São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ religião

Uma conversa afiada

Melhora da imagem internacional e interesse no grande número de fiéis aproximam China e Vaticano

HENRI TINCQ

Como 10 milhões de católicos poderiam fazer a China tremer? Qual o peso de um anão político como o Vaticano diante do país-continente mais povoado do mundo e comercialmente o mais conquistador?
Essas perguntas ressurgem com a recorrente polêmica sobre as nomeações de bispos, que, na escala dos desafios políticos da China e espirituais do cristianismo, parece irrisória, mas não é menos típica de um confronto de gigantes.
De um lado, um regime comunista que quer melhorar sua imagem internacional sem ceder um centímetro em sua supremacia ideológica; do outro, uma potência espiritual para a qual a liberdade religiosa é a "mãe" de todas as liberdades. Para a igreja, a liberdade de nomear bispos é uma garantia de independência diante das pressões políticas.
Suas relações com as monarquias absolutas e os regimes totalitários sempre foram conduzidas por esse princípio.
Há um ano acreditávamos em uma trégua. Pequim havia demonstrado certo descontentamento pela presença, em Roma, do presidente de Taiwan -que tem relações diplomáticas com o Vaticano- nos funerais de João Paulo 2º. Trocas de gentilezas haviam se seguido à eleição de Bento 16, em 2005.
Em março, a promoção a cardeal do bispo de Hong Kong, monsenhor Joseph Zen, notório opositor, havia provocado apenas uma situação de alerta.

Recuo de Pequim
Começou-se a falar em "normalização", ainda mais plausível porque em um ano ocorreram quatro ordenações de bispos da igreja "oficial" em Xangai, Xian, Wanxian e Suzhou, com o acordo das duas partes. Designados "democraticamente" -por intermédio da Associação Patriótica dos Católicos-, esses bispos obtiveram o consentimento do papa.
Desde então Pequim recuou. Dois outros bispos foram ordenados no final de abril em Kunming (Yunnan) e em Anhui sem o acordo prévio de Roma.
Um terceiro foi promovido em Fujian nas mesmas condições. Medidas unilaterais que lembram as humilhações de outrora e reforçam o campo dos inimigos do diálogo, tanto no Vaticano quanto entre os milhões de cristãos chineses que praticam clandestinamente sua fé e continuam sendo perseguidos.
O papa deu a conhecer seu "profundo desprazer", antes de brandir a ameaça de sanção suprema: a excomunhão dos bispos assim consagrados. Devemos ver aí o fim das esperanças de restabelecimento das relações que os otimistas anunciavam para 2008, ano dos Jogos Olímpicos da China, um encontro que exige avanços das liberdades e dos direitos humanos?
O jogo do quente e do frio continua. Em 19 de junho o cardeal Zen informou de Hong Kong que as "negociações" haviam sido retomadas.
O Vaticano tornou-se especialista nessa diplomacia do pingue-pongue com a China. Uma ameaça de excomunhão foi proferida em junho de 2000, depois de cinco ordenações "ilegítimas", mas ela não foi efetivada. Ainda dessa vez, Roma pretende manter a porta aberta para um reconhecimento que aliviaria os fiéis locais, restabeleceria a unidade das igrejas e teria um alcance simbólico considerável no cenário internacional.
Mas o maior problema permanece: a igreja, tal como existe em seu funcionamento hierárquico, não pode se moldar à política religiosa definida pelo governo chinês.
Pequim não move um dedo quanto a suas premissas para uma eventual "normalização": primeiro, a ruptura do Vaticano com Taiwan, onde a nunciatura chinesa se refugiou desde 1951, dois anos após a vitória da República Popular; segundo, a renúncia a "qualquer ingerência da igreja nos assuntos internos chineses".
O primeiro obstáculo deixou de existir, já que o Vaticano se diz disposto a transferir, de um dia para outro, sua nunciatura para Pequim -mesmo dando a impressão de sacrificar os 300 mil católicos taiwaneses, que pesam menos que os milhões de cristãos do continente.

Nomeações de bispos
A segunda premissa nos leva de volta à disputa sobre as nomeações de bispos. A China não ignora a relação privilegiada de todos os católicos com o papa, mas o artigo 36 da Constituição proíbe qualquer forma de submissão das religiões a uma potência estrangeira.
Pequim não pretende ceder ao Vaticano o controle das nomeações da hierarquia católica, enquanto as dioceses vagas são cada vez mais numerosas -45 dentre uma centena-, os bispos vêm das gerações de jovens fiéis -padres, religiosos ou laicos-, hoje com melhor formação nos EUA e na Europa, cujas universidades e seminários lhes abrem suas portas. Eles suportam cada vez menos seu recrutamento na Associação Patriótica de Católicos, totalmente submetida ao governo, e as restrições à liberdade de culto, de debate e de estudo.
Após as três décadas de prisões arbitrárias, condenações cruéis e destruições de locais de culto que se seguiram à tomada de poder maoísta em 1949, as restrições foram atenuadas a partir de 1978, com as reformas da era Deng Xiaoping.
Mas a direção comunista ainda se preocupa com o dinamismo religioso que atravessa toda a China, nos meios populares e intelectuais, principalmente com a disseminação das igrejas evangélicas ou católicas.
Cinco confissões -budismo, islamismo, taoísmo, protestantismo e catolicismo- têm oficialmente o direito de reunião.
Mas as igrejas que se recusam a ser arregimentadas em associações oficiais e celebram "cultos domésticos" -ao abrigo do controle policial- continuam sendo perseguidas.
O braço-de-ferro com Bento 16, para quem a reaproximação com a China é uma prioridade, é acompanhado com interesse por Washington, onde o presidente Hu Jintao foi recentemente lembrado por George Bush do valor que seu país dá à liberdade religiosa. Mas, quanto mais a China se abre às reformas econômicas e inunda os mercados mundiais, mais endurece seu monopólio ideológico sobre a sociedade.


Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: + comportamento: A fronteira final do marketing
Próximo Texto: Nascidos das cinzas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.