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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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+ sociedade

Estratégias dos Estados se enfraquecem e abrem espaço à "política da vida", que encoraja os cidadãos a buscar soluções pessoais a problemas de origem coletiva

Resíduos modernos das nações

Zygmunt Bauman
especial para o "Le Monde"

Comecemos pelo processo de preenchimento do planeta: nosso planeta está hoje repleto. Não se trata de uma constatação de geografia física nem mesmo humana. É uma proposição sociológica. Em termos de espaço físico e de extensão da coabitação humana, o planeta está longe de estar repleto. Dizer que o planeta está repleto é simplesmente dizer que não há mais espaço sem dono, "no man's land", territórios que possam ser tratados como vazios de toda presença humana por estarem desprovidos de administração soberana e, portanto, abertos à colonização e ao povoamento. Durante uma grande parte da história moderna, esses territórios, hoje ausentes, desempenharam um papel crucial, o papel de depósitos para os refugos e resíduos humanos produzidos em quantidades sempre crescentes nas partes do mundo envolvidas no processo de "modernização".

Produção de desperdício
A produção de resíduos humanos ou, mais exatamente, de humanos supérfluos e desperdiçados é um elemento inevitável da modernidade, dessa condição social que se caracteriza por uma modernização perpétua e compulsiva, obsessiva e dependente. A produção de desperdício é um efeito indissociável da construção da ordem (pois cada tipo de ordem priva certas partes da população existente de seu lugar legítimo, definindo-as como "inúteis", "incompetentes", "inadaptáveis" ou "indesejáveis") e do progresso econômico que não pode se perpetuar sem uma desvalorização dos modos que permitiam outrora, mas hoje não mais, "ganhar a vida", privando assim os que os praticam dos meios de subsistência. No entanto, durante um longo período da história moderna, vastas regiões do globo escaparam, completa ou parcialmente, às pressões da modernização. Diante dos setores modernizados do globo, esses territórios ("pré-modernos", "subdesenvolvidos", "atrasados") tenderam a ser considerados e tratados como a destinação natural para os seres humanos "supérfluos" nas regiões mais desenvolvidas do globo, como depósitos manifestos para os resíduos humanos, para o desperdício da modernização.

Planeta cheio
A eliminação desses resíduos humanos nas regiões "em via de modernização" foi o sentido mais profundo da colonização e das conquistas imperialistas, que a limitação do "desenvolvimento" a uma parte do planeta tornou possível e, na verdade, inevitável. O fato de os processos de modernização ficarem limitados ao âmbito territorial permitiu à parte moderna do globo buscar e encontrar soluções externas globais a problemas internos de superpopulação produzidos localmente. Essa situação durou enquanto o modo moderno de existência permaneceu como privilégio de apenas algumas regiões do mundo. Mas hoje a modernidade se tornou, como previsto, condição universal ou quase universal da humanidade, e a produção de resíduos humanos generalizou-se em praticamente todo o globo. Logo, não há mais saídas globais para os excedentes locais, ao mesmo tempo em que todas as regiões (inclusive as mais fortemente modernizadas) devem sofrer as consequências do triunfo mundial da modernidade: todas se vêem confrontadas à necessidade de buscar desesperadamente soluções locais para problemas produzidos de maneira global. Em suma, o preenchimento do planeta, fenômeno novo e sem precedente, representa essencialmente uma crise aguda da indústria de tratamento dos resíduos humanos, hoje carente de depósitos e instrumentos de reciclagem, enquanto a produção desses resíduos prossegue sem esmorecer e aumenta rapidamente de volume. Uma outra tendência importante é o fim da era do espaço. Também aqui, mais uma vez, uma ressalva é necessária. O fim da era do espaço não significa que o espaço não conta mais. A importância do espaço físico praticamente não evolui, mas esse processo está associado a uma acentuação brutal da significação do território, do local, do lugar. Ao falar do fim da era do espaço, estou me referindo à nova extraterritorialidade do poder e à substituição do engajamento territorial pela mobilidade como fator estratégico decisivo na luta pelo poder. Na hierarquia global que se manifesta, reinam os que menos dependem do espaço, os menos vinculados a um lugar e com mais liberdade de se deslocar, de se transferir. No "espaço dos fluxos" em que se inscrevem e funcionam os poderes globais, são a velocidade de movimento e a facilidade de se descomprometer e de escapar, e não o tamanho das possessões territoriais, que importam. O reduto territorial retarda o movimento ou mesmo exclui sua possibilidade, portanto não é mais um trunfo, mas um fardo e uma desvantagem.

Fronteiras permeáveis
A eventualidade de se vincular a um território, de assumir responsabilidades a longo prazo por um lugar fixo e imóvel, deve ser evitada a todo custo, e os atores principais e mais poderosos de hoje fazem o que podem para evitá-lo. Os novos impérios não são deste mundo, não pertencem à realidade terrestre e geográfica, ao "espaço dos lugares". Por outro lado, os lugares perderam sua capacidade de proteção. A época das linhas Maginot ou Siegfried está terminada. Prender-se a um local, por mais hermético e fortificado que seja, não é mais uma garantia de segurança. As fronteiras são eminentemente permeáveis. O poder fluido não respeita os obstáculos; ele se infiltra pelos muros mais espessos, passa facilmente por milhares de fendas, frestas e rachaduras, por mais finas que sejam. Não há vedação capaz de tapar os buracos e de impedir as fugas. É nessas condições desfavoráveis que as forças estatais, separadas do fluxo global, fixas e imobilizadas por sua soberania e suas responsabilidades territoriais, devem buscar soluções globais para problemas produzidos em nível mundial. Esses problemas são gerados no "espaço dos fluxos", mas devem ser abordados e tratados no "espaço dos lugares". A significação nova do lugar nasce, se alimenta e se consolida perpetuamente nessa nova condição global. Uma terceira tendência deriva das outras duas. Depois de cerca de dois séculos de casamento, o poder e a política, instalados alegremente no quadro do Estado-nação moderno, parecem tender ao divórcio. Os dois parceiros olham em direções opostas: um se sente desconfortável no domicílio partilhado, e o outro está cada vez mais contrariado pelas prolongadas ausências do parceiro.

Forças do mercado
Tendo se mudado para um andar mais elevado, o poder bloqueou a escada e colocou guardas armados diante do elevador.
A política, abandonada no apartamento, teve barrado o acesso ao novo domicílio do poder, que suprimiu seu nome da lista telefônica. Privada da parceria com o poder, fonte antiga de sua força e confiança, a política deve conservar o sorriso, aceitar a sorte, tentando em vão ocultar sua impotência.
Outros residentes do antigo lar do poder e da política também abandonam a casa; privada de poder, a política não consegue vigiar eficazmente a saída. Aliás, mesmo se tivesse meios para isso, não o faria: esses residentes turbulentos causam muitos problemas. A política do Estado ou da nação ficaria feliz de ver a maior parte deles se instalar fora de seu domínio. Ela os importuna e os incita a partir por meio de estratégias diversas batizadas de "desregulação", "privatização" ou "princípio de subsidiariedade".
A maior parte das funções que a política executava é agora concedida às forças do mercado e ao domínio novo da "política da vida", essa política que encoraja os cidadãos dos Estados-nações a buscar soluções pessoais a problemas de origem social. O poder é livre para percorrer "o espaço global dos fluxos" sem prestar reconhecimento, a não ser formal, às antigas formas de controle político, enquanto a política, privada de todo poder, pode apenas observar, desditosa e impotente, suas facécias. O máximo que ela pode esperar é atrair as boas graças dos poderes extraterritoriais, ao mesmo tempo em que dirige seu interesse para outras soberanias igualmente territoriais.


Zygmunt Bauman é professor emérito de sociologia nas universidades de Varsóvia (Polônia) e Leeds (Reino Unido). É autor de "Modernidade Líquida" (Jorge Zahar), entre outros livros.
Tradução de Paulo Neves.


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