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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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FILMES DE CLINT EASTWOOD, LARS VON TRIER E GUS VAN SANT FICCIONALIZAM AS FORMAS DA VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE NORTE-AMERICANA E RETRATAM UMA ÉTICA DE QUE A LEI ESTÁ AUSENTE

O IMPÉRIO DO MAL


Divulgação
Cena de "Elefante", de Gus van Sant, ainda sem previsão de lançamento no Brasil


por Jacques Rancière

O mal comporta-se bem. À sombra da grande encenação bushista da luta contra o eixo do mesmo nome, numerosas ficções se dedicam hoje a mostrar o avesso da cruzada: a maneira pela qual essa América, que persegue os fomentadores da morte em toda a superfície do globo, os reencontra a domicílio, nas largas avenidas plantadas de bordos e nos colégios modernos e conviviais da América profunda, sob a figura de cidadãos honrados ou de adolescentes iguais a quaisquer outros.
O mal não é a violência. Esta se deixa domesticar de diversas maneiras. De um lado, pode ser tratada como pura intensidade: estrondos de deflagrações, riachos de sangue, prédios que desabam em chamas são então, como o dilúvio de decibéis ou os movimentos de câmera espetaculares, puras intensidades que compõem o gozo do espetáculo do qual se sai tal como se entrou. Desse lado, portanto, a violência não tem consequências. De outro, ao contrário, ela se presta ao jogo das diferenças e das causas. Existem a boa e a má violência.
Até pouco tempo atrás, policiais, xerifes ou justiceiros free-lancers exerciam sem complexo, no cinema, a violência da lei comum ou da moral contra a violência dos que seguiam apenas a lei de sua avidez. Na cena do mundo, via-se, de uma forma divergente, uma oposição do mesmo tipo: há a violência que oprime e a violência que liberta, dizia-se no tempo de Sartre e de Frantz Fanon [1925-61, escritor martinicano]. Se era possível marcar a diferença, é porque se podiam atribuir causas à violência, remetê-la a uma violência mais oculta, a violência da ordem e da propriedade. A partir daí se estabeleciam os roteiros políticos da dureza necessária à justiça ou os roteiros estéticos do confronto das violências. Não resta dúvida de que esses roteiros se prestam hoje à suspeita. "Tiros em Columbine", de Michael Moore, o testemunha a seu modo. O argumento de que "há crimes porque há armas que qualquer um pode comprar" oscila entre duas lógicas. Para completar o esquema causal, próprio da lógica antiga, seria preciso questionar não simplesmente o encontro dos interesses de um lobby e do ideal viril norte-americano, mas o fato mesmo de uma sociedade em que tudo se compra.
A interrupção na cadeia das causas corresponde, é claro, às formas contemporâneas de uma consciência de esquerda mais ligada à regulamentação dos produtos perigosos do que à crítica da propriedade como tal. Mas ela também deixa livre o lugar a uma outra forma de causalidade, a que remete o fato finito desse ou daquele ato assassino ao fato infinito do mal.
Com efeito, a característica do mal é não ter conserto senão ao preço de um outro mal que permanece irredutível. Há um traço comum a três filmes recentes que nos falam do mal em geral e do mal norte-americano em particular: "Dogville", "Sobre Meninos e Lobos" ("Mystic River") e "Elefante" ("Elephant"). Nesses filmes, a lei está ou radicalmente ausente ("Elefante") ou é cúmplice do mal: ela designa a vítima que deve sofrer e reserva aos bandidos o cuidado de punir os torturadores ("Dogville"); ela deixa impune o crime do honesto pai de família-bandido-justiceiro ("Sobre Meninos e Lobos"). Certamente, "Dogville" é o filme que mostra melhor a divergência entre duas lógicas -que é também uma divergência entre duas gerações.
A encenação abstrata que aproxima o espaço fictício do cinema do espaço real do teatro, a composição em pequenas cenas que são espécies de contos morais e o papel distanciador da voz em "off" lembram a origem teatral da parábola que Lars von Trier nos propõe. Esses princípios de mise-en-scène são herdados do "teatro épico" de Brecht. E a história das desilusões da moça de olhos azuis que quer, mas não consegue, praticar o bem faz pensar irresistivelmente em "Santa Joana dos Matadouros". A mesma conclusão se produz, a saber: a impossibilidade de fazer o bem num mundo mau e a necessidade da violência. Mas a analogia se detém aí. Em vez de Chicago, da especulação capitalista e da miséria ou da revolta operária, trata-se de um buraco perdido qualquer da América profunda, dos serviços de vizinhança e da banalidade do mal entre pessoas de bem.

Figura crística
A nova Joana d'Arc não é mais, então, uma paródia do Cristo que oferece sua vida pela redenção dos homens e descobre as realidades terrestres da luta de classes. Grace (a graça) torna-se uma figura crística à maneira de Dostoiévski, uma enviada do além que depara com o gosto da exploração e da humilhação infligidas ao outro nas mais ínfimas e tranquilas células do corpo social. O mal encarnado particularmente na perversidade do pequeno Jason, que pede como prova de amor umas palmadas nas nádegas, que servirão a seguir para acusar Grace, não pode ser remediado por nenhuma luta. É o que mostram, em sua ambiguidade, as fotos que compõem os créditos no final do filme: fotografias de Walker Evans, de Dorothea Lange e outros fotógrafos testemunhas dos tempos da Grande Depressão e do engajamento social dos artistas. Não se sabe muito bem se essas fotos estão aí para lembrar uma injustiça social doravante sem justiceiros ou para dar a entender que os "great men" de Walker Evans e James Agee se transformaram nesses pequenos monstros da América profunda. Mas uma coisa é certa: a luta social não é mais uma resposta ao mal com que Grace depara. A vontade de fazer o bem não é mais uma ingenuidade a esclarecer. É uma arrogância a castigar. O Senhor, pai de Grace, que se reserva a vingança, é idêntico ao rei dos bandidos que faz justiça à humanidade sob a forma do extermínio radical. Essa visão do mal e da justiça provocou indignações -e não só norte-americanas. O presidente do Festival de Cannes disse claramente que não era possível premiar um filme tão afastado dos sentimentos humanistas. "Sobre Meninos e Lobos", em troca, corresponde certamente aos critérios do humanismo tal como o júri de Cannes devia concebê-lo. Mas ele nos mostra que também o "humanismo" mudou. Este era, no passado, a fé na capacidade humana de organizar um mundo tão justo quanto a fraqueza igualmente humana o permitisse. Hoje, é antes o testemunho da impossibilidade de semelhante justiça. Somos culpados demais para nos darmos o luxo de sermos justos: tal é o sentido dos gestos mudos que trocam, no final do filme, o assassino impune e o policial que guarda seu segredo.

Justiça sumária
Sean e Jimmy são culpados de ter, no passado, em suas brincadeiras de rua, arrastado o tímido Dave e de tê-lo feito entrar na viatura dos falsos policiais e verdadeiros pedófilos que o sequestraram e violentaram. O trauma sofrido é irreparável. E é dentro da lógica desse irreparável que o Dave adulto verá cair sobre si todas as suposições de culpabilidade no assassinato da filha de Jimmy e será vítima da justiça sumária deste último.
Toda a estrutura do filme parece ser o desenvolvimento de um pequeno episódio de um dos filmes iniciadores do estilo norte-americano dos últimos 30 anos: "Era uma Vez no Oeste" [1968]. A câmera de Sergio Leone [1929-89] nos fazia ler no olhar de uma criança impotente a decisão do homem que ia matá-la. Ela nos introduzia numa confusa cumplicidade com o gozo do assassino e a espera da criança pelo inevitável. "Sobre Meninos e Lobos" é, do mesmo modo, a longa crônica de uma morte anunciada. A atmosfera noturna em que Dave circula -e a câmera a seu redor-, como num aquário, as gesticulações e urros selvagens de Jimmy e seus dois acólitos, as vibrações da música de órgão compõem a paisagem mental e sensível dessa preparação para a morte que transforma o roteiro clássico do falso culpado em roteiro da vítima prometida.


Se o "freudismo" de Eastwood corresponde à demonstração do trauma irreparável, o de "Elefante" nos propõe uma explicação em termos de psicose: o mundo dos adolescente é um mundo "inocente"


Não-maniqueísmo
Todos nós matamos uma criança, então vamos até o fim: eis como se poderia resumir a moral do filme, a moral que ele põe em cena e a de sua mise-en-scène. Clint Eastwood chegou a ser elogiado por ter evitado o "maniqueísmo" de Michael Moore ou de Lars von Trier. Examinado mais de perto, esse "não-maniqueísmo", essa aceitação da injustiça em nome do mal, é homogêneo em relação ao discurso reinante contra o eixo do mal. Já que somos todos selvagens, todos potenciais assassinos, devemos aceitar a obra da justiça. Mas, pela mesma razão, não devemos exigir da justiça que ela seja demasiado justa. A luta contra o mal infinito tem necessariamente suas falhas, necessariamente suas vítimas, tanto na periferia das cidades árabes como na de Boston. Quanto a "Elefante", ele se coloca fora de toda consideração de justiça e de toda perspectiva causal. Se o "freudismo" de Clint Eastwood corresponde à demonstração do trauma irreparável, o de "Elefante" nos proporia antes uma explicação em termos de psicose: o mundo dos adolescentes é um mundo "inocente", mundo de que o pecado, a lei e a autoridade estão radicalmente ausentes. O pai depressivo que bebe, e que seus filhos tratam como criança, é o único representante da instância parental. Mas nenhuma causalidade psicológica se induz disso. John, o filho do pai indigno, não será nem culpado nem vítima. Sua presença ao longo de todo o filme é apenas a da testemunha que assegura a continuidade da narração interrompida. E os dois assassinos parecem perfeitamente cândidos, comparados ao pequeno Jason. Nenhuma psicologia da filiação e de seus distúrbios, nenhuma teologia do mal vêm substituir o horizonte político-social desaparecido. Todo o princípio do filme está aí. À espessura do trauma em que Clint Eastwood nos instala, Gus van Sant, como Lars von Trier, opõe um partido assumido de abstração conceitual que faz da mise-en-scène a demonstração rigorosa de um ponto de vista. E esse ponto de vista é o seguinte: não há razão para o crime, a não ser o vazio mesmo das razões. A mise-en-scène é a longa manifestação desse vazio. O colégio é estranhamente inabitado. O laboratório de línguas onde os matadores acumulam seu material é deserto como o colégio que o adolescente "de mal com o mundo" atravessa. As salas apresentam antecipadamente esse vazio que o rapaz assassino contemplará no final como sua obra. A câmera segue longamente o percurso e as voltas que fazem, em corredores quase desertos, corpos filmados de costas.

Matadouros de Eisenstein
Esse espaço sem consistência e geralmente vaporoso já se assemelha ao da tela de computador em que os dois adolescentes encomendaram suas armas e em que um deles se exercita num jogo de massacre, enquanto o outro se contenta em massacrar Beethoven ao piano. E é como uma criatura de videogame numa tela que Alex aparecerá, no final, sob o olhar do casal de adolescentes prometidos à morte. Morte prometida, mas que o final do filme deixará em suspenso.
Esse final suspenso é emblemático do método do filme inteiro. Alex na câmara frigorífica, enquadrado por peças de carne, goza para a eternidade do prazo concedido/imposto aos dois adolescentes, dos quais ouvimos apenas a voz suplicante. Pensamos ainda, é claro, em Sergio Leone. Mas esses pedaços de carne que enquadram o matador adolescente nos fazem remontar mais longe na história do cinema. Eles lembram os matadouros que Sergei Eisenstein [1898-1948] introduziu simbolicamente em "A Greve" [1924] e aos quais tantos cineastas prestaram homenagens visuais mais ou menos discretas. Mas aqui a significação simbólica (carne/sangue/violência) é absorvida.
Resta a câmara frigorífica, que condensa tanto a frieza dos corredores e das salas vazias como a da tela de computador ou a do "luar" beethoveniano. E resta, por fim, a designação do próprio cinema, o partido assumido do diretor construtor dessa câmara fria em que normalidade e monstruosidade, razão e ausência de razão se mostram equivalentes. Isso tudo é só um filme, nos diz o plano final.
A mise-en-scène dos matadores e a do cineasta se refletem então uma na outra. Ambas fazem funcionar um princípio de interrupção. Tanto na câmara frigorífica quanto na tela de computador dos dois matadores, a deambulação infinita nos corredores e a circulação interminável de falas vazias -as dos três periquitos ou da associação homo-heterossexual- se vêem bloqueadas, enquadradas, submetidas a um princípio de fechamento. A moral do filme estaria portanto aí. Ela seria a boa interrupção que responde à má. "Faça amor, não a guerra", dizia-se no tempo da violência. "Faça filmes, não massacres": tal seria, para Gus van Sant, a fórmula de uma ética adaptada ao tempo do mal. Infelizmente, nem todos podem fazer cinema.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Acaba de publicar na França "Le Destin des Images" (La Fabrique). Escreve na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.


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