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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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+ história

SURGIMENTO DE PERIÓDICOS E ASSOCIAÇÕES APONTAM PARA UMA ATUAÇÃO EFETIVA DE MOVIMENTOS NEGROS NA VIDA POLÍTICA DO BRASIL DESDE O FIM DA ESCRAVIDÃO

Reprodução
Oficiais da Legião Negra


DE EX-LIBERTOS A QUASE-CIDADÃOS

Flávio Gomes
especial para a Folha

Não se pode esquecer o que se desconhece. Abril de 1889, antes de completar um ano da Lei Áurea, uma comissão de libertos no Vale do Paraíba enviou uma carta a Rui Barbosa. Reivindicou apoio do então jornalista para denunciar que a legislação do fundo de emancipação de 1871 pouco tinha sido cumprida, no caso da parcela do imposto a ser destinada à "educação dos filhos dos libertos". Terminava com um alerta: "Para fugir do grande perigo que corremos por falta de instrução, vimos pedi-la para nossos filhos e para que eles não ergam mão assassina para abater aqueles que querem a República, que é liberdade, igualdade e fraternidade". E veio o regime republicano e um ministério para Rui Barbosa. E pior que a inexistência de políticas públicas foram aquelas da intolerância com marca racial. Expectativas diferentes marcaram o cronograma da época. Imagens sobre controle, dádivas, ameaças, desordem, manipulação, caos e gratidão surgiram entre espelhos. E nem tudo era festa. E, sim, quem poderia fazê-la, quando e por quê. Também no Vale do Paraíba, ainda em 1889, uma Pequitita Barcelos se encontrava deveras assustada com o primeiro aniversário da Abolição, chamando o 13 de maio de "malfadado dia". Em meio às disputas entre republicanos e monarquistas, temia pela sua vida e de seus familiares, pois os libertos -avaliava em carta aos seus parentes- estavam "altaneiros" e não faziam questão de outras coisas, "mas sim da raça". É certo que os primeiros anos do pós-emancipação foram decisivos. No mundo rural, migrações familiares, arranjos coletivos e status de camponeses, parceiros e vadios se alternavam, abrindo fronteiras ou fechando portas. Nas áreas urbanas, ao contrário do êxodo rural de uma desqualificada massa negra alijada do mercado de trabalho, ressurgiam tradições operárias, onde o debate sobre raça e nação podia ser travado no braço.

A Revolução de 32
São vários os exemplos de refregas sindicais entre trabalhadores nacionais e aqueles estrangeiros, que na verdade eram confrontos entre negros e imigrantes. Vários desses cenários foram montados entre as experiências operárias de cidades como Pelotas, Rio de Janeiro e Santos. Por volta de 1910 se tentava criar a "Federação dos Homens de Cor". Era comum oradores negros e suas preocupações específicas nas comemorações do 1º de Maio desde os anos 20.
O que dizer da participação negra na Revolução Constitucionalista, em 1932? Um episódio pouco citado da revolução paulista. Não foram poucos os negros, especialmente das regiões interioranas, que cerraram fileiras para defender São Paulo. É bem verdade que houve batalhões e mobilização de vários matizes. Esforços de operários, jogadores de futebol, senhoras casadas, moçoilas solteiras, estudantes e até indígenas. Todos viraram revolucionários.
Pouco sabemos, porém, sobre os batalhões negros que tiveram como principal idealizador Joaquim Guaraná de Sant'ana, um ativista da Frente Negra Brasileira, criada em 1931. Nos meses de propaganda e mobilização para a guerra, centenas de homens e mulheres se apresentaram, formando a Legião Negra, cujo quartel-general ficava na chácara do Carvalho. Para além das imagens de humildade e patriotismo, pouco sabemos sobre as expectativas desses legionários naquele contexto.
O que os mobilizava? Aspirações à cidadania, defesa da democracia e nacionalidade? Certamente mais que isso. Almejavam espaços, direitos, proteção e prosperidade econômica numa sociedade que sonhavam sem preconceito. Queriam ser (e de algum modo eram) paulistas, negros e revolucionários. Desde que mantidos os itens, a ordem dos mesmos podia até ser alterada.
A Legião Negra foi para o front. E os temas da "raça" e "revolução" estavam na ordem do dia naqueles debates políticos. E não foi só oportunismo político ou manipulação das elites, como alguns podem sugerir. Que tal considerar também dimensão política e étnica? É bom que se diga que a adesão da população negra não foi homogênea.
Nem todos se alistaram especificamente nesses batalhões. A própria direção da Frente Negra, com principais bases na capital, manifestou apoio a Getúlio Vargas. A Revolução de 1932 terminou em derrota, e os legionários negros voltaram para a morada do esquecimento. Mesmo desfilando anualmente e exibindo emblemas, voltaram a ser o que já eram: invisíveis para os projetos de poder das elites e ao mesmo tempo quase-cidadãos.
Os anos avançaram. Questões eleitorais e de participação política se colocaram. Existiam diferentes visões. Menos a respeito de uma suposta integração e sob o controle de uma memória abolicionista inventada. Projetos de Brasil contemplavam quem? Quais os projetos? Setores da população negra não encomendaram a ninguém projetos de poder e intervenção. Tinham os seus próprios. Reivindicavam empregos, monumento a "Mãe Preta" e a manutenção do 13 de Maio como feriado nacional. Os "homens de cor", como eram denominados na época, falavam deles e para eles. Discutiam tanto bailes, bons costumes, música como postos de trabalho, serviço de saúde e escolas. Participavam de tudo. Provavelmente não queriam apenas acesso a direitos de uma dada cidadania. E em sindicatos, clubes próprios e partidos políticos agendaram a questão racial. Talvez não quisessem só debater ou participar, mas definir a pauta.
Foram décadas efervescentes. A própria Legião Negra se transformou numa associação que tinha expectativas de participação política dos negros no cenário eleitoral paulista. Atuaria como entidade civil até o início dos anos 50 pelo menos. Chegou a ter um jornal, a "Tribuna Negra", em 1935. Já Guaraná de Sant'Ana teve outros projetos. Fundou no Rio de Janeiro o "Partido Radical Nacionalista", com a idéia da "união político-social dos descendentes da raça negra", noticiou-se na ocasião. Tentaria fazer barulho com o seu periódico "Brasil Novo". Certamente houve contradições. E, na história das organizações negras, como de qualquer outro movimento social, ocorreram oposições e debates internos. Podemos identificar as lógicas nacionalistas e as aproximações com o integralismo. Ou mesmo o resultado eleitoral decepcionante dos candidatos da Frente Negra nas eleições de 1934. Experiências com socialistas e comunistas não foram menos conflituosas, quando em vários comícios lideranças se dirigiam aos negros como "cidadãos de cor preta". Não necessariamente havia um suposto impasse histórico quanto a permanecer invisível no centro ou escolher o caminho da esquerda ou da direita.
O que significava ser cidadão -inclusão, ser integrado ou se transformar em brasileiro? Ex-escravos e seus filhos não precisaram ser avisados para reconhecer que, entre a herança e o legado do cativeiro, estavam suas identidades reinventadas no parentesco, visões de mundo, lembranças e recordações. Tudo permanentemente modificado e reconstituído. Não apenas fardos que arrastariam inexoravelmente ou que iriam se desfazer na primeira esquina da liberdade. Marcados estavam nos corpos e mentes. A principal indagação não era a liberdade para quem, mas, sim, liberdade para quê? Lutar por terra, autonomia, contratos, moradias, salários e enfrentar a costumeira truculência era reafirmar direitos, interesses e desejos redefinidos também em termos étnicos, coletivos e culturais. Havia muita coisa em disputa. Para a população negra, não somente apostas numa roleta do futuro melhor. E um contar com a sorte. Mas o desejo de bancar o próprio jogo.


Flávio Gomes é professor do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


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