São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2005

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+ teatro

O dramaturgo Edward Albee testa os limites da tolerância com a peça "A Cabra", que está em cartaz em Paris

Tragédia das pequenas coisas

CORINE LESNES

O norte-americano Edward Albee é o autor mundialmente famoso de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?". Aos 77 anos, ele mora num loft no bairro de Tribeca, em Nova York, a um quarteirão do rio Hudson. Seu interior é repleto de obras de arte: Kandinsky, Chagall, estátuas africanas... Pela janela, ele mostra um vazio no céu. Era o lugar do World Trade Center. Em 11 de setembro de 2001, ele subiu no telhado e assistiu à queda das torres. Depois recebeu telefonemas. Queriam que escrevesse sobre os atentados.


Como os maridos reagiriam se descobrissem que estavam apaixonados por uma cabra?


Albee escreveu 28 peças em 44 anos. Começou com poesia, aos 8. Para ele, escrever é "tão natural quanto respirar", sabendo que "em alguns momentos é mais fácil respirar do que em outros". Mas não faz nada sob encomenda. Nunca escreveu sobre o 11 de Setembro. "Eu escreveria se viesse através de mim."
O dramaturgo está em cartaz em Paris com "A Cabra ou Quem É Sílvia?", interpretada por Nicole Garcia e André Dussollier. Ele não os conhece. Na entrevista abaixo, Albee fala sobre essa peça improvável, em que um pai de família se apaixona por uma cabra.
 

Pergunta - Por que o sr. escreveu "A Cabra..."?
Edward Albee -
Por quê? Era minha próxima peça! Foi a que me veio ao espírito. É esse o motivo pelo qual escrevo. As peças surgem na minha cabeça. Eu as escrevo, elas saem da minha cabeça. Não sou didático. Não consigo planejar. Tenho certeza de que há motivos pelos quais escrevo essas peças, mas não lhes dou a menor atenção.

Pergunta - O senhor pode falar sobre ela?
Albee -
O que posso lhe dizer é como eu gostaria que o público a recebesse. Gostaria que fosse vê-la sem ficar distanciado, que as pessoas não olhem para os personagens do alto, mas se imaginem no lugar deles. Como os maridos, no teatro, reagiriam se descobrissem que estavam apaixonados por uma cabra e como suas mulheres reagiriam?
E também quero que as pessoas compreendam que a cabra não é uma metáfora. É uma cabra de verdade. Ela não está lá para representar alguma outra coisa. A peça examina os limites de nossa tolerância.

Pergunta - Os limites de tolerância recuaram?
Albee -
Sim, mas não o suficiente. Em Nova York, as pessoas pareceram ficar chocadas ao verem o pai e o filho se beijarem.
Foi aí que elas saíram do teatro. Não por causa da revelação da bestialidade ou da sugestão de que Jesus Cristo foi um suicida, o que não pareceu perturbá-las. Mas a homossexualidade, sim. Achei isso absurdo.

Pergunta - A peça também é chocante.
Albee -
Ela é engraçada, exceto quando deixa de sê-lo. Como a maioria das minhas peças. Elas são engraçadas e não-engraçadas. Não gosto da ausência de humor. É por isso que prefiro Tchekhov a Ibsen. Ibsen não tem nenhum humor.

Pergunta - Quando o senhor fala, não ouvimos nada de trágico ou de cruel.
Albee -
Eu sou eu. E esse é meu trabalho [ele mostra uma mesa baixa de madeira]. Um escritor deve tentar ser objetivo. Nunca escrevi sobre mim. Nunca. Escrevo sobre as pessoas, o que eu vejo e o que penso do mundo e da civilização ao meu redor.
A escrita passa através de mim, mas os personagens não são eu. Eu os invento, torno-os reais. Existe uma tragédia por trás da maior parte das coisas. Eu a observo. Mas não é minha tragédia, é a delas.

Pergunta - O senhor não gosta da expressão "teatro do absurdo"...
Albee -
Ela é mal compreendida nos Estados Unidos. É um conceito filosófico pós-existencialista, concordo, mas que afogou as diferenças estilísticas. Toda peça que não é naturalista tem de ser teatralmente absurda. É uma simplificação ridícula. Mas nos Estados Unidos gostamos muito das simplificações ridículas.

Pergunta - Exatamente. Na Europa, nos perguntamos: o que é que não vai bem nos Estados Unidos?
Albee -
Fico contente que as pessoas se perguntem. Seriam loucas se não o fizessem. O que não vai bem? Nossa sociedade tornou-se muito preguiçosa. Somos suficientes e intelectualmente preguiçosos. Preferimos o conforto à aventura.

Pergunta - O senhor boicota a Casa Branca.
Albee -
Sou convidado a ir lá todos os anos. Fui nos dois primeiros anos de mandato do atual presidente. Depois houve a invasão do Iraque, as mentiras. Desde então não fui mais. Não gosto de presidentes messiânicos. É o presidente mais destrutivo que já tivemos.

Pergunta - O senhor descobriu aos cinco anos que era filho adotivo.
Albee -
Sim, e fiquei muito feliz. Eu não gostava de minha família adotiva. Eu sabia que era infeliz já aos cinco anos. Mais tarde compreendi o porquê. Eles eram terrivelmente reacionários, sectários. Quanto mais eu crescia, mais detestava seus valores.

Pergunta - Sua mãe o abandonou. O senhor não tentou encontrá-la?
Albee -
Legalmente era impossível. Há um nome na certidão de nascimento, embora provavelmente seja um nome falso. E para mim isso não faz diferença.

Pergunta - Fazia 20 anos que suas peças não eram produzidas na Broadway. "A Cabra..." marcou seu retorno.
Albee -
A Broadway é muito comercial, e minhas peças não dão dinheiro. "A Cabra..." ainda não recuperou seu investimento, mas vai chegar lá, creio. A Broadway prefere o teatro tranqüilizador e comercial. Então, de vez em quando, pode haver uma peça que não seja nada disso.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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