São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.



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À queima-roupa


Trabalhos estabelecem relação literal com os vários aspectos da experiência contemporânea


STELLA SENRA
especial para a Folha

O trabalho estampado no cartaz da exposição "Sensation" anuncia o espírito que reúne os artistas e as obras da mostra. Tomando todo o centro da metade superior do espaço, a imagem muito próxima de uma língua -como se alguém provocadoramente "mostrasse a língua"- assume uma forma quase triangular e destaca-se em vermelho contra o fundo rosado do rosto que a contorna.
Na metade inferior, a face cinzenta de um ferro de passar roupa, de ponta para cima, reproduz, em posição invertida, e desta vez contra um fundo negro, a forma triangular da língua. Uma fina linha vermelha separa os dois planos, contrastantes pelas cores vermelho-rosa e cinza-negro, em que as duas imagens, reversas uma da outra, vêm se tocar pelas pontas. Este ponto é marcado por um pequeno círculo vermelho que, por sua vez, coroa a letra "a" da palavra "Sensation", logo abaixo da linha.
Na ponta da língua
Com certeza, esse encontro inusitado entre o ferro de passar roupa e a língua não é a manifestação de um universo onírico, nem o testemunho da existência de um outro plano da realidade, onde uma incongruência destas poderia se sustentar. Aqui, ao contrário, ferro e língua partilham, enquanto tais, o mesmo plano de realidade e, se se tocam efetivamente, o que interessa é o que se desencadeia no exato ponto deste toque.
Trata-se do contato entre duas superfícies que catalisam grandes intensidades. Ferro de passar e língua atuam por meio do contato físico, mas, enquanto o ferro é um emissor de calor, a língua é um captador de sensações, a superfície mais sensível do nosso corpo, capaz de detectar com a maior delicadeza texturas, estados, temperatura e sabor. Se a língua é sede privilegiada de tantas sensações, é em sua ponta que se concentra o máximo da capacidade de saborear -é na ponta da língua que provamos o gosto das coisas.
É precisamente deste ato de prova, desta experiência direta das coisas, que trata a mostra "Sensation". E, se o contato do ferro em zona tão sensível do corpo evoca a manifestação mais radical da sensação, a dor, é porque é da intensidade máxima do contato, ou do contato como um toque abrasivo, que nos falam os trabalhos aqui reunidos.
O que "queima" nesta mostra é a relação direta com as coisas que os trabalhos estabelecem, é a espécie de literalidade com que a experiência contemporânea é tomada nos seus mais variados aspectos: da morte ao cotidiano, do corpo à representação, e lançando mão de meios diversos -da pintura à escultura, da fotografia à instalação-, tudo aqui é muito palpável, muito cru. Mas, se o espectador pode se reconhecer facilmente na evocação temática: corpo, identidade, feminismo, racismo, memória, mortalidade, se está familiarizado com a crítica social, de classe, ou até mesmo com a auto-reflexividade de alguns desses trabalhos, a crueza da exposição não está apenas neste teor explícito, mas sobretudo no modo de considerar o objeto, de expô-lo em toda a brutalidade da sua manifestação.
Nesse sentido, o trabalho de Damien Hirst talvez seja o mais representativo da mostra, pela nudez com que expõe esse confronto. Seu tubarão no tanque de formol ("The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living"), por exemplo, é a manifestação absoluta da "coisa": é no enfrentamento direto da sua concretude que a estranheza, a ameaça ou o próprio desconhecido tornam-se presentes. Do mesmo modo, o ciclo da vida é exposto ao pé da letra na grande caixa de vidro ("A Thousand Years"), onde moscas nascem, se alimentam e voam de um lado e vão morrer do outro, junto a uma cabeça de boi, pela ação de um dispositivo antiinseto. Às vezes é o líquido que se torna sólido, "coisa", como na escultura "Self", de Marc Quinn, a cabeça do artista modelada com o próprio sangue.
Mas esta concretude pode se fazer presente de outras maneiras também. Assim, se os cavalos de Mark Wallinger ("Race Class Sex") carregam aguda crítica social, esta só pode ser percebida na gelada precisão da sua pintura, no seu caráter quase demonstrativo.
Mais propriamente ainda, é a manifestação mesma do objeto que o trabalho de Rachel Whiteread torna patente, quando "materializa" o que não é palpável: o espaço das casas, dos quartos, de debaixo das cadeiras. São pesados blocos de gesso cinzento, graciosos volumes coloridos de resina, "coisas" concretas e fechadas sobre si mesmas, sobre seus segredos; assim como podem ser objetos já dados -as banheiras nuas, lisas e rosadas como a pele, vazias de corpos-, ao mesmo tempo são corporificações de tantos modos de ausência.
Corpo de coisas
Às vezes os artistas exploram o corpo humano e suas representações culturais. Aqui o corpo das coisas constitui um "corpo" humano propriamente, mas um "corpo de coisas", como, em Sarah Lucas, a mulher composta de alimentos sobre a mesa ("Two Fried Eggs and a Kebad") ou o casal feito com uma reunião de legumes sobre o colchão ("Au Naturel").
Quando se trata de um corpo já dado, pode ser uma réplica -do cadáver do pai ("Dead Dad"), de Ron Mueck, repelente na sua perfeição e na sua redução- ou o corpo do próprio artista Gavin Turk, que, carregado de referências à cultura pop e às vanguardas, personifica o astro Sid Vicious ("Pop"). Ou podem até ser coisas que se transformam em corpos, como os móveis antropomorfisados de Jane Simpson.
Outras vezes, a crueza não está exatamente na apresentação do objeto, mas se manifesta na secura, na unicidade ou na magnificação do gesto: a pintura lisa e monocromática de Jason Martin, feita com uma só pincelada, mas de um pincel do tamanho da tela; a tela (abstrata?) sobre ampliação da imagem de uma célula ("Negative"), de Mark Francis; o retrato ("Myra") a partir de ampliação fotográfica da "serial killer" de crianças Myra Hindley, por Marcus Harvey, em que o granulado se revela, de perto, como pequenas mãos de crianças, ou a gigantesca ampliação do ventilador ("Fan"), de Darren Almond; ou as telas com excremento de elefante, de Chris Offili.
Buraco de bala
Mesmo a pintura figurativa de Gary Hume parece lidar com as superfícies chapadas como se fossem volumes. Também participam desse mesmo espírito as fotografias que Richard Billingham apresenta do cotidiano de seus pais ("Untitled"), insuportavelmente cruas na sua banalidade construída, enquanto a ampliação de um buraco de bala num couro cabeludo, de Mat Collishaw, pode ser tomada como uma metáfora da intensidade desse contato que, literalmente, abre uma "ferida".
Evidentemente, os trabalhos interpelam de modos diversos o mundo das significações e o próprio universo da arte, assim como podem ser portadores de referências mais marcadamente culturais, ideológicas, ou filosóficas. Sua maior afinidade estará, no entanto, no seu caráter frontal, no seu modo desabrido de "expor" -no sentido de exibir, de oferecer aos olhos-, nesta espécie de elevação máxima da voltagem das coisas.
Ora, esta insistência das coisas em "estarem aí", esta impertinência com que se mantêm diante de nós, não é de todo estranha ao espectador contemporâneo. Assim como a sociedade de consumo consagrou a predominância dos objetos, o aparelho midiático propõe um acesso imediato ao mundo -seja pela instantaneidade da imagem televisiva, pela objetividade do jornal ou pelo aperfeiçoamento das técnicas publicitárias.
Eficácia midiática
Se os artistas reunidos nesta exposição não escondem seu fascínio pela mídia, a condição de publicitário do colecionador Charles Saatchi explica, pelo menos em parte, esta convergência de interesse, assim como pode iluminar igualmente algumas das afinidades que os aproximam -aliás, esse aspecto midiático ou mais propriamente sensacional da exposição está contemplado dentro do próprio espectro de significações que o seu título comporta.
Mas esta atração pela eficácia midiática não tem de ser vista necessariamente como manipulação, assim como a perseguição do intento objetivo desses meios (Hirst dirá: "A publicidade vai direto ao assunto") não representa necessariamente uma solução de facilidade. Num mundo de exposição generalizada -não só dos objetos, mas também da arte e dos artistas-, talvez se trate de um despojamento do ato de experimentar, da sua redução ao sentido original do termo, a prova, e da descoberta de que este talvez só atinja o máximo da sua potência quando reduzido ao mínimo: ao instante exato em que nos deixamos "queimar" pelas coisas.


Stella Senra é ensaísta, autora de "O Último Jornalista - Imagens de Cinema" (Ed. Estação Liberdade).




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