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Cinema
Londres sem maquiagem
"Senhores do Crime", novo filme de Cronenberg, retrata violência e sociedade decadente em Londres
GEOFFREY MACNAB
Existem muitas maneiras de mostrar Londres nas telas. Os cineastas muitas vezes
exibem a cidade de
um ponto de vista turístico. Incontáveis comédias românticas percorreram os marcos notáveis da cidade e aproveitaram para inserir nos enquadramentos reluzentes ônibus de dois
andares e policiais amistosos.
O fantasma de Stanley Holloway [1890-1982, comediante]
nunca parece muito distante.
Existe uma tentativa deliberada de exibir a cidade à melhor luz possível, não importa
qual seja a espécie de filme que
está em produção. Londres
agora dispõe de uma agência
municipal, a Film London, que
se orgulha em facilitar aos cineastas o uso de locações como
a sede do Parlamento ("V de
Vingança"), a galeria Tate Modern ("Filhos da Esperança") e
o Hyde Park ("Alex Rider Contra o Tempo").
A cidade tem uma capacidade camaleônica de mudar de
forma. "Não importa que você
deseje século 18, um ar medieval ou o brilho tecnológico do
século 21: em Londres é possível encontrar o necessário, e
tudo em um raio de três quilômetros", se vangloriou recentemente Adrian Wootton, o diretor da Film London. Mas,
com muita freqüência, a Londres revelada nas telas parece
irreal ou congelada no tempo.
As pessoas não costumam
associar Londres ao cinema
noir. De "Caçada na Noite"
[1980] a "Jogos, Trapaças e
Dois Canos Fumegantes"
[1998], muitos filmes sobre o
crime tomaram a cidade como
cenário, mas os cineastas raramente mergulharam naquilo
que o crítico Robert Warshow
[1917-55] define como "a perigosa e triste cidade da imaginação".
As audiências em breve terão
a chance de assistir a dois brilhantes filmes, ambos dirigidos
por norte-americanos, que exploram o decadente submundo
londrino de maneira poética e
carregada de atmosfera. O primeiro, "Senhores do Crime"
["Eastern Promises" no original, com estréia no Brasil prevista para 30/11], de David Cronenberg, trata de mafiosos russos à procura de ação na cidade.
Excluídos
A Londres que ele leva às telas é impiedosamente cinzenta.
Com roteiro de Steve Knight
(que também escreveu "Coisas
Belas e Sujas", de Stephen
Frears), o filme trata de pessoas
excluídas. Nenhum dos personagens principais é londrino.
Os protagonistas são assassinos, como o misterioso e implacável Nikolai (Viggo Mortensen), mulheres vendidas como
escravas sexuais e capangas
tchetchenos. Mesmo a heroína,
interpretada por Naomi Watts,
tem antecedentes na Rússia.
Depois do assassinato do antigo dissidente soviético Alexander Litvinenko, "Senhores
do Crime" oferece atrações tópicas. A idéia de que homicídios
possam ocorrer à luz do dia
(por exemplo, o jovem torcedor
do Chelsea que tem sua garganta cortada do lado de fora do estádio de Stamford Bridge, no
filme) deixou de parecer fantasiosa.
Mesmo assim, o trabalho é
tanto um drama psicológico
quanto um filme de suspense.
Apesar da extrema violência, o
filme gira em torno do luto pessoal, da perda de identidade e
de laços familiares em uma cidade estrangeira tanto quanto
gira em torno de uma operação
para infiltrar na máfia russa.
"Senhores do Crime" oferece
um retrato mais "realista" de
Londres do que aquele que encontramos nas comédias românticas sobre livreiros de
Notting Hill ou solteirões em
busca do amor. Usando o recurso que os cineastas designam
"geografia criativa", Cronenberg tomou liberdades semelhantes com suas locações -a
diferença é que a sensibilidade
que ele exibe em seu trabalho é
muito mais sombria.
Filmando no Three Mills
Studios, no coração do East
End, e escolhendo locações como Smithfield e casas de banho
turco na periferia, em lugar de
locais turísticos conhecidos, ele
retrata uma Londres que ostenta um ar pesado de ameaça.
O Tâmisa parece imundo, e seu
principal uso para os russos é
como lugar onde depositar cadáveres.
Londres é exibida de maneira
igualmente melancólica em
"Sombras do Mal" (1950), de
Jules Dassin, que retrata a Londres do pós-guerra sob controle dos chefões do mercado negro e dos bandidos. Graças aos
ataques aéreos alemães, há ruínas por toda parte.
O protagonista, Harry Fabian (Richard Widmark), que
trabalha tentando atrair clientes para casas noturnas e sonha
se tornar empresário de luta livre, participa de diversas seqüências nas quais Dassin o retrata quase como inseto, se arrastando em meio a paisagens
urbanas cinzentas e decadentes, sempre perseguido pelos
capangas de seus inimigos. E,
da mesma forma, é no Tâmisa
que os corpos são despejados.
Dassin -que sabia que estava
a ponto de ser inserido na lista
negra, em Hollywood, devido à
sua associação com o comunismo, produziu o filme em ritmo
frenético. Em entrevistas, ele
comentou a indignação e o ultraje que o trabalho despertou
entre os britânicos.
Cidade inventada
A imprensa do país se recusava a acreditar que a Londres
que ele retratava tivesse qualquer base na realidade. Dassin,
que pesquisou meticulosamente para o filme, via com humor
o ceticismo reservado ao seu
trabalho pelos críticos britânicos. Um investigador da Scotland Yard lhe serviu de guia
em visitas a todos os mais esquálidos bares do Soho e o
apresentou aos pequenos bandidos e às pessoas de vida irregular nos quais ele baseou seus
personagens.
"A imprensa britânica não
tratou este filme com gentileza,
e disse, sobre a minha Londres,
que eu a havia inventado", relembrou Dassin. "Bem, tudo
que estava no filme foi filmado
na cidade. Não inventei coisa
alguma."
No final dos anos 40 e começo dos anos 50, os britânicos
gostavam de imaginar que os
bandidos de seu país fossem
menos ferozes do que as contrapartes deles nos EUA. Os policiais britânicos não portavam
armas em serviço.
Quando o policial Dixon
(Jack Warner) foi abatido a tiros por Tom Riley, o jovem
malfeitor interpretado por
Dirk Bogarde em "A Lâmpada
Azul" (1950), a cena foi mostrada como um ato isolado e como
exemplo de violência indizível.
Os criminosos ficam tão horrorizados que ajudam a polícia
a encontrar Riley. De fato, como mostrava "Sombras do
Mal", jamais houve uma era
dourada na qual policiais e criminosos compartilhassem de
um código de honra secreto.
É surpreendente que um número tão pequeno de filmes tenha mostrado esse outro lado
da vida londrina ao longo dos
anos. Wootton, que além da
Film London também dirige o
Crime Scene, um festival de cinema policial londrino, argumenta que expor esse lado
oculto da cidade sempre foi tarefa que coube a pessoas vindas
de fora.
Obscura tradição
"Sombras do Mal" e "Senhores do Crime" não são únicos.
Outros cineastas tentaram, periodicamente, usar Londres como locação de filmes noir. Há
filmes B como "The Frightened
City" [A Cidade Amedrontada,
1961], de John Lemont, com
Herbert Lom e um jovem Sean
Connery, ainda antes de Bond,
enfrentando extorsionistas no
West End, e "Street of Shadows" [Rua de Sombras, 1953],
com Cesar Romero como um
proprietário de casa noturna.
"Mona Lisa" (1986), de Neil
Jordan, também mostra a esqualidez e a vida sórdida de um submundo londrino no qual, como
em "Senhores do Crime", mulheres jovens e viciadas em drogas são forçadas a se prostituir.
Em passado mais distante, filmes como "Piccadilly" (1929), de
E.A. Dupont, não hesitavam em
mostrar racismo e violência sexual, enquanto a versão original
de "They Drive by Night" [Eles
Dirigem à Noite, 1938] evocava
um mundo de glamour grosseiro
e brutalidade.
Os becos soturnos de Nova
York e o glamour decaído de Los
Angeles sempre propiciaram locações melhores a filmes noir do
que Londres. Nos últimos anos,
acostumamo-nos a comédias românticas, dramas de época ou filmes de ficção científica passados
em Londres e que usam a cidade
de maneira previsível. É por isso
que "Senhores do Crime" e o relançamento de "Sombras do
Mal" são tão refrescantes.
"Senhores do Crime" estréia em 30/11. "Sombras do Mal" está disponível em DVD no Brasil
pela Oregon Filmes.
Este texto foi publicado no "Independent"
Tradução de Paulo Migliacci
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