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A prova da verdade
O crítico
Luiz Costa Lima investiga
o lugar da ficção
e da literatura
em novo estudo
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
História. Ficção. Literatura", de Luiz
Costa Lima, parte
de uma ausência
-"a carência de
uma reflexão comparativo-contrastiva entre a poesia e a
história"- que o autor qualifica como um dos "estigmas do
Ocidente".
Em seu novo livro, o crítico
continua tratando de questões
com que trabalha há muitos
anos, como a mimese, o controle do imaginário e a busca
permanente de modulações
teóricas adequadas para lidar
com o fenômeno literário.
Desta vez, contudo, ele amplia o campo da análise, mostrando como, a partir da produção historiográfica e teórica
dos gregos, instaura-se uma
trilha conceitual que está longe
de dar conta da complexidade
dos três termos (história, ficção e literatura) e dos pontos
em que eles se aproximam e,
principalmente, se distanciam.
Para dar conta do projeto,
sobre o qual fala na entrevista a
seguir, Costa Lima manipula
com impressionante segurança
e erudição idéias de uma série
imensa de autores, de Aristóteles, Heródoto e Tucídides a
Wolfgang Iser, de um texto
quase desconhecido de William James a uma minuciosa
discussão de um trecho de "A
Morte de Virgílio", de Hermann Broch.
FOLHA - Qual o lugar de "História.
Ficção. Literatura" em sua obra? Por
que surgiu a preocupação mais específica com a "história", já que os
outros dois ângulos o senhor já
abordara antes inúmeras vezes?
LUIZ COSTA LIMA - Não creio que
haja, no livro, uma diferença de
preocupação com a escrita da
história, que a singularize
quanto aos outros dois itens.
Alguém já disse que só ao envelhecer temos condições de nos
perguntar sobre o que fizemos
toda a vida. É certo que meu objeto sempre foi a literatura.
Mas não se pensa sobre ela
sem pensar na história e na ficção. Disse-me então: eis o momento de considerar quais as
relações de convergência e divergência entre os três termos.
Por que a escrita da história
está próxima da ficção, sem se
confundir com ela? Por que,
mesmo entendendo a ficção como termo que abrange prosa e
poesia, ela não é sinônimo de literatura? Não haveria espaço
para adiantar as respostas.
Apenas acrescento que, no
que diz respeito à historiografia
e à ficção, elas se desenvolvem
em um sentido horizontal
-suas diferenças se dão em termos de formações discursivas
diferenciadas- e em um sentido vertical, antropológico -são
respostas distintas a necessidades humanas básicas e passíveis de serem atualizadas, se
condições histórico-sociais o
favorecerem (no caso da escrita
da história, foi a Grécia que o
permitiu, e não a Assíria, a Babilônia ou as crenças dos antigos judeus).
FOLHA - O sr. termina a primeira
seção do livro aproximando a "verdade histórica" de uma investigação
judiciária, ressaltando que caberia
ao historiador explicitar regras que
já são preestabelecidas para a autoridade judiciária. Com isso, a idéia
ingênua de uma história "definitiva" cede lugar a um processo permanente de pesquisa, investigação.
O que significaria e implicaria esse
"explicitar regras"?
COSTA LIMA - Ao chegar ao fim
da seção A, verifiquei, com a
ajuda de Ricardo Benzaquen,
que todo o raciocínio encaminhava para uma questão que foi
apenas esboçada: a escrita da
história segue um pressuposto
de verdade que não é o da verdade científica, mas sim jurídica. A verdade científica supõe
experimentação e verificação.
A jurídica implica adequação
de um caso particular a uma
norma (escrita ou costumeira).
Adequação afirmada pela interpretação da autoridade que
se julga competente.
Três conclusões daí derivam:
a) o que aí se disse sobre a história ainda precisa ir mais fundo;
b) a ficção não parte de nenhuma espécie de verdade; se dela
se aproxima, é por seu processo
de composição; c) a escrita da
história põe em cena outra concepção de verdade que não a
das ciências da natureza.
A explicitação de suas regras
significa manifestar as razões
que presidiram a interpretação
adotada, e estas não podem ser
confundidas com a apreensão
de processos naturais.
FOLHA - Gostaria que o sr. comentasse a seguinte passagem: "A ficção precisa de controle. Ao nos contentarmos com a reflexão medíocre
que a Antigüidade, com exceção de
Aristóteles, nos legou, continuamos
agentes praticantes desse controle.
Tudo em nome da estabilidade de
nossa vida. Para combater a ficção,
necessita-se de uma ficção que não
se formule como ficção. E a sociedade nos será agradecida".
COSTA LIMA - A passagem é irônica, se não amarga. Chama-se
a atenção para o que normalmente se ignora: a ausência de
uma reflexão considerável, pela
Antigüidade, do que fosse ficção. Pois aceitar que algo é ficcional é perigoso, individual e
socialmente.
Daí a necessidade de submetê-la a algo que consideramos
verdadeiro (hoje em dia, o que
entendemos por "realidade").
O que ainda equivale a dizer: a
submetê-la ao que temos por
lógico e, portanto, racional.
FOLHA - O sr. acredita que a ficção
ainda possua efetivamente esse papel "instabilizador", que justificava
a "esquiva da ficcionalidade" de um
Virgílio na Antigüidade?
COSTA LIMA - A forma discursiva
que nós, ocidentais, aceitamos
como ficcional já não tem o impacto que teve até meados do
século 20. Esse discurso, normalmente chamado de "literário", é hoje muito pouco instabilizador. Em troca, desenvolveu-se, entre as décadas de
1960 e 1980, com o nome de
teoria da literatura, uma busca
fremente de entendê-lo melhor. A cultura industrializada e
a mediocrização das universidades fizeram a onda cessar.
Mas mesmo as obras que já
nascem programadas para ser
best-sellers praticam a velha
esquiva. Como? Diluindo sua
ficcionalidade em formulações
ou desfechos aceitos pelo chamado "bom senso". Para isso,
recorrem à ciência, à magia etc.
FOLHA - O sr. afirma que "[o cineasta] Claude Lanzmann mostraria
ao mundo que situações extremas,
como a dos campos de concentração
nazistas, exigem a quase absoluta
abstinência de ficcionalidade". Por
que essa quase interdição?
COSTA LIMA - O que o filme
"Shoah", de Lanzmann, parece
mostrar é que há situações extremas -a dos campos de concentração- em que o próprio
uso da ficcionalidade seria criminoso. Estou longe, pois, de
aceitar que a poesia -um tipo
de ficção- seja, por si, de antemão, superior a qualquer outro
modo trabalhado de expressão.
Não tendo como pressuposto
nenhuma idéia de verdade, a
ficção está em melhores condições para acentuar a irracionalidade presente no mundo.
O extermínio de um povo
-não necessariamente o povo
judeu- é algo em si tão irracional que tratar dele ficcionalmente deixa a própria ficcionalidade em pane.
FOLHA - Como o sr. analisa o campo da "literatura de testemunho" e
a inclusão, proposta por estudiosos
da área, da idéia de "trauma" na
compreensão do que é "real"?
COSTA LIMA - Creio ser necessário distinguir "testemunho" de
"documento". E considerar
que, imediatamente, os dois remetem igualmente à história. O
que não os impede de virem a
ser literatura. Mas, quando isso
sucede, não é por conta da matéria de que tratam, mas da linguagem densa com que a tratam. Quanto à questão do trauma, diria apenas que seu manejo depende da faixa discursiva
em que é ele analisado: a análise de um caso de Freud não se
confunde com um trauma em
um personagem ficcional!
A diferença de tratamentos
conforme o tipo de discurso é
fundamental para que nem se
pense a psicanálise como um
romance nem se insista na interpretação psicanalítica da
obra ficcional.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O
Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).
HISTÓRIA. FICÇÃO. LITERATURA
Autor: Luiz Costa Lima
Editora: Companhia das Letras (tel.
0/xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 53 (440 págs.)
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