São Paulo, domingo, 23 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros


Nelson Rodrigues na berlinda

Dois lançamentos reúnem obras e depoimentos da crítica e dramaturga Renata Pallottini

TANIA BRANDÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Singeleza e variedade: palavras hábeis para definir "Teatro Completo", de Renata Pallottini. A publicação permite que se considere a editora como a casa do teatro no Brasil, pois nenhuma outra teria a ousadia de publicar um volume de 888 páginas dedicado a um dramaturgo brasileiro.
O termo teatro completo tem, aqui, aplicação muito adequada e remete de estalo à idéia de variedade; a obra reúne textos de natureza muito diversa, desde as peças classificáveis, como obras de juventude, até os textos da maturidade profissional, desde experimentos rápidos, curtos até originais dotados de mais fôlego temático ou temporal, com a inclusão de traduções e adaptações.
Na verdade, trata-se de uma lição de dramaturgia dinâmica, pulsante, um gesto que complementa uma das grandes escolhas profissionais de Pallottini, a mais consagrada das personalidades que se dedicaram no Brasil ao ensino da arte de escrever para teatro.

Vida e obra
Ao ler os diferentes textos, o leitor irá, em um primeiro plano de leitura, conhecer a vida e a obra da dramaturga. Além de uma cronologia sumária e extratos eloqüentes da fortuna crítica, há o prefácio de Mariangela Alves de Lima, um bom guia para a aventura. Ela situa o teatro de Pallottini no cenário do século 20 e em suas próprias coordenadas, bastante peculiares.
Assim, em um segundo momento, o leitor poderá constatar como as peças foram arquitetadas enquanto opções de linguagem teatral, como foi tecida a relação da autora com a tradição do drama ocidental e suas técnicas de escrita, com as suas próprias vivências e as suas necessidades de expressão, com o nosso tempo e a nossa história, com a realidade de São Paulo. A singeleza surge, portanto, pela possibilidade de identificarem-se nas páginas vestígios do gesto da professora de dramaturgia.
Examinados como obra completa, os textos são testemunhos eloqüentes de uma trajetória da dramaturgia brasileira recente. Revelam -além da aproximação indicada com o teatro de Jean-Paul Sartre e o de Jorge Andrade, isto é, a preocupação com a dialética entre o imperativo social e a autonomia do sujeito- a sintonia de nossos autores com as variações da escrita cênica na segunda metade do século 20. Os textos exalam sempre um sabor contemporâneo, uma afinidade com o seu tempo e o teatro desse tempo. É preciso destacar a destreza da farsa exercitada em "O Crime da Cabra", uma comédia de costumes rural de ação vertiginosa, e a densidade do engajamento e da poesia que impregnam os textos dedicados à imigração italiana no Brasil.
"O País do Sol" oferece um detalhado panorama histórico da imigração, do final do século 19 até o aparecimento de Mussolini; a partir de uma festa, com narração direta, quadros curtos mostram trajetórias de vida, pontilhados por canções e teatro no teatro. "Colônia Cecília" estrutura-se como deliberada vontade expositiva; poemas, canções, documentos de época e cenas dramáticas foram reunidos para contar a curta história (1890-1894) da colônia anarquista fundada por Giovannni Rossi no Paraná, uma aproximação forte com o conceito brechtiano de cena.
Brecht também está presente em "Os Fusilis da Senhora Carrara" -embate entre uma cantina à moda antiga e o poder da fast food, apresentado por uma companhia de teatro cujos integrantes expõem algo de seus dramas pessoais, um pouco para que haja distanciamento da ação principal.

Consagração
A rigor, o livro é um ato lícito de consagração. Favorece a percepção mais nítida do que se poderia chamar de linhagem paulista do teatro moderno -uma vertente que ignora as propostas de Nelson Rodrigues, busca remontar às convenções e tradições do drama ocidental, ao legado do drama realista, da peça bem feita e da comédia de costumes, lidos sob uma ótica crítica e ácida; portanto um caminho para instaurar uma forma moderna.
A idéia de consagração aparece mais clara se considerarmos o lançamento simultâneo de "Renata Pallottini Cumprimenta e Pede Passagem", de Rita Ribeiro Guimarães. É um depoimento comovedor e apaixonado; a dramaturga revela os meandros de sua vinculação ao palco e situa também as múltiplas vertentes em que atuou -a televisão, o ensino de teatro e de dramaturgia, a poesia, a identidade política, a aproximação com a cultura hispânica e cubana.
Em certo grau, são obras complementares, embora esta biografia padeça de todos os males de edição apressada, problemas que não afligem o leitor de "Teatro Completo". São inúmeros os erros de digitação e -o que é mais grave- são muitos os erros de informação inaceitáveis em uma publicação que pretende consolidar o conhecimento do teatro paulista. Faltou revisão, para que não se atribuísse a Ruggero Jacobbi a direção de "A Moratória", de Jorge Andrade (às vezes grafado com erro), notável encenação de Gianni Ratto, e para que não se localizasse a fundação da Escola de Arte Dramática, de 1948, na década de 50.
Ainda assim, fica o lucro: são livros que trazem o teatro para a ordem do dia, encanto singelo sob o variado das formas.


TANIA BRANDÃO é autora de "A Máquina de Repetir e a Fábrica de Estrelas" (7 Letras).

TEATRO COMPLETO
Autor: Renata Pallottini
Editora: Perspectiva (tel. 0/xx/ 11/3885-8388)
Quanto: R$ 75 (888 págs.)

RENATA PALLOTTINI CUMPRIMENTA E PEDE PASSAGEM
Autor:
Rita Ribeiro Guimarães
Editora: Imprensa Oficial do Estado de SP (tel. 0/xx/11/6099-9800)
Quanto: R$ 9 (264 págs.)


Texto Anterior: A marca humana
Próximo Texto: + livros: A prova
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.