São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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Obras importantes e de potencial literário, "O Ser e o Nada" e a "Crítica da Razão Dialética" revelam um grande escritor e um fantástico personagem da modernidade, mas exigem paciência do leitor

A filosofia amazônica de Sartre

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

Depois da Segunda Guerra Mundial, nossa cultura se enredou num individualismo angustiado, compensado muitas vezes por certa militância revolucionária. A União Soviética continuava modelo de socialismo, a despeito de todas as críticas a ela feitas, pois a vitória sobre o nazismo havia obnubilado o terror stalinista. O jogo entre a liberdade e a necessidade, marca das grandes filosofias, se transformara numa escolha política. Reconciliar essas duas faces da vida seria tarefa do comunismo que, livrando os seres humanos da corvéia do trabalho alienado, daria a cada um segundo suas necessidades, seus carecimentos.
Nesse contexto, o existencialismo era mais do que uma filosofia, mais do que a reafirmação da existência sobre a essência, mais do que a releitura de Husserl e de Heidegger a partir de Bergson e Kierkegaard, mais do que uma antropologia racional; ele desenhava um projeto de vida para o burburinho de intelectuais franceses e francófilos. Como tal, haveria de se confrontar com o marxismo, que igualmente se apresentava como modo de vida.

Virulência prática
Os fundadores da [revista] "Temps Modernes" desempenharam papel relevante nesse confronto. Em 1947, Merleau-Ponty escreve "Humanismo e Terror", no qual disseca os processos de Moscou e as dificuldades de um novo humanismo; mais tarde, em 1955, ainda publica "As Aventuras da Dialética", em que contrapunha sua dialética da ambigüidade à dialética marxista.
Em 1957, Sartre entra de cheio nele, publicando o ensaio "Marxismo e Existencialismo", que se transformará no primeiro capítulo da "Crítica da Razão Dialética" (ed. DP&A). Sua tarefa era nada mais, nada menos do que reconciliar existencialismo e marxismo.
Já que o marxismo, dizia ele, ao focalizar a luta entre o capital e o trabalho, cerne contraditório da sociedade contemporânea, desenha o horizonte intransponível de nossa filosofia até quando essa luta não for superada. Por certo não o marxismo de Henri Lefebvre e Roger Garaudy, esclerose do pensamento, com sua teimosia de verter para uma linguagem vazia a especificidade do acontecer; mas aquele de Marx que, privilegiando a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção, se apresentava como o êmbolo ideológico da revolução.
Mais do que a armação teórica desses textos, importava, pois, sua virulência prática, que, para ser completa, precisava ainda incorporar as atividades individuais, capazes de dizer não ao mundo constituído, embora permanecendo nele. Como ligar essa práxis emancipadora às relações capitalistas de produção, que se apresentam como relações entre coisas?
"O Ser e o Nada" (ed. Vozes) examina como o ser do homem se lança no mundo e se retira dele para configurar tanto a si mesmo como o próprio mundo; a esse movimento é preciso agora conferir mais peso prático, examinar como cada indivíduo se liga às suas necessidades materiais, a seus carecimentos ("besoins"). O homem é "mediado" pelas coisas na medida em que essas coisas são "mediadas" pelos homens. O ser do homem que é um estar ali e fugir para si se configura, então, como circularidade dialética, que se enriquece conforme vive cotidianamente e se constitui como processo de totalização.
Essa práxis totalizadora constitui a negação e a negação dessa negação, por conseguinte a contradição a determinar uma totalidade presente em nome de uma totalidade futura. No interior desse quadro é que o trabalho ganha inteligibilidade, assim como a eficácia da matéria se comprova.
Vejamos essa idéia de carecimento. Descreve o momento em que o indivíduo se exterioriza, encontra a matéria a ser trabalhada e se trabalha, assim como descobre o outro que também carece dela. Para isso se faz matéria -mastigação, digestão etc.- a fim de se repor como indivíduo prático, mas convivendo com os outros igualmente carentes. Essa necessidade constitui a condição material da história, porquanto somente a é mediante um projeto humano coletivo.
Desse ponto de vista, a matéria se especifica como raridade. Não daquela história feita pelos historiadores, mas daquela capaz de entender a totalização de todas as totalizações significativas das ações humanas. Isso porque a raridade configura a primeira relação intersubjetiva, o modo pelo qual os homens se relacionam materialmente pelo carecimento. A história se apresenta, então, como processo de superar necessidades em busca do reino da liberdade.
É nos primeiros pressupostos de uma filosofia que as dificuldades costumam residir. Segundo Sartre, o outro surge para o eu reflexivo graças à exterioridade da matéria que se dá como campo minado a ser utilizado por vários. Nessas condições a realidade secreta do objeto se conforma como o ponto onde se cruzam dois processos de totalização reflexionantes: do eu e do outro.

O poder sobre o outro
Nessa contradição, um deles descobre o poder que pode exercer sobre o outro, assim como a eficácia de ambas as práxis humanas, na medida em que os dois tratam de superar a resistência e a exterioridade da matéria. Sartre nos adverte explicitamente que, ao fundar a história na raridade, não quer reconstruir suas etapas fundamentais, menos ainda fazer dessas uma descrição sociológica. Trata-se simplesmente de recompor o sentido dialético do processo de totalização, daquela racionalização dialética que vai do reino da necessidade para o reino da liberdade. Mas nesse nível tão abstrato, em que tudo pode ser dito, em que os fatos são invocados a esmo e ao léu, o texto de Sartre se transfigura numa narração novelesca.
Como passar, por exemplo, da raridade para a relação de doação recíproca, que marca uma sociedade tribal, sem levar em conta o sistema de parentesco? E as mulheres não são numericamente mais raras do que os homens. E tanto elas como os homens podem ser trocados.

Lógicas particulares
Passando para outro nível, as relações mais simples do mercado nada têm a ver com esse conceito. Se, na verdade, a economia é distribuição de bens raros, essa distribuição se exerce por lógicas particulares, onde o relacionamento do eu e do outro, se passa pela matéria trabalhada, ainda depende do modo pelo qual os atores instituem socialmente o objeto doador.
Do ponto de vista marxista, o valor, isto é a "coisa" mediadora, não se determina pela raridade, mas por um tipo muito determinado de relação social de produção, em que a circulação das coisas está ligada a uma apropriação privada dos meios de produção, inclusive a força de trabalho. Em contrapartida, a teoria neoclássica faz com que a raridade se transforme num fator econômico se for elaborada por um cálculo de custos e benefícios, não por uma razão dialética, mas simplesmente por uma razão técnica.
"O Ser e o Nada" e a "Crítica da Razão Dialética" são livros importantes de nossa tradição, foram escritos por um grande autor e fantástico personagem da modernidade, mas pertencem à tradição das filosofias amazônicas, que, como aquela de Augusto Comte, exigem paciência do leitor, a capacidade de engolir páginas e páginas puramente narrativas ou novelescas para, depois de muito esforço, encontrar uma pérola. Muitas vezes o texto tem um potencial literário de grande envergadura, igual a outras peças de Sartre.
Se esses dois livros fossem cortados, seriam mais digeríveis para o público moderno. Mas, para Sartre, "biffer" (riscar, corrigir) é burguês. Daí meu fascínio pelo pequeno texto autobiográfico "As Palavras" (Nova Fronteira), que exemplifica como um grande escritor pode se conter em algumas páginas.


José Arthur Giannotti é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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