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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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Ponto de fuga

Era uma vez

Jorge Coli
especial para a Folha

"Dogville", de Lars von Trier, possui uma clareza firme. Ela vem reforçada por intertítulos sugestivos, que dividem a história em episódios, e pela voz do narrador, que conduz a trama. É parente das histórias de fadas, em que a princesa infeliz se vê abandonada na floresta de todos os perigos. Possui também a natureza do conto ou do teatro filosófico: o espaço reduzido da cidade é como um laboratório onde se podem observar reações a experimentos precisos. Entre seus personagens, por sinal, emerge um "filósofo", que pensa determinar o andamento das situações.
Como um brinquedo de criança, a cidadezinha decadente, no fim do mundo, é desenhada no chão de um estúdio. Não há cenários, paredes, apenas alguns acessórios. Os ruídos mantêm-se realistas. Fica a impressão de um jogo entre as emoções intensas e as convenções que o filme determina. Por aí, um humor, negro e feroz, consegue se infiltrar.
Von Trier declarou sua dívida para com Brecht e, de fato, seu microcosmo é parecido com o de Mahagonny, por exemplo. Mas, se existe, em Brecht, a convicção de que a sociedade pode se modificar, de que, na frase de Barthes, "o mal dos homens está nas mãos dos próprios homens" e que a arte pode auxiliar a história em direção a um mundo melhor, Lars von Trier nos diz apenas que o homem é o lobo do homem. Ele se norteia por uma crueldade sem saída. Propõe um antídoto, ácido, contra a calda adocicada e enjoativa dos bons sentimentos.
Ao pensar no quanto o cinema de pretensões intelectuais vem se alimentando de miséria embelezada para comover generosidades fáceis, o cinismo de "Dogville" ressoa como uma jubilação.

Além - Só a ingenuidade de alguns críticos, nos EUA, muito voltada sobre si mesma, pôde imaginar que "Dogville" contivesse um ataque à sociedade norte-americana. A história se passa num vilarejo pobre, nas montanhas Rochosas, durante a Grande Depressão. No final, aparecem algumas fotografias conhecidas, que mostram, por assim dizer, o avesso do sonho americano. Mas tudo isso são elementos de um imaginário (Von Trier nunca pôs os pés nos EUA), um frágil e superficial realismo que sublinha melhor o caráter de parábola sobre a humanidade violenta.

Perito - Ao conceber "Dogville", Lars von Trier dispôs regras estritas. Elas foram capazes de estimular sua intensidade criadora. Hitchcock também fazia isso, ao rodar, por exemplo, um filme em um único espaço exíguo ("Um Barco e Nove Destinos") ou num único plano-sequência ("Festim Diabólico").
"Dogville" não é obra experimental ou de vanguarda; tudo é levado avante com maestria e segurança evidentes. Pode ser mesmo que o filme se revele, com o tempo, mais engenhoso que profundo. Talvez. Isso, no entanto, não estraga em nada o prazer de vê-lo e não o impede de ficar ecoando na memória. A versão original tem três horas, que passam como cinco minutos.

Luminares - Eles sabiam o mecanismo das coisas, a direção da história, o destino do homem: como foi forte, no século 20, o mito do intelectual. Seguros de suas convicções, de suas verdades e de si mesmos, não se empenhavam eles em transformar o mundo pelo pensamento? "Dogville" acerta contas com essa figura de vaidades sinistras. Não está sozinho. "As Invasões Bárbaras", filme canadense (Quebec) de Denys Arcand, se centra nessa questão. Faz ressurgir, envelhecido, o grupo de universitários do seu já antigo "O Declínio do Império Americano" (1986). Não são pensadores de primeira linha: são professores de bom nível, com sensibilidade de esquerda, que viram suas crenças políticas e sociais se transformarem em quimeras. Um agoniza com câncer. Seu filho, bem-sucedido nos negócios, consegue, à custa de dinheiro, evitar as condições precárias de um hospital público.
Sem abalos de alma, compra-se todo o possível e mesmo o que é ilegal. O conforto e a dignidade diante da morte são obtidos, assim, pelo enterro das ilusões. As emoções individuais sinceras continuam presentes, porém. Diante da morte, é o que sobra, num mundo onde os sentidos, incompreensíveis, se emaranharam.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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