São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2007

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Livros

A era da reavaliação

Saem edições de Ruy Fausto, com uma reavaliação da esquerda, e do italiano Luciano Canfora, com crítica à democracia

FÁBIO WANDERLEY REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A leitura conjunta de "A Esquerda Difícil" e do livro de Luciano Canfora não favorece o primeiro. A aproximação é natural: aparecem ao mesmo tempo e trata-se, em ambos os casos, de trabalhos marcados por um ânimo crítico. Os textos reunidos no volume de Ruy Fausto redundam no ajuste de contas algo azedo de um homem de esquerda, que continua a perceber-se como tal, com os heróis e vilões e os temas e desvios de um marxismo já gasto.
O diálogo se trava principalmente com os comunistas de princípios do século 20, além de Marx e Engels, e não há lugar no livro nem sequer para um nome da importância do de [Jürgen] Habermas, que dirá para os esforços recentes de autores norte-americanos e europeus ligados ao chamado "marxismo analítico" ou ao reexame do "socialismo de mercado". Por sua vez, a crítica de Canfora à democracia é com certeza atraente, embora desalentadora, para quem quer que pretenda inspirar-se numa tradição de esquerda.
Isso não impede que, substantivamente, Ruy Fausto tenha ampla razão no que nos trata de dizer, nem que haja muito a aproveitar dos registros factuais e das minúcias da reavaliação intelectual e política da experiência comunista e social-democrata do século passado. Destaco alguns aspectos: a afirmação inequívoca do valor da democracia em suas dimensões civil e política e o empenho em atribuir a responsabilidade por seu comprometimento no "socialismo real" não só a Stálin ou Lênin, mas à apologia da violência nas próprias idéias originais de Marx e Engels; a reiteração dos perigos relativos ao componente autocrático dos movimentos de massas, ilustrados de modo exemplar pelos eventos de 1968, não obstante a inspiração libertária; e a valorização da social-democracia de estilo escandinavo como combinação da democracia política com a capacidade de controlar o poder dos capitalistas e produzir sociedades igualitárias -embora o autor não chegue a enfrentar com clareza a questão de até que ponto a preservação do mercado (com suas relações conceituais complicadas com o capitalismo como tal), ao permitir a autonomia dos agentes na crucial esfera econômica, seria condição decisiva, ao lado do elemento de convergência trazido pelo poder estatal, para o que permite festejar a social-democracia.
Já a crítica de Canfora mobiliza recursos intelectuais mais diversificados e é certamente também de maior alcance. Sua motivação imediata é a patente convivência atual da retórica democrática e da participação eleitoral universal com o fato de que as decisões realmente importantes se concentram nas mãos dos economicamente privilegiados (ou, cada vez mais, diretamente nas grandes corporações ou nos organismos técnicos do poder financeiro).
Na óptica geral do autor, a atuação da Corte Suprema dos EUA na eleição de 2000, por exemplo, não foi mais que um golpe de Estado. Ocorre, porém, que (não obstante o "interessante e inédito" acesso popular à classe política européia, com os partidos políticos "de classe", no século e meio que termina com o fim da União Soviética), o caráter de "regime misto" aristotélico "com supremacia oligárquica" marca toda a história da democracia, de Atenas ao "consenso" obtido na... "democracia sovietista".
A oligarquia é fatal, como sustentava Gaetano Mosca (1858-1941), e, contra o sonho dos reformadores e revolucionários, a revolução na verdade é impossível: a mudança é molecular e invisível.
E no pós-União Soviética temos possivelmente um novo Congresso de Viena, uma "nova e armadíssima Restauração", de duração indefinida.
Não é de todo clara a razão da nota final, ao cabo, otimista: a "impureza" da história uniria "a reta e o círculo numa espiral jamais tautológica".

FÁBIO WANDERLEY REIS, cientista político, é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.

A ESQUERDA DIFÍCIL


Autor: Ruy Fausto
Editora: Perspectiva (tel. 0/xx/11/ 3885-8388)
Quanto: R$ 55 (272 págs.)

CRÍTICA DA RETÓRICA DEMOCRÁTICA


Autor: Luciano Canfora
Tradução: Valéria Silva
Editora: Estação Liberdade (tel. 0/xx/ 11/ 3661-2881)
Quanto: R$ 27 (120 págs.)
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