|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ autores
Obras importantes e de potencial literário, "O Ser e o Nada" e a "Crítica da Razão Dialética" revelam
um grande escritor e um fantástico personagem da modernidade, mas exigem paciência do leitor
A filosofia amazônica de Sartre
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Depois da Segunda Guerra
Mundial, nossa cultura se
enredou num individualismo angustiado, compensado muitas vezes por certa militância revolucionária. A União Soviética continuava modelo de socialismo, a despeito de todas as críticas a
ela feitas, pois a vitória sobre o nazismo havia obnubilado o terror stalinista. O jogo entre a liberdade e a necessidade, marca das grandes filosofias, se transformara numa escolha
política. Reconciliar essas duas faces
da vida seria tarefa do comunismo
que, livrando os seres humanos da
corvéia do trabalho alienado, daria a
cada um segundo suas necessidades,
seus carecimentos.
Nesse contexto, o existencialismo
era mais do que uma filosofia, mais
do que a reafirmação da existência
sobre a essência, mais do que a releitura de Husserl e de Heidegger a
partir de Bergson e Kierkegaard,
mais do que uma antropologia racional; ele desenhava um projeto de
vida para o burburinho de intelectuais franceses e francófilos. Como
tal, haveria de se confrontar com o
marxismo, que igualmente se apresentava como modo de vida.
Virulência prática
Os fundadores da [revista]
"Temps Modernes" desempenharam papel relevante nesse confronto. Em 1947, Merleau-Ponty escreve
"Humanismo e Terror", no qual disseca os processos de Moscou e as dificuldades de um novo humanismo;
mais tarde, em 1955, ainda publica
"As Aventuras da Dialética", em que
contrapunha sua dialética da ambigüidade à dialética marxista.
Em 1957, Sartre entra de cheio nele, publicando o ensaio "Marxismo e
Existencialismo", que se transformará no primeiro capítulo da "Crítica da Razão Dialética" (ed. DP&A).
Sua tarefa era nada mais, nada menos do que reconciliar existencialismo e marxismo.
Já que o marxismo, dizia ele, ao focalizar a luta entre o capital e o trabalho, cerne contraditório da sociedade contemporânea, desenha o horizonte intransponível de nossa filosofia até quando essa luta não for superada. Por certo não o marxismo de
Henri Lefebvre e Roger Garaudy, esclerose do pensamento, com sua teimosia de verter para uma linguagem
vazia a especificidade do acontecer;
mas aquele de Marx que, privilegiando a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e
as relações sociais de produção, se
apresentava como o êmbolo ideológico da revolução.
Mais do que a armação teórica
desses textos, importava, pois, sua
virulência prática, que, para ser
completa, precisava ainda incorporar as atividades individuais, capazes de dizer não ao mundo constituído, embora permanecendo nele. Como ligar essa práxis emancipadora
às relações capitalistas de produção,
que se apresentam como relações
entre coisas?
"O Ser e o Nada" (ed. Vozes) examina como o ser do homem se lança
no mundo e se retira dele para configurar tanto a si mesmo como o próprio mundo; a esse movimento é
preciso agora conferir mais peso
prático, examinar como cada indivíduo se liga às suas necessidades materiais, a seus carecimentos ("besoins"). O homem é "mediado" pelas coisas na medida em que essas
coisas são "mediadas" pelos homens. O ser do homem que é um estar ali e fugir para si se configura, então, como circularidade dialética,
que se enriquece conforme vive cotidianamente e se constitui como processo de totalização.
Essa práxis totalizadora constitui a
negação e a negação dessa negação,
por conseguinte a contradição a determinar uma totalidade presente
em nome de uma totalidade futura.
No interior desse quadro é que o trabalho ganha inteligibilidade, assim
como a eficácia da matéria se comprova.
Vejamos essa idéia de carecimento. Descreve o momento em que o
indivíduo se exterioriza, encontra a
matéria a ser trabalhada e se trabalha, assim como descobre o outro
que também carece dela. Para isso se
faz matéria -mastigação, digestão
etc.- a fim de se repor como indivíduo prático, mas convivendo com
os outros igualmente carentes. Essa
necessidade constitui a condição
material da história, porquanto somente a é mediante um projeto humano coletivo.
Desse ponto de vista, a matéria se
especifica como raridade. Não daquela história feita pelos historiadores, mas daquela capaz de entender a
totalização de todas as totalizações
significativas das ações humanas. Isso porque a raridade configura a primeira relação intersubjetiva, o modo pelo qual os homens se relacionam materialmente pelo carecimento. A história se apresenta, então, como processo de superar necessidades em busca do reino da liberdade.
É nos primeiros pressupostos de
uma filosofia que as dificuldades
costumam residir. Segundo Sartre, o
outro surge para o eu reflexivo graças à exterioridade da matéria que se
dá como campo minado a ser utilizado por vários. Nessas condições a
realidade secreta do objeto se conforma como o ponto onde se cruzam dois processos de totalização
reflexionantes: do eu e do outro.
O poder sobre o outro
Nessa contradição, um deles descobre o poder que pode exercer sobre o outro, assim como a eficácia de
ambas as práxis humanas, na medida em que os dois tratam de superar
a resistência e a exterioridade da matéria. Sartre nos adverte explicitamente que, ao fundar a história na
raridade, não quer reconstruir suas
etapas fundamentais, menos ainda
fazer dessas uma descrição sociológica. Trata-se simplesmente de recompor o sentido dialético do processo de totalização, daquela racionalização dialética que vai do reino
da necessidade para o reino da liberdade. Mas nesse nível tão abstrato,
em que tudo pode ser dito, em que
os fatos são invocados a esmo e ao
léu, o texto de Sartre se transfigura
numa narração novelesca.
Como passar, por exemplo, da raridade para a relação de doação recíproca, que marca uma sociedade tribal, sem levar em conta o sistema de
parentesco? E as mulheres não são
numericamente mais raras do que
os homens. E tanto elas como os homens podem ser trocados.
Lógicas particulares
Passando para outro nível, as relações mais simples do mercado nada
têm a ver com esse conceito. Se, na
verdade, a economia é distribuição
de bens raros, essa distribuição se
exerce por lógicas particulares, onde
o relacionamento do eu e do outro,
se passa pela matéria trabalhada,
ainda depende do modo pelo qual os
atores instituem socialmente o objeto doador.
Do ponto de vista marxista, o valor, isto é a "coisa" mediadora, não
se determina pela raridade, mas por
um tipo muito determinado de relação social de produção, em que a circulação das coisas está ligada a uma
apropriação privada dos meios de
produção, inclusive a força de trabalho. Em contrapartida, a teoria neoclássica faz com que a raridade se
transforme num fator econômico se
for elaborada por um cálculo de custos e benefícios, não por uma razão
dialética, mas simplesmente por
uma razão técnica.
"O Ser e o Nada" e a "Crítica da Razão Dialética" são livros importantes
de nossa tradição, foram escritos por
um grande autor e fantástico personagem da modernidade, mas pertencem à tradição das filosofias amazônicas, que, como aquela de Augusto Comte, exigem paciência do
leitor, a capacidade de engolir páginas e páginas puramente narrativas
ou novelescas para, depois de muito
esforço, encontrar uma pérola. Muitas vezes o texto tem um potencial literário de grande envergadura, igual
a outras peças de Sartre.
Se esses dois livros fossem cortados, seriam mais digeríveis para o
público moderno. Mas, para Sartre,
"biffer" (riscar, corrigir) é burguês.
Daí meu fascínio pelo pequeno texto
autobiográfico "As Palavras" (Nova
Fronteira), que exemplifica como
um grande escritor pode se conter
em algumas páginas.
José Arthur Giannotti é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e coordenador da área de
filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: + teatro: Tragédia das pequenas coisas Índice
|