São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997.



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LIVROS
A vida discreta de Hannah Arendt



Biografia da filósofa evidencia distanciamento crítico raro neste século
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Parece um pouco estranha a idéia de fazer uma biografia de uma pessoa tão reservada, tão avessa ao mexerico, tão ciosa da distinção entre o público e o privado, como a filósofa e pensadora política Hannah Arendt.
Elizabeth Young-Bruehl, que foi sua aluna na New School for Social Research, em Nova York, avisa logo no início do livro: "Uma biografia abundante em descrições romanescas de lugares, pessoas e períodos não seria apropriada a alguém como Hannah Arendt. O que deve ser mostrado são as bases históricas para as suas generalizações, as experiências particulares que impeliam seu pensamento, as amizades e os amores que a nutriram e -se possível- sua maneira ou estilo de pensar". Uma "biografia filosófica", conclui a autora.
A austeridade do propósito é bem-vinda, se pensarmos na espantosa quantidade de fofocas e detalhes desimportantes que ocupam o já inflacionado mercado mundial de biografias. Mas a formulação de Young-Bruehl não deixa de ser um tanto enganosa: se se trata de contar "as experiências particulares, as amizades, os amores", como diz a autora, dificilmente escaparemos de uma biografia convencional -com a diferença de que, no caso de Hannah Arendt, é de fato o seu pensamento, e não sua vida, o mais interessante a ser exposto.
Ficamos, assim, com um produto híbrido -a narrativa de uma vida discreta e o balanço, forçosamente resumido, de um pensamento e de sua repercussão. Mas esse "hibridismo" não deve ser entendido de forma pejorativa. Esta biografia de Hannah Arendt termina criando um efeito que supera os dois termos da equação: deixa-nos diante de um estilo de pensamento, de um exemplo de integridade intelectual e de distanciamento crítico extremamente raros num século em que os intelectuais se notabilizaram por engajamentos vibrantes e erradíssimos.
Um amigo perguntou certa vez a Hannah Arendt o que ela era, afinal. Uma conservadora? Uma liberal? "Não sei", disse ela. "Eu realmente não sei e nunca soube. Você sabe que a esquerda pensa que eu sou conservadora, e os conservadoras às vezes pensam que eu sou da esquerda. Devo dizer que eu não poderia preocupar-me menos. Não penso que as verdadeiras questões deste século receberão qualquer espécie de esclarecimento dessa maneira."
Uma figura bem difícil, portanto. Young-Bruehl acompanha longamente, por exemplo, as complicadas discussões de Arendt em torno do movimento sionista. Favorável à criação de um estado binacional na Palestina, Hannah Arendt indispôs-se rapidamente, já em 1948, com os "pais da pátria" israelense, advertindo contra os riscos do chauvinismo e da militarização.
Mas a grande tempestade viria nos anos 60, quando Hannah Arendt acompanhou, como correspondente da revista "New Yorker", o julgamento de um criminoso de guerra nazista, Adolf Eichmann. O livro que publicou, "Eichmann em Jerusalém - Um Ensaio sobre a Banalidade do Mal", fugia do retrato habitual dos criminosos nazistas como monstros diabólicos; não desculpava Eichmann, é claro, e concordava com sua condenação à morte. Mas envolvia-se numa discussão extremamente complexa sobre a dificuldade de julgar um crime para o qual toda pena parecia insuficiente; investigava a questão do intuito individual dentro de um regime totalitário; e, de passagem, criticava o papel das autoridades judaicas que optaram por cooperar com o holocausto.
A reação ao livro foi fortíssima. Do erudito Gershom Scholem, que a acusou de "ter poucos traços de amor pelo povo judeu", à historiadora Barbara Tuchman, que viu no livro "um desejo inconsciente de apoiar a defesa de Eichmann", poucas pessoas se dispuseram a entrar no raciocínio intrincado da autora.
Young-Bruehl conta que, nessa época, Arendt sentava-se sozinha no refeitório do clube dos professores da Universidade de Chicago, onde dava um curso. "A maioria dos docentes a evitava." A idéia do pária, do apátrida, da pessoa que só conta com um círculo íntimo de amigos em que se apoiar, presente no pensamento de Arendt, parecia concretizar-se, assim, com especial nitidez.
Mas é provável que, em toda a sua vida, Hannah Arendt não tenha cessado de viver essa experiência. Young-Bruehl conta que, nos seus dias de estudante, Arendt recebia seus amigos para discutir filosofia, mas, de repente, ausentava-se da conversa para alimentar um camundongo, seu companheiro de quarto. "Ele era tão sozinho quanto eu."
É sempre o intuito de fazer distinções conceituais, de "refletir", como ela gostava de dizer, e não de "concluir", que faz o pensamento e a figura de Hannah Arendt tão difíceis de classificar. Foi contrária à política de integração racial do governo Johnson. Uma coisa seria acabar com as leis de discriminação, ponto com que ela concordava. Outra, forçar os brancos a um convívio com os negros, nas escolas públicas por exemplo: Arendt via nisso uma interferência do político sobre a vida privada.
Esse "amor ao mundo", expressão de Hannah Arendt que dá um tom algo derramado ao título da biografia, fazia-se seguir, portanto, de um não menor desejo de distinção, de separação, de resistência a qualquer identificação. É como se o próprio pensamento fosse um constante exercício de diferenciação e matizamento, antes que um atalho para a conclusão unânime e a verdade científica.
Se esse enfoque não suscita -nem busca- adesões entusiásticas, fica pelo menos, e o livro de Young-Bruehl transmite vivamente essa impressão, como um exemplo de disponibilidade para a reflexão e de independência intelectual.
"Hannah Arendt" foi publicado originalmente em 1983, antes de terem sido editadas as correspondências de Arendt com sua amiga Mary McCarthy e com seus professores Jaspers e Heidegger. A autora teve acesso a esses documentos (exceto no caso de Heidegger). Foi, salvo engano, a primeira a revelar o caso amoroso entre Heidegger e Arendt; mas não se detém muito no episódio. A tradução deixa a desejar: confunde "acostumado a" com "usado', para citar só um exemplo.




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