São Paulo, domingo, 23 de agosto de 1998

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CONEXÃO AMERICANA
Para pesquisadora, EUA treinaram 100 mil policiais brasileiros
Paulo Giandália/Folha Imagem
A pesquisadora norte-americana Martha Huggins, autora de 'Polícia e Política'


O relacionamento favorável

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

Martha K. Huggins, 54, pesquisadora e professora de sociologia da Union College, do Estado de Nova York, estuda o Brasil há 22 anos. Antes de seu trabalho sobre a cooperação policial, estudou a passagem do trabalho escravo ao livre em Pernambuco.
Em sua pesquisa para o livro "Polícia e Política - Relações Estados Unidos/América Latina", ela descobriu que a cooperação policial dos norte-americanos com o Brasil começou em 1917 devido à Internacional Comunista.
Foi durante a Segunda Guerra que a cooperação amadureceu. Membros das Forças Armadas brasileiras, como o general Amaury Kruel, chefe de polícia do Rio de Janeiro, oficializaram os programas de intercâmbio. Na era Kennedy, treinar policiais de outros países ganhou uma face ideológica, quando foi criada a OPS. O custo para equipar o policial médio era um quinto do custo do soldado, revela Huggins.
A OPS foi criada para, segundo Bob Kennedy, "transformar polícias estrangeiras em primeiríssima linha de defesa contra o comunismo". O primeiro administrador da OPS, Byron Engle, era da CIA.
Em 1969, a OPS estava no 1º Seminário de Segurança Interna, em Brasília, e teria estimulado a criação de uma organização capaz de coordenar e centralizar a luta contra a subversão. O resultado deste seminário foi a criação da Oban, com que a OPS tinha um "relacionamento favorável", apurou.
Quando começaram, nos EUA, as denúncias de violações dos direitos humanos no Brasil, o Senado norte-americano passou a investigar seus programas de intercâmbio. Numa audiência, em 1971, Richard Helms, diretor da CIA, afirmou a uma comissão secreta que a CIA "soubera que as forças de seguranças brasileiras não estavam isentas do emprego da tortura", inclusive em clérigos "envolvidos em subversão".
Leia a seguir entrevista que Martha Huggins deu à Folha, em junho, quando esteve no Brasil.

Folha - Qual o papel da CIA nos acontecimentos de 64?
Huggins -
É importante saber quem era da CIA e qual o seu papel, mas culpá-la por tudo é cair numa armadilha e perder o importante. O que aconteceu, em 64, era maior do que a CIA. A estrutura que a Casa Branca criou era maior. Havia a ideologia consciente, como o papel do Usis (United States Information Service - Serviço de Informação dos Estados Unidos), que chegou a fazer propaganda contra Jorge Amado e propaganda anticomunista em fósforos, guardanapos, histórias em quadrinhos. Existia também a ideologia do Departamento de Estado norte-americano, a criação de uma mentalidade de segurança nacional, que amadureceu no início dos anos 60.
Folha - Seu livro diz que o programa de intercâmbio de policiais se fortaleceu com John Kennedy. Era a Casa Branca que operava?
Huggins -
Todos falam que Bob (Robert Kennedy, irmão do presidente) era o motor dessa ideologia. Altamente anticomunista, era um homem de operação, meio imprevisível. Bob sempre quis aumentar a influência dos EUA no cenário internacional, mais que seu irmão. Antes de Kennedy, o treinamento da polícia era espalhado em universidades, no Departamento de Defesa, no Iapa (Academia Interamericana de Polícia), no Panamá. Kennedy centralizou. Na luta burocrática de quem controlaria a polícia, ganhou a Casa Branca, e a OPS ficou dentro da AID.
Folha - A CIA foi esvaziada?
Huggins -
A CIA continuou com seu poder. No Brasil, a CIA tinha gente infiltrada na Oban, no DOI/Codi, no Dops. A CIA está em toda parte, nunca vai embora. A CIA estava sempre por trás da OPS.
Folha - Como a OPS se reportava à Casa Branca?
Huggins -
O presidente era meio evitado, pois faz parte do jogo evitar que o presidente receba informações que o coloquem em risco. Nos papéis de cinco ex-presidentes que estudei não encontrei nada que prove que eles sabiam das atividades dos agentes da OPS, o que é muito estranho. Por essa razão, são importantes esses papéis "Toaid", mensagens enviadas pela OPS do Brasil ao AID, em Washington. Descreviam os roubos de banco praticados por subversivos, analisavam a lei que dividiu as polícias em militar e civil e a Lei de Segurança Nacional.
Folha - O que os relatórios diziam do aparelho repressivo brasileiro?
Huggins -
Não criticavam o DOI/Codi, apesar de estarem cientes da tortura. Para os agentes da OPS, o DOI/Codi era uma coisa boa. Aliás, a OPS sempre defendeu e até sugeriu a criação do DOI/Codi. Lincoln Gordon sugeriu as viagens para os EUA dos militares Amerino Raposo Filho e Riograndino Kruel, que estabeleceram depois o DOI/Codi.
Folha - Mas Gordon saiu do Brasil antes da criação do DOI/Codi.
Huggins -
Mas mandou um despacho para os EUA, em 4 de junho de 1964, indicando dois dos futuros criadores do DOI/Codi para um curso no International Police Service Institute, patrocinado pela CIA. Isso está no documento 512.070.50342 do Arquivo Nacional norte-americano. E a OPS estava no Seminário de Segurança Interna, em Brasília, que sugeriu a criação do DOI/Codi.
Folha - Como circulavam os agentes da OPS no Brasil?
Huggins -
Don Mitrione (agente norte-americano, sequestrado em 30 de julho de 1970, pelos Tupamaros, no Uruguai, julgado e morto sob a alegação de ensinar tortura a policiais brasileiros) ficou em Belo Horizonte.
Folha - Mitrione não era da CIA?
Huggins -
Uma pessoa do SNI que entrevistei conheceu Mitrione. Ele estava certo que Mitrione era da CIA. Mas Philips Agee (ex-agente da CIA) nega. A CIA usou Mitrione. Era muito anticomunista, mas nunca foi funcionário da CIA.
Folha - E os outros?
Huggins -
Estabeleceram-se em cidades mais importantes, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Porto Alegre e Brasília, claro. Alguns montaram escritórios, faziam parte da comunidade. Houve cidades com só uma pessoa. Todos americanos. Exceto um, o brasileiro Carlos Eckert, no Rio de Janeiro.
Folha - Eles operavam com a embaixada e os consulados?
Huggins -
Sempre operavam com embaixadas e consulados. Eram espiões, que queriam criar informantes dentro da polícia brasileira que pudessem dar informações sobre os acontecimentos do dia-a-dia e recrutar pessoas leais aos EUA. Um bom espião deve estar entre as pessoas, circulando, não num escritório fechado.
Folha - Quantos policiais fizeram intercâmbio nos EUA?
Huggins -
A Iapa foi criada em 1962 pela CIA no Panamá, na base militar de Fort Davis. Quando a IPA (Academia Internacional de Polícia) foi criada, em 1963, em Washington, englobou a Iapa. A IPA deu cursos para cerca de cinco mil policiais, em Washington, de todo o mundo. Muitos do Irã, da América Latina, muitos de Taiwan. Poucos da África, que, naquela época, não era considerado estratégica.
Folha - Como era o perfil desses policiais?
Huggins -
Policiais de alto nível, que vinham como se tivessem recebido uma promoção. Vinham pelo prestígio.
Folha - E quem indicava?
Huggins -
Ambos os lados. Havia policiais americanos que ouviam relatos da qualidade do policial candidato, que eram questionados sobre a admiração pelos EUA.
Folha - Direta e indiretamente, quantos policiais os norte-americanos treinaram?
Huggins -
Os EUA treinaram um milhão de policiais, entre 1958 e 1974. A maioria foi assistida no próprio país de origem.
Folha - E brasileiros?
Huggins -
Cerca de 100 mil. Sempre que digo isso a um brasileiro, ele fica chocado. O treinamento de policiais brasileiros custou, aos EUA, sem contar o dinheiro da CIA, US$ 10 milhões. O mais interessante é que esse dinheiro não era de graça. O governo americano exigia que o Brasil aplicasse duas vezes, do próprio bolso. Ajuda policial é relativamente barata, comparada à ajuda militar.
Folha - A sra. teve acesso a quantos documentos do período?
Huggins -
O livro foi escrito em cima de 600 documentos. Mesmo assim, existem documentos com trechos ainda secretos, como o "hearing" (audiência do Senado norte-americano) que ouviu Richard Helms (ex-diretor da CIA), em 1971 (leia trecho nesta pág.).
Folha - O que há de secreto no depoimento de Helms?
Huggins -
Apurei que era sobre a Operação Gaiola, um pente-fino e uma série de prisões que a polícia brasileira fez no aniversário de um ano da morte de Marighella, em 1970. Todo o testemunho da CIA sobre esse dia está censurado.
Folha - Algum agente da OPS participou de ação armada?
Huggins -
Encontrei relatos de um conselheiro da OPS que assistiu ao planejamento da invasão de uma favela pelo Esquadrão da Morte. Eles andaram com a polícia. Quando o embaixador norte-americano Charles Elbrick foi sequestrado em 1969, no Rio de Janeiro, agentes da OPS saíram em patrulhas com a polícia brasileira para encontrar os sequestradores. Tentei muito encontrar alguém que tivesse sido torturado por agente da OPS, no Brasil, mas não encontrei. Só no Uruguai encontrei relatos de pessoas que ouviram sotaque norte-americano na sala de tortura. Não se pode entender o período só pela tortura, mas pela institucionalização da intromissão norte-americana nos espaços militar e civil. Ajudamos a criar a Rudi (Rondas Unificadas e Departamento de Investigação), que depois deu origem à Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), e estivemos envolvidos com o Esquadrão da Morte.
Folha - A OPS tinha bons contatos no DOI/Codi?
Huggins -
No final dos anos 60, o DOI/Codi criou uma nova divisão de zonas de segurança no Brasil. Quando o DOI/Codi passou a usar essa nova nomenclatura, a OPS também começou a usar. Outro exemplo é que o projeto da Oban foi piloto para o Projeto Phoenix, do Vietnã, tendo a mesma pessoa envolvida: Theodore Brown, chefe da OPS.
Folha - A Casa Branca estava ciente da tortura?
Huggins -
No testemunho da Helms, cujo chefe estava numa posição de gabinete com o presidente, ficou provado que ele sabia da tortura, sabia dos padres torturados. Theodore Brown também sabia. O Departamento de Estado também sabia. Vários embaixadores sabiam. Se essas pessoas, tão próximas do presidente, sabiam, por que o presidente não saberia?
Folha - A Casa Branca sabia que a OPS estava sendo usado para fins políticos em regimes autoritários?
Huggins -
Como não poderiam saber? Os senadores foram avisados de que esses programas fortificavam governos violentos e autoritários e que a polícia estava fora de controle.
Folha - No entanto, a OPS só foi extinta em 1974.
Huggins -
A Casa Branca defendia que não haveria crescimento econômico sem segurança. Isso era uma idéia acadêmica em voga, de Walt W. Rostow (professor do MIT - Instituto de Tecnologia de Massachusetts e conselheiro de Kennedy). Rostow chegou a dizer que o Brasil, no período de Goulart, era um Congo sofisticado, e que precisava haver uma limpeza. A idéia da Casa Branca era criar segurança de qualquer jeito, até que, quando o capitalismo vingasse, não houvesse mais violência.
Folha - Ensinava-se tortura nesses cursos norte-americanos?
Huggins -
Isso é polêmico. Eles aprendiam a fazer bombas, operações psicológicas, técnicas de interrogatório e como criar confusão em manifestações, infiltrando-se.
Folha - A cena do filme "Estado de Sítio" (de Costa-Gavras), com o personagem Mitrione ensinando a aplicar choque elétrico num preso pendurado num pau-de-arara é ficção?
Huggins -
Concordo com especialistas quando dizem que ninguém precisa ensinar a polícia brasileira como torturar. Paulo Sérgio Pinheiro já notou que o pau-de-arara é coisa antiga, de antes. Havia o rádio de campo americano que era muito usado em tortura com choque elétrico. Eu não tenho provas, mas não tenho dúvida de que se trocavam informações. Ensinávamos muito a operar um detector de mentira com o uso de soro da verdade.
Folha - Como era a trajetória dos relatórios?
Huggins -
As informações começavam com o pessoal de campo da OPS, passava pela CIA, pela embaixada e chegava até o Departamento de Estado e à Casa Branca. Passava por todos. No princípio, até o começo de 64, os telegramas da embaixada eram assinados pelo Lincoln Gordon. Depois, não havia assinatura de ninguém.
Folha - Houve alguma pressão da Casa Branca sobre as autoridades brasileiras para que parassem a tortura no Brasil?
Huggins -
Nunca vi nenhum documento a respeito. Não posso provar que os presidentes sabiam, só posso dizer que não há como eles não saberem, quando tantos conselheiros próximos que sabiam.

Ditadura Consentida

Leia a seguir trechos do depoimento de Richard Helms, diretor da CIA, no Comitê de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, em 5 de maio de 1971, que investigava as denúncias de participação de órgãos norte-americanos em tortura no Brasil. Parte do texto permanece secreta (veja fac-símile acima).
Nesse depoimento, Helms afirmou que o regime militar era uma "ditadura consentida" pelos brasileiros.

"Sr. Presidente, entendo que a comissão também tem interesse pela estrutura do governo brasileiro e pelas perspectivas de mudanças políticas no próximo mandato. Devido à natureza do governo brasileiro, da própria personalidade do presidente Médici e da desconfiança dos militares de pessoas estranhas, o problema de definir o processo de tomada de decisões é difícil. O ramo executivo, porém, sempre foi... (trecho ainda mantido secreto)
(...) constituem-se como uma espécie de ditadura coletiva.
Senador Fulbright - O que significa a ditadura consentida?
Sr. Helms - Senhor, isto é genérico no termo do senador Javits.
Senador Fulbright - Ele lhe perguntou isso, está correto, e o senhor disse sim.
Sr. Helms - Eu estava tentando obter uma descrição.
Senador Fulbright - Eu estou apenas tentando espicaçar seus cérebros. O que o senhor quer dizer com uma ditadura consentida?
Sr. Helms - Bem, na conversa que o senador Javits e eu tivemos ele usou essa frase para explicar ou descrever o que na minha opinião seria o caso de que, se o Brasil tivesse eleições diretas amanhã, teríamos o mesmo presidente.
(....)
Senador Fulbright - O senhor quer dizer que eles nunca tiveram o que poderíamos chamar de eleições diretas?
Sr. Helms - Bem, digamos apenas que todos os que tiveram permissão para votar votaram.
Senador Fulbright - Não estou tentando confundi-lo.
Sr. Helms - Não, não.
Senador Fulbright - E não estou tentando dizer que este país pudesse funcionar sob qualquer outro sistema. Duvido que pudesse.
(...)
Estou absolutamente disposto a aceitar o fato de que este é o sistema que convém a seu temperamento específico e seu grau de maturidade política etc. Portanto, não discuto isso, e não no Brasil. Duvido que eles pudessem se sair melhor."


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.



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