São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CONEXÃO AMERICANA
Pesquisadora aponta que uma organização dos EUA teria atuado a favor do regime militar
A companhia secreta

Folha Imagem
O então embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, passa em revista um destacamento da Polícia Militar no RJ, em 62


MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
CLAUDIO JULIO TOGNOLLI
do "Notícias Populares"

Um livro a ser lançado nesta semana no Brasil, "Polícia e Política - Relações Estados Unidos/América Latina" (Cortez Editora), traz novas revelações sobre a participação de órgãos do governo norte-americano no movimento militar de 1964.
Na obra, que investiga a evolução da cooperação policial entre Estados Unidos e América Latina neste século, a pesquisadora Martha Huggins aponta que a Casa Branca, por intermédio da OPS (Office of Public Safety - Seção de Segurança Pública), tramou a favor do regime que vigorou no Brasil até 1985. A OPS, criada em 1962, era um setor da AID (ou Usaid, Agência para o Desenvolvimento Internacional, que promovia cooperações em várias esferas) que coordenava o treinamento de policiais civis e promovia programas de intercâmbio entre polícias de todo o mundo.
Graças à Lei de Liberdade de Informação dos EUA, Huggins pesquisou durante dez anos 600 documentos antes secretos da CIA (Agência Central de Inteligência), da AID, do Senado norte-americano e dos arquivos de cinco presidentes norte-americanos, como John Kennedy e Lyndon Johnson. Também ouviu autoridades norte-americanas e personagens envolvidos no aparelho repressivo brasileiro.
As informações trazidas à luz por Huggins vêm se aliar a revelações anteriores que indicam que os EUA não ficaram à margem dos acontecimentos do movimento militar: a Operação Brother Sam, frota naval norte-americana que estaria pronta para intervir no Brasil, e as ações do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que financiava com dinheiro norte-americano propaganda anticomunista e campanhas de deputados contra o ex-presidente João Goulart.
Entre as principais revelações de Huggins, no livro e em entrevista à Folha, estão:
1. Os EUA treinaram, no próprio país e no Brasil, de 1958 a 1974, 100 mil policiais brasileiros em programas de intercâmbio. "Sempre que digo esse número a um brasileiro, ele fica chocado", disse Huggins.
2. Lincoln Gordon, embaixador norte-americano no Brasil de 1961 a 1966 indicou os militares brasileiros Amerino Raposo Filho e Riograndino Kruel, dois dos criadores do DOI/Codi (Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, órgãos de repressão), para fazerem um curso de inteligência militar da CIA nos EUA. A pesquisadora encontrou a informação no documento 512.070.50342 do Arquivo Nacional norte-americano.
3. Agentes da OPS estavam presentes, segundo Huggins, no Primeiro Seminário de Segurança Interna, em Brasília, em 1969, e estimularam a criação da Oban (Operação Bandeirantes). A Oban era um sistema centralizado de segurança, com participação de militares e civis, que tinha por objetivo combater a subversão e inspiraria no mesmo ano a criação do DOI/Codi.
4. Agentes norte-americanos da OPS tinham trânsito livre entre agentes da repressão brasileira do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), Oban e DOI/Codi, segundo demonstram relatórios encontrados por Huggins de agentes da OPS enviados aos EUA.
5. Agentes da OPS ajudaram "discretamente", diz Huggins, na redação da Lei Orgânica das Polícias, em 1967, que colocou as polícias militares sob o comando do Exército.
6. A estrutura da Oban foi, depois, levada pelo chefe da OPS no Brasil, o norte-americano Theodore Brown, ao Vietnã, e lá rebatizado Projeto Phoenix. "A Oban foi um projeto piloto", afirma a pesquisadora.
7. Agentes da OPS fizeram ronda, no Rio de Janeiro (RJ), com agentes brasileiros, na caça aos sequestradores do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick, em 1969.
8. Norte-americanos treinaram e participaram de ações da elite da Polícia Civil brasileira. ", que estava envolvida com o Esquadrão da Morte.
9. Documentos encontrados por Huggins provam que a OPS, por meio de telegramas enviados pela embaixada norte-americana no Brasil, passou a usar simultaneamente a mesma nomenclatura de divisão de áreas de segurança interna do DOI/Codi.
10. Assessores diretos da Casa Branca tinham informações sobre a tortura praticada pelos aparelhos repressivos brasileiros desde o início do regime militar, mas só reagiu a isso em 1974. "Se pessoas tão próximas do presidente sabiam, por que ele não saberia?", pergunta Huggins.
11. Walt Rostow, consultor de segurança do presidente John Kennedy, defendia a violência no combate ao comunismo e afirmava que, após a consolidação do capitalismo, a violência pararia. Para Rostow, Castelo Branco havia "herdado de Goulart... um Congo sofisticado", segundo memorando do Arquivo Executivo da Casa Branca citado por Huggins.
12. O SNI (Serviço Nacional de Informação) e o INI (Instituto Nacional de Identificação) foram sugeridos e equipados pelos norte-americanos. Huggins diz no livro que o primeiro diretor do SNI, o general Golbery do Couto e Silva, "teve uma boa dose de ajuda da OPS e da CIA".
13. Agentes da OPS no Rio de Janeiro ensinaram policiais brasileiros a fotografar as primeiras manifestações de estudantes em 1968 como forma de intimidação.
Entrevistado pela Folha, o ex-embaixador Lincoln Gordon (leia à pág. 5-6) negou que tivesse qualquer envolvimento direto com o movimento militar, disse que a OPS e a CIA eram entidades completamente diferentes e que os EUA não poderiam ser responsabilizados por torturas praticadas por ex-membros de seus programas de intercâmbio.
O general Vernon Walters, ex-adido militar dos EUA no Brasil, declarou à Folha (leia à pág. 5-6) que nunca ouviu falar da OPS e afirmou que o Exército norte-americano "não tolera a tortura" e que os militares brasileiros não precisavam de "conselhos" para dar golpes.
Para Charles Maechling Jr., ex-diretor do Departamento de Estado norte-americano, no entanto, o governo norte-americano, "especialmente Gordon", esteve envolvido com o movimento militar. "Gordon foi enviado ao Brasil para encorajar o golpe", disse. "Nós, da Casa Branca, fomos negligentes com a América Latina... Modernizamos a polícia da América Latina, que se tornou mais eficiente na defesa de ditadores".
Dois oficiais do Exército brasileiro e um ex-policial do Dops declararam à Folha que agentes norte-americanos circulavam com desenvoltura pelo aparelho repressivo brasileiro.
Segundo o general Helio Ibiapina, que foi ....(CARGO QUE OCUPAVA), um agente brasileiro da CIA costumava reportar-lhe suas atividades e a agência norte-americana estava infiltrada no Ibad (ligado ao regime militar) e também no movimento sindical e no Partido Comunista Brasileiro (PCB).
O ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo (de 1974 a 1979), coronel e deputado estadual (PPB-SP) Erasmo Dias disse que os adidos militares norte-americanos no Brasil eram da CIA. "Cheguei até a ganhar um fuzil AR-15 de um agente da CIA", contou.
O ex-policial civil e agente do DOPS Erwing de Barros deu detalhes de um curso ministrado pela CIA em São Paulo e afirmou: "Foi no curso que descobri que a CIA estava no Brasil para ficar".


A OBRA
"Polícia e Política: Relações Estados Unidos/América Latina" (Cortez Editora, tel. 011/864-0100). Lançamento no dia 27, com a presença da autora, a partir das 19h, na Livraria Cortez (rua Bartira, 317, São Paulo). 294 págs., R$ 29,50.


Relatório Confidencial

Leia a seguir trechos de relatórios confidenciais da OPS enviados desde o Rio de Janeiro para escritório no Panamá da AID, que centralizava as operações da repartição. Estes trechos trazem informes do agente da OPS Lauren D. Mullins, que atuava no Brasil.

Departamento de Estado
Confidencial
De: Rio de Janeiro
Assunto: Relatório de Segurança Pública do mês de fevereiro de 1969

São Paulo (PSA Lauren D. Mullins)

Os "Esquadrões da Morte" de São Paulo e Santos, que já foram assunto de relatórios anteriores, dão continuidade a suas operações. No encerramento do relatório deste período, haviam sido atribuídas ao esquadrão de Santos 12 vítimas, e 42 ao de São Paulo, incluindo três no mesmo dia, todos criminosos sem importância. O secretário de Segurança Pública continua negando o envolvimento da polícia, apesar da opinião generalizada em contrário. Em consequência das operações dos esquadrões, tem havido uma marcante diminuição do índice de criminalidade, embora o secretário atribua isto à maior dedicação e supervisão da polícia, além dos benefícios dos planos de descentralização recentemente implantados. PSA Mullins relata que, surpreendentemente, o comentário público geral sobre as atividades dos "Esquadrões da Morte" são favoráveis.

PSA Mullins reuniu-se duas vezes neste mês com o secretário de Segurança Pública Meirelles para discutir o planejamento geral do treinamento em campo: comunicações, identificação, tráfego, etc. A pedido do secretário, PSA Mullins relatou que passou três dias com a Patrulha Rodoviária, observando instalações, funções e operações para aconselhar seu aperfeiçoamento. (...)




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