São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

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A prova da verdade

O crítico Luiz Costa Lima investiga o lugar da ficção e da literatura em novo estudo

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

História. Ficção. Literatura", de Luiz Costa Lima, parte de uma ausência -"a carência de uma reflexão comparativo-contrastiva entre a poesia e a história"- que o autor qualifica como um dos "estigmas do Ocidente".
Em seu novo livro, o crítico continua tratando de questões com que trabalha há muitos anos, como a mimese, o controle do imaginário e a busca permanente de modulações teóricas adequadas para lidar com o fenômeno literário.
Desta vez, contudo, ele amplia o campo da análise, mostrando como, a partir da produção historiográfica e teórica dos gregos, instaura-se uma trilha conceitual que está longe de dar conta da complexidade dos três termos (história, ficção e literatura) e dos pontos em que eles se aproximam e, principalmente, se distanciam.
Para dar conta do projeto, sobre o qual fala na entrevista a seguir, Costa Lima manipula com impressionante segurança e erudição idéias de uma série imensa de autores, de Aristóteles, Heródoto e Tucídides a Wolfgang Iser, de um texto quase desconhecido de William James a uma minuciosa discussão de um trecho de "A Morte de Virgílio", de Hermann Broch.

 

FOLHA - Qual o lugar de "História. Ficção. Literatura" em sua obra? Por que surgiu a preocupação mais específica com a "história", já que os outros dois ângulos o senhor já abordara antes inúmeras vezes?
LUIZ COSTA LIMA -
Não creio que haja, no livro, uma diferença de preocupação com a escrita da história, que a singularize quanto aos outros dois itens. Alguém já disse que só ao envelhecer temos condições de nos perguntar sobre o que fizemos toda a vida. É certo que meu objeto sempre foi a literatura. Mas não se pensa sobre ela sem pensar na história e na ficção. Disse-me então: eis o momento de considerar quais as relações de convergência e divergência entre os três termos. Por que a escrita da história está próxima da ficção, sem se confundir com ela? Por que, mesmo entendendo a ficção como termo que abrange prosa e poesia, ela não é sinônimo de literatura? Não haveria espaço para adiantar as respostas. Apenas acrescento que, no que diz respeito à historiografia e à ficção, elas se desenvolvem em um sentido horizontal -suas diferenças se dão em termos de formações discursivas diferenciadas- e em um sentido vertical, antropológico -são respostas distintas a necessidades humanas básicas e passíveis de serem atualizadas, se condições histórico-sociais o favorecerem (no caso da escrita da história, foi a Grécia que o permitiu, e não a Assíria, a Babilônia ou as crenças dos antigos judeus).

FOLHA - O sr. termina a primeira seção do livro aproximando a "verdade histórica" de uma investigação judiciária, ressaltando que caberia ao historiador explicitar regras que já são preestabelecidas para a autoridade judiciária. Com isso, a idéia ingênua de uma história "definitiva" cede lugar a um processo permanente de pesquisa, investigação. O que significaria e implicaria esse "explicitar regras"?
COSTA LIMA -
Ao chegar ao fim da seção A, verifiquei, com a ajuda de Ricardo Benzaquen, que todo o raciocínio encaminhava para uma questão que foi apenas esboçada: a escrita da história segue um pressuposto de verdade que não é o da verdade científica, mas sim jurídica. A verdade científica supõe experimentação e verificação. A jurídica implica adequação de um caso particular a uma norma (escrita ou costumeira). Adequação afirmada pela interpretação da autoridade que se julga competente. Três conclusões daí derivam: a) o que aí se disse sobre a história ainda precisa ir mais fundo; b) a ficção não parte de nenhuma espécie de verdade; se dela se aproxima, é por seu processo de composição; c) a escrita da história põe em cena outra concepção de verdade que não a das ciências da natureza. A explicitação de suas regras significa manifestar as razões que presidiram a interpretação adotada, e estas não podem ser confundidas com a apreensão de processos naturais.

FOLHA - Gostaria que o sr. comentasse a seguinte passagem: "A ficção precisa de controle. Ao nos contentarmos com a reflexão medíocre que a Antigüidade, com exceção de Aristóteles, nos legou, continuamos agentes praticantes desse controle. Tudo em nome da estabilidade de nossa vida. Para combater a ficção, necessita-se de uma ficção que não se formule como ficção. E a sociedade nos será agradecida".
COSTA LIMA -
A passagem é irônica, se não amarga. Chama-se a atenção para o que normalmente se ignora: a ausência de uma reflexão considerável, pela Antigüidade, do que fosse ficção. Pois aceitar que algo é ficcional é perigoso, individual e socialmente. Daí a necessidade de submetê-la a algo que consideramos verdadeiro (hoje em dia, o que entendemos por "realidade"). O que ainda equivale a dizer: a submetê-la ao que temos por lógico e, portanto, racional.

FOLHA - O sr. acredita que a ficção ainda possua efetivamente esse papel "instabilizador", que justificava a "esquiva da ficcionalidade" de um Virgílio na Antigüidade?
COSTA LIMA -
A forma discursiva que nós, ocidentais, aceitamos como ficcional já não tem o impacto que teve até meados do século 20. Esse discurso, normalmente chamado de "literário", é hoje muito pouco instabilizador. Em troca, desenvolveu-se, entre as décadas de 1960 e 1980, com o nome de teoria da literatura, uma busca fremente de entendê-lo melhor. A cultura industrializada e a mediocrização das universidades fizeram a onda cessar. Mas mesmo as obras que já nascem programadas para ser best-sellers praticam a velha esquiva. Como? Diluindo sua ficcionalidade em formulações ou desfechos aceitos pelo chamado "bom senso". Para isso, recorrem à ciência, à magia etc.

FOLHA - O sr. afirma que "[o cineasta] Claude Lanzmann mostraria ao mundo que situações extremas, como a dos campos de concentração nazistas, exigem a quase absoluta abstinência de ficcionalidade". Por que essa quase interdição?
COSTA LIMA -
O que o filme "Shoah", de Lanzmann, parece mostrar é que há situações extremas -a dos campos de concentração- em que o próprio uso da ficcionalidade seria criminoso. Estou longe, pois, de aceitar que a poesia -um tipo de ficção- seja, por si, de antemão, superior a qualquer outro modo trabalhado de expressão. Não tendo como pressuposto nenhuma idéia de verdade, a ficção está em melhores condições para acentuar a irracionalidade presente no mundo. O extermínio de um povo -não necessariamente o povo judeu- é algo em si tão irracional que tratar dele ficcionalmente deixa a própria ficcionalidade em pane.

FOLHA - Como o sr. analisa o campo da "literatura de testemunho" e a inclusão, proposta por estudiosos da área, da idéia de "trauma" na compreensão do que é "real"?
COSTA LIMA -
Creio ser necessário distinguir "testemunho" de "documento". E considerar que, imediatamente, os dois remetem igualmente à história. O que não os impede de virem a ser literatura. Mas, quando isso sucede, não é por conta da matéria de que tratam, mas da linguagem densa com que a tratam. Quanto à questão do trauma, diria apenas que seu manejo depende da faixa discursiva em que é ele analisado: a análise de um caso de Freud não se confunde com um trauma em um personagem ficcional! A diferença de tratamentos conforme o tipo de discurso é fundamental para que nem se pense a psicanálise como um romance nem se insista na interpretação psicanalítica da obra ficcional.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).

HISTÓRIA. FICÇÃO. LITERATURA
Autor:
Luiz Costa Lima
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 53 (440 págs.)


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