São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.



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A armadilha perversa



Ao submeter-se à mídia, artes plásticas perdem a perspectiva da obra e da própria realidade
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Num mundo onde a realidade só parece existir por meio da informação, que se faz onipotente e onipresente (uma vez que os fatos só parecem ter existência quando reproduzidos e veiculados), a cultura em geral e as artes plásticas em particular foram aprendendo a falar uma linguagem que a mídia pudesse ouvir. E como o principal alimento da mídia é a informação extraordinária, o fora do comum e, muitas vezes, o escandaloso, as artes plásticas, ao lutarem pela sobrevivência, acabaram, em grande parte sem perceber, caindo numa armadilha perversa onde o aparentemente mais chocante e surpreendente é no fundo o mais convencional e esperado, uma vez que serve para lubrificar um sistema viciado em que, sob uma saturação de informação e marketing, perde-se a perspectiva da obra e da realidade -e da realidade da obra.
Mais do que isso, sendo a linguagem dos fatos a matéria-prima da informação e o que a cultura procura falar para ser ouvida pela mídia, as artes são obrigadas necessariamente a ir abandonando uma autonomia da obra, do objeto artístico, um valor conquistado com a arte moderna, e hoje por muita gente considerado passadista, para ir construindo seu trabalho no "entorno", no que é exterior à obra e pode tanto ser produzido por um aspecto puramente narrativo ou conceitual, pela idéia do trabalho no lugar do próprio trabalho, quanto por dados ainda mais exteriores, como os indícios da biografia do autor, o que poderia explicar, de uma forma apressada e talvez demasiado sucinta, a proliferação das instalações, no primeiro caso, e de uma arte "do corpo", marcadamente narcisista, no segundo.
Nesse cenário, massificado e globalizado, fica difícil falar de arte desvinculada da mídia. Tendo em vista essa perspectiva sociológica, boa parte do que se tenta fazer hoje no mundo perderia sua aparência inovadora para ser reduzida aos cânones de uma época, à obediência, submissão e subserviência às convenções do seu tempo. É lógico que nada é tão simples, e em arte são sempre as exceções, os casos individuais, que contam, e nunca as regras opressoras detectadas e combatidas pelas teorias sociológicas generalizantes. O protótipo máximo desse novo artista, o inglês Damien Hirst, por exemplo, embora fascinado pelas mídias e pelo sensacionalismo, e ainda mais pela publicidade, além de inimigo declarado da pintura moderna, está longe de produzir uma arte desprezível, para dizer o mínimo. Numa entrevista recente, ele profetizou: "Acho que estou fazendo o que qualquer artista do passado estaria fazendo se vivesse hoje". Ou seja, está seguindo as regras do seu tempo.
É óbvio que o que porventura possa existir de bom no seu trabalho não sobreviveria se estivesse sustentado apenas no sensacionalismo, no ritmo do momento. Toda época produz sua exceção. Nada é monolítico. Parafraseando Godard em seu filme "JLG por JLG": "A cultura é a regra, a arte é a exceção". A novidade aqui não é que existe uma regra a que a maioria se submete, em geral sem perceber, mas o tipo de regra, que agora é ditada pelo binômio mídia/mercado, pela combinação íntima e exacerbada de informação e dinheiro dentro de um desdobramento do capitalismo avançado ou tardio -ou, para resumir com uma definição mais sintética, que em parte pode acabar perdendo o sentido pela frequência indiscriminada com que é empregada, tornando-se um lugar-comum da resignação: pelo "império do marketing".
A mídia não consegue falar das obras. Sente-se um pouco ridículo, por exemplo, sobretudo por comparação aos outros textos que o cercam e que relatam "fatos", um crítico que insiste em descrever e analisar um quadro não-figurativo num jornal. Muitos devem sofrer dessa dificuldade, por vezes reagindo à impotência com um ódio pelo que, não podendo descrever, reduzem a academicismo. Diante da ausência de fatos, a mídia não sabe o que dizer, a ponto de o crítico se ver por vezes balbuciando as analogias mais imediatas, obrigado a lançar mão de uma espécie de livre associação elementar de formas, na tentativa de arrancar algum sentido do que tem diante de si.
O objeto artístico não interessa mais, porque tornou-se insondável. O que interessa é o "entorno"; o que faz sentido é a vida do artista, as possibilidades de repercussão do seu ato por meio do marketing, e no máximo o que ele tem a dizer sobre a obra. Nesse universo, um artista mais "narrativo", como Tunga, independentemente de sua qualidade (é praticamente inquestionável que ele seja um dos artistas mais interessantes em atividade no Brasil hoje), acaba facilitando sua apreensão ao dançar, provavelmente com consciência do que está fazendo, a música que a mídia sabe ouvir, associando-se inclusive à moda -que o mercado e a informação tentam, com insistência, confundir com arte-, ao fazer performances durante desfiles.
De um outro ponto de vista, é essa ainda a questão colocada pelo trabalho de um pintor como Paulo Pasta no projeto Arte/Cidade, em São Paulo, embora ali ele também seja por um momento um signo exterior à obra, ao contrário dos seus quadros habituais. Trata-se mais de uma mensagem, na linguagem que a mídia sabe ouvir. O artista pintou apenas um grande retângulo púrpura, que se mantém absolutamente uniforme na parede ao fundo de uma sala em ruínas. Ao confrontar os escombros que o cercam com a resistência silenciosa, impassível e discreta, mas não menos imponente e impávida, de um simples retângulo pintado de púrpura, o trabalho parece, ao mesmo tempo em que reafirma a preponderância de um sentido da obra contra a declaração da sua morte, ter concedido traduzir na linguagem que a mídia sabe ouvir, a guerra, à primeira vista inexistente, que está contida na sua existência de aparência pacífica, explicitando o conflito calado que os quadros trazem no seu interior.
Na redução que hoje se faz da obra ao que lhe é exterior há ainda uma outra perversão ou confusão, que é a apropriação pela mídia de uma proposta, em certo momento revolucionária, de fundir arte e vida, de fazer da vida um acontecimento estético -e, o que é mais grave, a sua anulação. Só conseguindo falar do "entorno", o mundo da informação contribuiu para deturpar esse projeto ao direcionar suas atenções para tudo no conjunto artista-obra que não fosse obra, e os artistas responderam, sobretudo os mais jovens, que começaram a produzir já dentro desse esquema onde a informação ganha mais peso que a realidade, com uma arte radicalmente narcisista, que muitos chamam eufemisticamente "do corpo", como se com isso estivessem por fim realizando uma fusão revolucionária entre arte e vida.
De certa maneira, ao fazer a representação mais primária de si e da sua experiência, esforçando-se por extrair dela um sentido estético -como se vê em boa parte da produção jovem brasileira exposta no "Panorama da Arte Brasileira", no Museu de Arte Moderna, em São Paulo-, o artista pode até parecer estar tentando reagir à nova regra virtual da informação com o que tem de mais concreto à sua disposição, o próprio corpo, a sua própria vida, a "sua" realidade contra a da informação. Mas, neste caso, continua falando a linguagem que a mídia quer e pode ouvir e que ela se satisfaz em reproduzir, nem que seja, nos casos mais radicais, como inconformismo. Na verdade, são feitos um para o outro. A informação exterior à obra é mais acessível e compreensível a um público maior e menos preparado, mais cru e virgem, o que interessa tanto à mídia, sempre em busca de alargar e sedimentar o seu alcance, como ao mercado de arte, e o que às vezes torna difícil delimitar a fronteira entre uma exposição de arte e um parque de diversões.
Curiosamente, no que toca o mercado, esse movimento vai deixando a arte cada vez mais virtual, teatral, enquanto a afasta dos objetos tradicionais (a tela, a escultura) com maior liquidez e valor de troca mais facilmente determinável. Passa a ser uma arte da documentação, que só sobrevive como resquício de uma realidade, por meio da informação. Passa a ser "fato". No projeto Arte/Cidade, onde estão expostos alguns trabalhos extremamente interessantes, a começar pelo de Nelson Félix, um dos principais expoentes da arte brasileira hoje, isso fica claro. O mercado ali é virtual (está ancorado no prestígio que o evento atribui a cada artista, por consequência, valorizando suas outras obras). Trata-se de um projeto institucional, mas que ainda assim não poderia existir sem marketing ou mídia.
É verdade que a questão é complexa, porque, ao mesmo tempo em que a realidade cede seu lugar ao mundo da informação, em que muitas vezes o virtual vale mais que o concreto, é ela, a realidade, que continua sendo a matéria bruta da mídia e louvada como tal. Esta regra da cultura acaba apontando para um fato aparentemente contraditório em relação ao mercado, de a arte estar hoje num outro lugar, fora da própria arte, onde é menos esperada, na "vida", junto aos fatos, o que termina sendo percebido e recebido pela mídia com grande exaltação.
No Arte/Cidade, por exemplo, é de fato impressionante como, em certos espaços, o próprio ambiente e as pichações (de uma vida marginal, subterrânea) que ali se encontravam anteriormente se sobrepõem em força dramática ao trabalho de arte convencionado como tal. É o sentido estético confundido, transferindo-se da arte para o acontecimento anterior a ela, tornando-se deglutível e reproduzível dentro de um mundo da informação ao aderir à matéria-prima deste, os fatos. Mas essa é apenas a nova regra da cultura. E a arte, como diz Godard, será sempre a exceção.


Bernardo Carvalho é escritor, autor, entre outros, de "Os Bêbados e os Sonâmbulos" (Companhia das Letras).

As exposições em São Paulo: Panorama da Arte Brasileira - Reúne obras de 36 artistas. No Museu de Arte Moderna (parque Ibirapuera, tel. 011/549-9688). Ter, qua. e sex., das 12h às 18h; qui, das 12h às 22h; sáb., dom. e feriados, das 10h às 18h. Até 21/12.
Projeto Arte/Cidade - Reúne obras de 37 artistas. Trem na Estação da Luz leva às exposições no Moinho Central e nas ruínas das Indústrias Matarazzo. Ter. a dom., das 12h às 21h. Até o dia 30/11.




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