um infinito"- tem algo a ver com sua Cartagena natal, uma cidade litorânea?
Nasci a 200 metros do mar do Caribe; como qualquer homem são, amo e odeio o que sou. Chamo Cartagena de Cidade Imóvel, e ela de fato o é: um lugar parado no tempo, onde a estupidez e a resignação se dão as mãos. Cartagena das Índias tem, em relação ao número de habitantes, o maior cordão de miséria da América Latina. Por trás da alegria dos postais estão a dor, o racismo e a humilhação.

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