São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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+ comportamento

A fronteira final do marketing

Documentário mapeia a herança cultural, científica e publicitária da série "Jornada nas Estrelas"

Divulgação
O ator William Shatner, à direita, interpretando o capitão Kirk em cena do seriado "Jornada nas Estrelas"


ANDREW BILLEN

Quando contemplamos as estrelas, as vemos não como são agora, mas como eram há muitos anos. De maneira semelhante -pelo menos é o que argumenta "How William Shatner Changed the World" [Como William Shatner Mudou o Mundo], um abrangente e cansativo documentário de duas horas- foram precisos 40 anos, sim, 40, para que desenvolvêssemos uma visão clara sobre "Jornada nas Estrelas".
É bom ter em mente que sempre houve um lapso de tempo entre a transmissão e a apreciação da série. Os cinco anos de "exploração de mundos novos e estranhos", que constituía a missão do seriado original, foram reduzidos a três, em 1969, e "Jornada nas Estrelas" só veio a conquistar verdadeira popularidade em reprises, ao longo dos anos 70.
Por fim, as vendas de mercadorias relacionadas à série cresceram tanto que, em 1979, a Paramount lançou "Jornada nas Estrelas - O Filme", a primeira de uma série de lucrativas produções para cinema, e em 87 surgiu um novo seriado para a TV, "Jornada nas Estrelas - A Nova Geração". A longa jornada da série e de seus derivados na TV só terminou no ano passado, com o episódio final de "Star Trek - Enterprise".
Shatner, que agora tem mais de 70 anos, se reinventou como um ator cuja especialidade é parodiar seu mais famoso personagem -o capitão Kirk.
No documentário, o truque narrativo é o desempenho de Shatner, que se comporta como se tivesse forçado a assumir o papel de mestre-de-cerimônias em um programa especialmente ruim voltado aos "nerds", mas na verdade com a esperança de que os telespectadores mais perceptivos terminassem por considerar o documentário excelente.

Jornadas reais
O homem já tinha chegado ao espaço quando o seriado foi lançado, mas, ao que parece, os futuros cientistas da Nasa encontraram tanta inspiração na velocidade de dobra da Enterprise [que dobra o espaço a sua volta e alcança uma velocidade, vista do exterior, como maior que a da luz] quanto na cautelosa alunissagem do Eagle no satélite da Terra.
Vemos Marc Rayman, engenheiro-chefe do departamento de propulsão da Nasa, atendendo a seu telefone em forma de Enterprise e cambaleando de emoção ao ouvir a voz de Shatner. Responsável por enviar a atual Voyager (nome que designa um terço dos descendentes televisivos de "Jornada nas Estrelas") ao lado errado de Júpiter, sua inspiração para a propulsão à base de ferro foi um roteiro de um episódio da série.
Da mesma maneira, a coleta de pedaços acinzentados de rocha na Lua não era excitante o bastante para o jovem Seth Shostak, que queria um espaço exterior repleto de alienígenas e agora vasculha os céus no Centro de Busca de Inteligências Extraterrestres.
A astronauta Mae Jamison, a primeira negra a ir ao espaço, teve seus sonhos despertados pela tenente Uhura, e em seu vôo no ônibus espacial norte-americano, em 1992, enviou uma mensagem a Houston [onde fica o Centro Espacial Johnson, da Nasa] dizendo "todas as freqüências de comunicação estão abertas" (o que talvez possa significar alguma coisa para alguns de vocês).

No dia-a-dia
Mas os mais impressionantes vínculos entre o futuro delineado por "Jornada nas Estrelas" e o futuro que terminamos por viver não podem ser encontrados no espaço exterior, e sim em nossas casas e escritórios.
Rob Haitani, designer de produtos da Palm One, explicou que não é possível encontrar emprego no Vale do Silício se você não for fã de "Jornada nas Estrelas". Martin Cooper, que foi engenheiro-chefe da Motorola, insiste em que seu protótipo para o primeiro celular, ainda que pesado como um tijolo, foi inspirado tanto pelo comunicador de Kirk quanto por sua sábia percepção de "as pessoas são inerentemente móveis".
Um dos primeiros computadores domésticos se chamava Astare, por causa de um planeta que servia de cenário a um episódio da série, e, o mais importante, a Enterprise estava repleta de computadores portáteis ou de mão em um momento em que Arthur C. Clarke previa que em 2001 as máquinas seriam grandes a ponto de permitirem que pessoas flutuassem em seu interior.
Até mesmo os scanners portáteis que diagnosticam nossos tumores hoje em dia se assemelham aos aparelhos portáteis de diagnóstico usados pelo doutor McCoy na enfermaria da espaçonave. Como disse Cooper sobre "Jornada nas Estrelas", "para nós, não era uma fantasia: era um objetivo".

Tripulação multiétnica
Shatner faz algumas menções ao gênio visionário de Gene Roddenberry, o inventor da série, ainda que se tenha descoberto que não havia grande amizade entre eles. Boa parte da "visão" era fruto da necessidade. Os roteiristas terminaram por desenvolver a idéia da sala de teletransporte, que conduzia Kirk em segurança aos planetas que a espaçonave visitava, porque o modelo da nave auxiliar da Enterprise atrasou.
Mas a insistência de Roddenberry em uma tripulação multiétnica foi, na verdade, um gesto corajoso. Como metáfora para um planeta que poderia não apenas sobreviver mas prosperar caso seus habitantes trabalhassem juntos, a cabine de comando da Enterprise não era nada má. As iniciais de James T. Kirk não ficavam longe das iniciais de JFK.
Shatner não é bobo, embora hoje em dia ele constantemente faça papel de bobo. Minha análise favorita sobre o sucesso de "Jornada nas Estrelas" foi a que ele fez em entrevista a um fã, anos atrás. Shatner se queixou de que ninguém costumava mencionar a alegria, que era a marca do programa. O humor do documentário, como Shatner hoje em dia, talvez careça de agilidade, mas pelo menos tentou honrar a alegria de viver que era a marca do programa que lhe serve de tema.


Este texto foi publicado na "New Statesmen". Tradução de Paulo Migliacci.

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