São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Cinema

Londres sem maquiagem

"Senhores do Crime", novo filme de Cronenberg, retrata violência e sociedade decadente em Londres

GEOFFREY MACNAB

Existem muitas maneiras de mostrar Londres nas telas. Os cineastas muitas vezes exibem a cidade de um ponto de vista turístico. Incontáveis comédias românticas percorreram os marcos notáveis da cidade e aproveitaram para inserir nos enquadramentos reluzentes ônibus de dois andares e policiais amistosos. O fantasma de Stanley Holloway [1890-1982, comediante] nunca parece muito distante.
Existe uma tentativa deliberada de exibir a cidade à melhor luz possível, não importa qual seja a espécie de filme que está em produção. Londres agora dispõe de uma agência municipal, a Film London, que se orgulha em facilitar aos cineastas o uso de locações como a sede do Parlamento ("V de Vingança"), a galeria Tate Modern ("Filhos da Esperança") e o Hyde Park ("Alex Rider Contra o Tempo").
A cidade tem uma capacidade camaleônica de mudar de forma. "Não importa que você deseje século 18, um ar medieval ou o brilho tecnológico do século 21: em Londres é possível encontrar o necessário, e tudo em um raio de três quilômetros", se vangloriou recentemente Adrian Wootton, o diretor da Film London. Mas, com muita freqüência, a Londres revelada nas telas parece irreal ou congelada no tempo.
As pessoas não costumam associar Londres ao cinema noir. De "Caçada na Noite" [1980] a "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes" [1998], muitos filmes sobre o crime tomaram a cidade como cenário, mas os cineastas raramente mergulharam naquilo que o crítico Robert Warshow [1917-55] define como "a perigosa e triste cidade da imaginação".
As audiências em breve terão a chance de assistir a dois brilhantes filmes, ambos dirigidos por norte-americanos, que exploram o decadente submundo londrino de maneira poética e carregada de atmosfera. O primeiro, "Senhores do Crime" ["Eastern Promises" no original, com estréia no Brasil prevista para 30/11], de David Cronenberg, trata de mafiosos russos à procura de ação na cidade.

Excluídos
A Londres que ele leva às telas é impiedosamente cinzenta. Com roteiro de Steve Knight (que também escreveu "Coisas Belas e Sujas", de Stephen Frears), o filme trata de pessoas excluídas. Nenhum dos personagens principais é londrino.
Os protagonistas são assassinos, como o misterioso e implacável Nikolai (Viggo Mortensen), mulheres vendidas como escravas sexuais e capangas tchetchenos. Mesmo a heroína, interpretada por Naomi Watts, tem antecedentes na Rússia.
Depois do assassinato do antigo dissidente soviético Alexander Litvinenko, "Senhores do Crime" oferece atrações tópicas. A idéia de que homicídios possam ocorrer à luz do dia (por exemplo, o jovem torcedor do Chelsea que tem sua garganta cortada do lado de fora do estádio de Stamford Bridge, no filme) deixou de parecer fantasiosa.
Mesmo assim, o trabalho é tanto um drama psicológico quanto um filme de suspense. Apesar da extrema violência, o filme gira em torno do luto pessoal, da perda de identidade e de laços familiares em uma cidade estrangeira tanto quanto gira em torno de uma operação para infiltrar na máfia russa.
"Senhores do Crime" oferece um retrato mais "realista" de Londres do que aquele que encontramos nas comédias românticas sobre livreiros de Notting Hill ou solteirões em busca do amor. Usando o recurso que os cineastas designam "geografia criativa", Cronenberg tomou liberdades semelhantes com suas locações -a diferença é que a sensibilidade que ele exibe em seu trabalho é muito mais sombria.
Filmando no Three Mills Studios, no coração do East End, e escolhendo locações como Smithfield e casas de banho turco na periferia, em lugar de locais turísticos conhecidos, ele retrata uma Londres que ostenta um ar pesado de ameaça. O Tâmisa parece imundo, e seu principal uso para os russos é como lugar onde depositar cadáveres.
Londres é exibida de maneira igualmente melancólica em "Sombras do Mal" (1950), de Jules Dassin, que retrata a Londres do pós-guerra sob controle dos chefões do mercado negro e dos bandidos. Graças aos ataques aéreos alemães, há ruínas por toda parte.
O protagonista, Harry Fabian (Richard Widmark), que trabalha tentando atrair clientes para casas noturnas e sonha se tornar empresário de luta livre, participa de diversas seqüências nas quais Dassin o retrata quase como inseto, se arrastando em meio a paisagens urbanas cinzentas e decadentes, sempre perseguido pelos capangas de seus inimigos. E, da mesma forma, é no Tâmisa que os corpos são despejados.
Dassin -que sabia que estava a ponto de ser inserido na lista negra, em Hollywood, devido à sua associação com o comunismo, produziu o filme em ritmo frenético. Em entrevistas, ele comentou a indignação e o ultraje que o trabalho despertou entre os britânicos.

Cidade inventada
A imprensa do país se recusava a acreditar que a Londres que ele retratava tivesse qualquer base na realidade. Dassin, que pesquisou meticulosamente para o filme, via com humor o ceticismo reservado ao seu trabalho pelos críticos britânicos. Um investigador da Scotland Yard lhe serviu de guia em visitas a todos os mais esquálidos bares do Soho e o apresentou aos pequenos bandidos e às pessoas de vida irregular nos quais ele baseou seus personagens.
"A imprensa britânica não tratou este filme com gentileza, e disse, sobre a minha Londres, que eu a havia inventado", relembrou Dassin. "Bem, tudo que estava no filme foi filmado na cidade. Não inventei coisa alguma."
No final dos anos 40 e começo dos anos 50, os britânicos gostavam de imaginar que os bandidos de seu país fossem menos ferozes do que as contrapartes deles nos EUA. Os policiais britânicos não portavam armas em serviço.
Quando o policial Dixon (Jack Warner) foi abatido a tiros por Tom Riley, o jovem malfeitor interpretado por Dirk Bogarde em "A Lâmpada Azul" (1950), a cena foi mostrada como um ato isolado e como exemplo de violência indizível.
Os criminosos ficam tão horrorizados que ajudam a polícia a encontrar Riley. De fato, como mostrava "Sombras do Mal", jamais houve uma era dourada na qual policiais e criminosos compartilhassem de um código de honra secreto.
É surpreendente que um número tão pequeno de filmes tenha mostrado esse outro lado da vida londrina ao longo dos anos. Wootton, que além da Film London também dirige o Crime Scene, um festival de cinema policial londrino, argumenta que expor esse lado oculto da cidade sempre foi tarefa que coube a pessoas vindas de fora.

Obscura tradição
"Sombras do Mal" e "Senhores do Crime" não são únicos. Outros cineastas tentaram, periodicamente, usar Londres como locação de filmes noir. Há filmes B como "The Frightened City" [A Cidade Amedrontada, 1961], de John Lemont, com Herbert Lom e um jovem Sean Connery, ainda antes de Bond, enfrentando extorsionistas no West End, e "Street of Shadows" [Rua de Sombras, 1953], com Cesar Romero como um proprietário de casa noturna.
"Mona Lisa" (1986), de Neil Jordan, também mostra a esqualidez e a vida sórdida de um submundo londrino no qual, como em "Senhores do Crime", mulheres jovens e viciadas em drogas são forçadas a se prostituir. Em passado mais distante, filmes como "Piccadilly" (1929), de E.A. Dupont, não hesitavam em mostrar racismo e violência sexual, enquanto a versão original de "They Drive by Night" [Eles Dirigem à Noite, 1938] evocava um mundo de glamour grosseiro e brutalidade.
Os becos soturnos de Nova York e o glamour decaído de Los Angeles sempre propiciaram locações melhores a filmes noir do que Londres. Nos últimos anos, acostumamo-nos a comédias românticas, dramas de época ou filmes de ficção científica passados em Londres e que usam a cidade de maneira previsível. É por isso que "Senhores do Crime" e o relançamento de "Sombras do Mal" são tão refrescantes.


"Senhores do Crime" estréia em 30/11. "Sombras do Mal" está disponível em DVD no Brasil pela Oregon Filmes.
Este texto foi publicado no "Independent"
Tradução de Paulo Migliacci


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