São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Novas levas de imigrantes na Europa e anúncios de saques e estupros em Nova Orleans depois da passagem do Katrina materializam a fantasia patológica do medo do Outro nas sociedades ocidentais

Sobre homens e lobos

R. Perales - 9.nov.2002/Associated Press
Imigrantes ilegais detidos pela Guarda Civil espanhola após atravessarem o estreito de Gibraltar


SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA

Segundo uma conhecida anedota antropológica, os "primitivos" a quem se atribuíam certas crenças supersticiosas (a descendência de um peixe ou pássaro, por exemplo), quando indagados diretamente sobre elas, respondiam: "É claro que não -não somos tão idiotas! Mas me disseram que alguns de nossos ancestrais acreditavam nisso...". Em suma, eles transferiam sua crença para outro.
Não estaríamos fazendo a mesma coisa com nossos filhos? Encenamos o ritual de Papai Noel porque nossos filhos (supostamente) acreditam nele, e não queremos decepcioná-los; eles fingem acreditar para não nos decepcionar, derrubar nossa crença na ingenuidade deles (e para ganhar presentes, é claro) etc. Não é essa também a desculpa habitual do mítico político corrupto que se torna honesto? "Não posso decepcionar as pessoas comuns que acreditam nisso (ou em mim)." E não é essa necessidade de encontrar outro que "realmente acredita" o que também nos move em nossa necessidade de estigmatizar o Outro como um "fundamentalista" (religioso ou étnico)?

Crenças "à distância"
Misteriosamente, algumas crenças sempre parecem funcionar "à distância": para que a crença funcione, precisa haver um fiador máximo dela, mas esse fiador é sempre adiado, deslocado, nunca está presente "in persona". A questão, é claro, é que esse outro sujeito que acredita diretamente não precisa existir para que a crença seja operante: basta exatamente pressupor sua existência, isto é, acreditar nele, seja sob a forma do outro primitivo ou do "se" impessoal ("acredita-se...").
Quando construo uma "falsa" imagem de mim mesmo que me representa numa comunidade virtual da qual participo (em jogos sexuais, por exemplo, um homem tímido muitas vezes assume o personagem de uma mulher atraente e promíscua), as emoções que sinto e "finjo" como parte desse personagem não são simplesmente falsas: embora (o que eu experimento como) meu "eu verdadeiro" não as sinta, de certo modo elas não deixam de ser "verdadeiras" -é a mesma coisa ao assistir a uma minissérie de TV com riso enlatado; mesmo que eu não ria, mas simplesmente olhe para a tela, cansado depois de um dia de trabalho, assim mesmo me sinto aliviado depois do programa...


Esse novo racismo dos desenvol-vidos é muito mais brutal que o anterior


Os acontecimentos em Nova Orleans depois que a cidade foi atingida pelo furacão Katrina oferecem um novo acréscimo a essa série de sujeitos que supostamente... o sujeito que supostamente saqueia e estupra. Todos nos lembramos dos relatos sobre desintegração da ordem pública, explosão da violência negra, estupros e saques. No entanto inquéritos posteriores demonstraram que, na grande maioria dos casos, essas alegadas orgias de violência simplesmente não aconteceram: rumores não-verificados foram relatados pela mídia como fatos.
Por exemplo, em 4/9, o superintendente do Departamento de Polícia de Nova Orleans foi citado no "New York Times" sobre as condições no centro de convenções: "Os turistas estão caminhando por ali, e, assim que esses indivíduos os vêem, eles são saqueados. Eles os estão espancando e estuprando nas ruas".
Em uma entrevista duas semanas depois, admitiu que parte dessas declarações chocantes era inverídica: "Não temos relatórios oficiais para documentar qualquer assassinato. Nenhum relatório oficial de estupro ou agressão sexual".

Perigo irreal
A realidade dos negros pobres, abandonados, deixados sem meios para sobreviver foi assim transformada no espectro da explosão da violência negra, de turistas assaltados e mortos nas ruas mergulhadas em anarquia, no Superdome invadido por gangues que violentavam mulheres e crianças...
Esses relatos foram palavras que tiveram conseqüências materiais precisas: geraram temores que levaram as autoridades a alterar a mobilização de tropas, retardaram evacuações médicas, levaram oficiais de polícia a se demitir, imobilizaram helicópteros... É claro que a sensação de ameaça fora iniciada por violência e desordem reais. Mas a realidade (limitada) dos crimes de modo nenhum absolve os "relatos" sobre a completa ruptura da lei e da ordem -não porque esses relatos tenham sido "exagerados", mas por um motivo muito mais radical.
Lacan afirmou que mesmo que a mulher do paciente realmente esteja dormindo com outros homens, o ciúme do paciente deve ser tratado como uma condição patológica; de maneira semelhante, mesmo que os judeus ricos da Alemanha do início dos anos 30 "realmente" explorassem os trabalhadores alemães, seduzissem suas filhas, dominassem a imprensa popular etc., o anti-semitismo nazista ainda assim foi uma condição ideológica patológica, enfaticamente "inverídica". Por quê?
O que a tornou patológica foi o investimento libidinoso inconfesso na figura do judeu: a causa de todo antagonismo social foi projetada no "judeu", o objeto de amor e ódio perverso, a figura espectral de uma mistura de fascínio e repugnância.
E exatamente o mesmo vale para os saques em Nova Orleans: mesmo que todos os relatos de violência e estupros se comprovassem factualmente verídicos, as histórias que circularam sobre eles ainda seriam "patológicas" e racistas, pois o que motivou essas histórias não foram fatos, e sim preconceitos racistas, a satisfação experimentada por aqueles que poderiam dizer: "Está vendo, os negros realmente são assim, bárbaros violentos sob uma fina camada de civilização!".
Em outras palavras, estaríamos lidando com o que se pode chamar de mentira disfarçada de verdade: mesmo que aquilo que estou dizendo seja factualmente verdadeiro, os motivos que me fazem dizê-lo são falsos.
Mas não estamos tratando aqui do bom e velho racismo -há algo mais em jogo: uma característica fundamental da sociedade "global" emergente. Em 9/11/1989, o Muro de Berlim caiu, anunciando os "felizes anos 90", o sonho de Francis Fukuyama do "fim da história", a crença de que a democracia liberal havia ganho, de que a busca terminara.
Em contraste, o 11 de Setembro é o principal símbolo do fim dos alegres anos 90 de Clinton, da chegada da era em que novos muros surgem em toda parte, entre Israel e a Cisjordânia, ao redor da União Européia, na fronteira EUA-México. A ascensão da nova direita populista é apenas o exemplo mais destacado do ímpeto em levantar novos muros.
Alguns anos atrás, uma decisão ameaçadora da União Européia passou quase despercebida: o plano de estabelecer uma força policial de fronteira pan-européia para garantir o isolamento do território da UE e assim impedir a entrada de imigrantes. Essa é a verdadeira globalização: a construção de novos muros protegendo a próspera Europa do fluxo migratório.

Egoísmo despudorado
Somos tentados a ressuscitar aqui a velha oposição "humanista" marxista das "relações entre coisas" e as "relações entre pessoas": na celebrada livre circulação aberta pelo capitalismo global, são as "coisas" (mercadorias) que circulam livremente, enquanto a circulação de "pessoas" é cada vez mais controlada. Esse novo racismo dos desenvolvidos é de certo modo muito mais brutal que o anterior: sua legitimação implícita não é nem naturalista (a superioridade "natural" do Ocidente desenvolvido) nem culturalista (nós no Ocidente também queremos preservar nossa identidade cultural), mas o egoísmo econômico despudorado.
Quando, no início deste mês, a polícia espanhola enfrentou o problema de deter o ingresso de imigrantes africanos desesperados que tentavam penetrar no pequeno território espanhol atravessando o estreito de Gibraltar, ela mostrou os planos para construir um muro entre a Espanha e a fronteira do Marrocos. As imagens apresentadas -uma estrutura complexa com todo o equipamento eletrônico- pareciam assombrosamente as do Muro de Berlim, só que na direção oposta, destinado a evitar a entrada de pessoas, e não sua saída.
A cruel ironia da situação é que foi o governo do primeiro-ministro José Luis Rodríguez Zapatero, neste momento possivelmente o mais anti-racista e tolerante da Europa, que foi obrigado a adotar essas medidas de segregação -um claro sinal do limite da abordagem "tolerante" multiculturalista que prega fronteiras abertas e a aceitação dos Outros.
Se se abrissem as fronteiras, os primeiros a se rebelar seriam as classes trabalhadoras locais. Assim, está ficando claro que a solução não é "derrubar os muros e deixar todos entrarem", essa fácil demanda vazia dos liberais "radicais" de coração mole. A única solução real é derrubar o verdadeiro muro, não o político, mas o socioeconômico: mudar a sociedade para que as pessoas não tentem mais desesperadamente escapar de seu próprio mundo.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


Texto Anterior: Biblioteca básica - Eneida Maria de Souza: Macunaíma
Próximo Texto: + arte: Eu é um outro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.