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CONEXÃO AMERICANA
Para pesquisadora, EUA treinaram 100 mil policiais brasileiros
Paulo Giandália/Folha Imagem
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A pesquisadora norte-americana Martha Huggins, autora de 'Polícia e Política'
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O relacionamento favorável
MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha
Martha K. Huggins, 54, pesquisadora e professora de sociologia
da Union College, do Estado de
Nova York, estuda o Brasil há 22
anos. Antes de seu trabalho sobre
a cooperação policial, estudou a
passagem do trabalho escravo ao
livre em Pernambuco.
Em sua pesquisa para o livro
"Polícia e Política - Relações Estados Unidos/América Latina", ela
descobriu que a cooperação policial dos norte-americanos com o
Brasil começou em 1917 devido à
Internacional Comunista.
Foi durante a Segunda Guerra
que a cooperação amadureceu.
Membros das Forças Armadas
brasileiras, como o general
Amaury Kruel, chefe de polícia do
Rio de Janeiro, oficializaram os
programas de intercâmbio. Na era
Kennedy, treinar policiais de outros países ganhou uma face ideológica, quando foi criada a OPS. O
custo para equipar o policial médio era um quinto do custo do soldado, revela Huggins.
A OPS foi criada para, segundo
Bob Kennedy, "transformar polícias estrangeiras em primeiríssima
linha de defesa contra o comunismo". O primeiro administrador
da OPS, Byron Engle, era da CIA.
Em 1969, a OPS estava no 1º Seminário de Segurança Interna, em
Brasília, e teria estimulado a criação de uma organização capaz de
coordenar e centralizar a luta contra a subversão. O resultado deste
seminário foi a criação da Oban,
com que a OPS tinha um "relacionamento favorável", apurou.
Quando começaram, nos EUA,
as denúncias de violações dos direitos humanos no Brasil, o Senado norte-americano passou a investigar seus programas de intercâmbio. Numa audiência, em
1971, Richard Helms, diretor da
CIA, afirmou a uma comissão secreta que a CIA "soubera que as
forças de seguranças brasileiras
não estavam isentas do emprego
da tortura", inclusive em clérigos
"envolvidos em subversão".
Leia a seguir entrevista que Martha Huggins deu à Folha, em junho, quando esteve no Brasil.
Folha - Qual o papel da CIA nos
acontecimentos de 64?
Huggins - É importante saber
quem era da CIA e qual o seu papel, mas culpá-la por tudo é cair
numa armadilha e perder o importante. O que aconteceu, em 64, era
maior do que a CIA. A estrutura
que a Casa Branca criou era maior.
Havia a ideologia consciente, como o papel do Usis (United States
Information Service - Serviço de
Informação dos Estados Unidos),
que chegou a fazer propaganda
contra Jorge Amado e propaganda
anticomunista em fósforos, guardanapos, histórias em quadrinhos.
Existia também a ideologia do Departamento de Estado norte-americano, a criação de uma mentalidade de segurança nacional, que
amadureceu no início dos anos 60.
Folha - Seu livro diz que o programa de intercâmbio de policiais
se fortaleceu com John Kennedy.
Era a Casa
Branca que
operava?
Huggins -
Todos falam
que Bob (Robert Kennedy,
irmão do presidente) era o
motor dessa
ideologia. Altamente anticomunista, era
um homem de
operação,
meio imprevisível. Bob sempre quis aumentar a influência dos
EUA no cenário internacional, mais que
seu irmão. Antes de Kennedy, o treinamento da polícia era espalhado em universidades, no Departamento de
Defesa, no Iapa
(Academia Interamericana
de Polícia), no
Panamá. Kennedy centralizou. Na luta
burocrática de
quem controlaria a polícia,
ganhou a Casa
Branca, e a
OPS ficou dentro da AID.
Folha - A CIA
foi esvaziada?
Huggins - A
CIA continuou
com seu poder.
No Brasil, a CIA tinha gente infiltrada na Oban, no DOI/Codi, no
Dops. A CIA está em toda parte,
nunca vai embora. A CIA estava
sempre por trás da OPS.
Folha - Como a OPS se reportava
à Casa Branca?
Huggins - O presidente era
meio evitado, pois faz parte do jogo evitar que o presidente receba
informações que o coloquem em
risco. Nos papéis de cinco ex-presidentes que estudei não encontrei
nada que prove que eles sabiam
das atividades dos agentes da OPS,
o que é muito estranho. Por essa
razão, são importantes esses papéis "Toaid", mensagens enviadas pela OPS do Brasil ao AID, em
Washington. Descreviam os roubos de banco praticados por subversivos, analisavam a lei que dividiu as polícias em militar e civil e a
Lei de Segurança Nacional.
Folha - O que os relatórios diziam
do aparelho repressivo brasileiro?
Huggins - Não criticavam o
DOI/Codi, apesar de estarem cientes da tortura. Para os agentes da
OPS, o DOI/Codi era uma coisa
boa. Aliás, a OPS sempre defendeu
e até sugeriu a criação do DOI/Codi. Lincoln Gordon sugeriu as viagens para os EUA dos militares
Amerino Raposo Filho e Riograndino Kruel, que estabeleceram depois o DOI/Codi.
Folha - Mas Gordon saiu do Brasil
antes da criação do DOI/Codi.
Huggins - Mas mandou um
despacho para os EUA, em 4 de junho de 1964, indicando dois dos
futuros criadores do DOI/Codi para um curso no International Police Service Institute, patrocinado
pela CIA. Isso está no documento
512.070.50342 do Arquivo Nacional norte-americano. E a OPS estava no Seminário de Segurança Interna, em Brasília, que sugeriu a
criação do DOI/Codi.
Folha - Como circulavam os
agentes da OPS no Brasil?
Huggins - Don Mitrione (agente norte-americano, sequestrado
em 30 de julho de 1970, pelos Tupamaros, no Uruguai, julgado e
morto sob a alegação de ensinar
tortura a policiais brasileiros) ficou em Belo Horizonte.
Folha - Mitrione não era da CIA?
Huggins - Uma pessoa do SNI
que entrevistei conheceu Mitrione. Ele estava certo que Mitrione
era da CIA. Mas Philips Agee
(ex-agente da CIA) nega. A CIA
usou Mitrione. Era muito anticomunista, mas nunca foi funcionário da CIA.
Folha - E os outros?
Huggins - Estabeleceram-se em
cidades mais importantes, como
São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Salvador, Porto Alegre e Brasília,
claro. Alguns montaram escritórios, faziam parte da comunidade.
Houve cidades com só uma pessoa. Todos americanos. Exceto
um, o brasileiro Carlos Eckert, no
Rio de Janeiro.
Folha - Eles operavam com a embaixada e os consulados?
Huggins - Sempre operavam
com embaixadas e consulados.
Eram espiões, que queriam criar
informantes dentro da polícia brasileira que pudessem dar informações sobre os acontecimentos do
dia-a-dia e recrutar pessoas leais
aos EUA. Um bom espião deve estar entre as pessoas, circulando,
não num escritório fechado.
Folha - Quantos policiais fizeram
intercâmbio nos EUA?
Huggins - A Iapa foi criada em
1962 pela CIA no Panamá, na base
militar de Fort Davis. Quando a
IPA (Academia Internacional de
Polícia) foi criada, em 1963, em
Washington, englobou a Iapa. A
IPA deu cursos para cerca de cinco
mil policiais, em Washington, de
todo o mundo. Muitos do Irã, da
América Latina, muitos de Taiwan. Poucos da África, que, naquela época, não era considerado
estratégica.
Folha - Como era o perfil desses
policiais?
Huggins - Policiais de alto nível, que vinham como se tivessem
recebido uma promoção. Vinham
pelo prestígio.
Folha - E quem indicava?
Huggins - Ambos os lados. Havia policiais americanos que ouviam relatos da qualidade do policial candidato, que eram questionados sobre a admiração pelos
EUA.
Folha - Direta e indiretamente,
quantos policiais os norte-americanos treinaram?
Huggins - Os EUA treinaram
um milhão de policiais, entre 1958
e 1974. A maioria foi assistida no
próprio país de origem.
Folha - E brasileiros?
Huggins - Cerca de 100 mil.
Sempre que digo isso a um brasileiro, ele fica chocado. O treinamento de policiais brasileiros custou, aos EUA, sem contar o dinheiro da CIA, US$ 10 milhões. O
mais interessante é que esse dinheiro não era de graça. O governo
americano exigia que o Brasil aplicasse duas vezes, do próprio bolso.
Ajuda policial é relativamente barata, comparada à ajuda militar.
Folha - A sra. teve acesso a quantos documentos do período?
Huggins - O livro foi escrito em
cima de 600 documentos. Mesmo
assim, existem documentos com
trechos ainda secretos, como o
"hearing" (audiência do Senado
norte-americano) que ouviu Richard Helms (ex-diretor da CIA),
em 1971 (leia trecho nesta pág.).
Folha - O que há de secreto no
depoimento de Helms?
Huggins - Apurei que era sobre
a Operação Gaiola, um pente-fino
e uma série de prisões que a polícia
brasileira fez no aniversário de um
ano da morte de Marighella, em
1970. Todo o testemunho da CIA
sobre esse dia está censurado.
Folha - Algum agente da OPS
participou de ação armada?
Huggins - Encontrei relatos de
um conselheiro da OPS que assistiu ao planejamento da invasão de
uma favela pelo Esquadrão da
Morte. Eles andaram com a polícia. Quando o embaixador norte-americano Charles Elbrick foi
sequestrado em 1969, no Rio de Janeiro, agentes da OPS saíram em
patrulhas com a polícia brasileira
para encontrar os sequestradores.
Tentei muito encontrar alguém
que tivesse sido torturado por
agente da OPS, no Brasil, mas não
encontrei. Só no Uruguai encontrei relatos de pessoas que ouviram
sotaque norte-americano na sala
de tortura. Não se pode entender o
período só pela tortura, mas pela
institucionalização da intromissão
norte-americana nos espaços militar e civil. Ajudamos a criar a Rudi
(Rondas Unificadas e Departamento de Investigação), que depois deu origem à Rota (Rondas
Ostensivas Tobias de Aguiar), e estivemos envolvidos com o Esquadrão da Morte.
Folha - A OPS tinha bons contatos no DOI/Codi?
Huggins - No final dos anos 60,
o DOI/Codi criou uma nova divisão de zonas de segurança no Brasil. Quando o DOI/Codi passou a
usar essa nova nomenclatura, a
OPS também começou a usar. Outro exemplo é que o projeto da
Oban foi piloto para o Projeto
Phoenix, do Vietnã, tendo a mesma pessoa envolvida: Theodore
Brown, chefe da OPS.
Folha - A Casa Branca estava
ciente da tortura?
Huggins - No testemunho da
Helms, cujo chefe estava numa posição de gabinete com o presidente, ficou provado que ele sabia da
tortura, sabia dos padres torturados. Theodore Brown também sabia. O Departamento de Estado
também sabia. Vários embaixadores sabiam. Se essas pessoas, tão
próximas do presidente, sabiam,
por que o presidente não saberia?
Folha - A Casa Branca sabia que a
OPS estava sendo usado para fins
políticos em regimes autoritários?
Huggins - Como não poderiam
saber? Os senadores foram avisados de que esses programas fortificavam governos violentos e autoritários e que a polícia estava fora
de controle.
Folha - No entanto, a OPS só foi
extinta em 1974.
Huggins - A Casa Branca defendia que não haveria crescimento
econômico sem segurança. Isso
era uma idéia acadêmica em voga,
de Walt W. Rostow (professor do
MIT - Instituto de Tecnologia de
Massachusetts e conselheiro de
Kennedy). Rostow chegou a dizer
que o Brasil, no período de Goulart, era um Congo sofisticado, e
que precisava haver uma limpeza.
A idéia da Casa Branca era criar segurança de qualquer jeito, até que,
quando o capitalismo vingasse,
não houvesse mais violência.
Folha - Ensinava-se tortura nesses cursos norte-americanos?
Huggins - Isso é polêmico. Eles
aprendiam a fazer bombas, operações psicológicas, técnicas de interrogatório e como criar confusão em manifestações, infiltrando-se.
Folha - A cena do filme "Estado
de Sítio" (de Costa-Gavras), com o
personagem Mitrione ensinando a
aplicar choque elétrico num preso
pendurado num pau-de-arara é
ficção?
Huggins - Concordo com especialistas quando dizem que ninguém precisa ensinar a polícia brasileira como torturar. Paulo Sérgio
Pinheiro já notou que o pau-de-arara é coisa antiga, de antes. Havia
o rádio de campo americano que
era muito usado em tortura com
choque elétrico. Eu não tenho provas, mas não tenho dúvida de que
se trocavam informações. Ensinávamos muito a operar um detector
de mentira com o uso de soro da
verdade.
Folha - Como era a trajetória dos
relatórios?
Huggins - As informações começavam com o pessoal de campo
da OPS, passava pela CIA, pela
embaixada e chegava até o Departamento de Estado e à Casa Branca. Passava por todos. No princípio, até o começo de 64, os telegramas da embaixada eram assinados
pelo Lincoln Gordon. Depois, não
havia assinatura de ninguém.
Folha - Houve alguma pressão da
Casa Branca sobre as autoridades
brasileiras para que parassem a
tortura no Brasil?
Huggins - Nunca vi nenhum
documento a respeito. Não posso
provar que os presidentes sabiam,
só posso dizer que não há como
eles não saberem, quando tantos
conselheiros próximos que sabiam.
Ditadura Consentida
Leia a seguir trechos do depoimento de Richard Helms, diretor da CIA, no Comitê de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, em 5 de maio de 1971, que investigava as denúncias de participação de órgãos norte-americanos em tortura no Brasil. Parte do texto permanece secreta (veja fac-símile acima).
Nesse depoimento, Helms afirmou que o regime militar era uma "ditadura consentida" pelos brasileiros.
"Sr. Presidente, entendo que a comissão também tem interesse pela estrutura do governo brasileiro e pelas perspectivas de mudanças políticas no próximo mandato. Devido à natureza do governo brasileiro, da própria personalidade do presidente Médici e da desconfiança dos militares de pessoas estranhas, o problema de definir o processo de tomada de decisões é difícil. O ramo executivo, porém, sempre foi... (trecho ainda mantido secreto)
(...) constituem-se como uma espécie de ditadura coletiva.
Senador Fulbright - O que significa a ditadura consentida?
Sr. Helms - Senhor, isto é genérico no termo do senador Javits.
Senador Fulbright - Ele lhe perguntou isso, está correto, e o senhor disse sim.
Sr. Helms - Eu estava tentando obter uma descrição.
Senador Fulbright - Eu estou apenas tentando espicaçar seus cérebros. O que o senhor quer dizer com uma ditadura consentida?
Sr. Helms - Bem, na conversa que o senador Javits e eu tivemos ele usou essa frase para explicar ou descrever o que na minha opinião seria o caso de que, se o Brasil tivesse eleições diretas amanhã, teríamos o mesmo presidente.
(....)
Senador Fulbright - O senhor quer dizer que eles nunca tiveram o que poderíamos chamar de eleições diretas?
Sr. Helms - Bem, digamos apenas que todos os que tiveram permissão para votar votaram.
Senador Fulbright - Não estou tentando confundi-lo.
Sr. Helms - Não, não.
Senador Fulbright - E não estou tentando dizer que este país pudesse funcionar sob qualquer outro sistema. Duvido que pudesse.
(...)
Estou absolutamente disposto a aceitar o fato de que este é o sistema que convém a seu temperamento específico e seu grau de maturidade política etc. Portanto, não discuto isso, e não no Brasil. Duvido que eles pudessem se sair melhor."
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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