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O BRASIL
POR ACIDENTE
Vinda ao país para lecionar na USP,
nos anos 1930, foi uma casualidade que redefiniu
os rumos da cultura nacional
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Foi por acaso que Lévi-Strauss veio ao Brasil.
Em 1934, depois de estudar direito e filosofia, já tinha descoberto
a vocação para a etnologia. Tudo levava o jovem Lévi-Strauss
para fora do Velho Mundo, mas
nada o trazia obrigatoriamente
ao Brasil.
Sua iniciação como etnólogo
poderia ter sido realizada em
outro lugar: "Se me tivessem
proposto a Nova Caledônia [na
Oceania] ou a África, eu teria
aceitado", diria ele mais tarde.
Mas foi aqui que ocorreu.
"Minha carreira foi decidida
num domingo do outono de
1934, às 9h, num telefonema",
conta ele em "Tristes Trópicos", o livro que o tornou conhecido do grande público como escritor. Livro inclassificável, espécie de microcosmo de
toda a obra. O tal telefonema
era um convite para vir dar aulas na recém-fundada Universidade de São Paulo, onde poderia, disseram-lhe, fazer pesquisa com os índios nos arrabaldes da cidade.
Os índios estavam bem mais
longe, mas o trabalho de campo
entre eles, indispensável para
obter suas "credenciais de etnólogo", seria realizado aqui.
Lévi-Strauss descreve o Brasil, sobretudo em "Tristes Trópicos" (mas também na introdução a "Saudades do Brasil",
de 1994), com cheiro, ruído, tato, paladar, audição e visão,
operando constantemente
com códigos sensoriais, como
que prefigurando "O Pensamento Selvagem" (1962) e os
mitos desdobrados nas "Mitológicas" (1964-71).
Também descreve a natureza, homenageando paisagens
como a do litoral entre Santos e
o Rio de Janeiro, a que chama
de "trópicos de sonho".
Além disso, ele lembra cidades. O Rio de Janeiro, cidade
"mordida" até o osso pela baía
de Guanabara, em que tudo parece "démodé". Ou Goiás Velho, um conjunto de "fachadas
degradadas" tomadas por cipós, bananeiras e palmeiras.
E Goiânia, "uma planície interminável, misto de terreno
baldio e campo de batalha, espetado com postes elétricos e
estacas de medição". A São
Paulo da década de 1930 lhe parecia ser um exemplo típico das
cidades americanas, de ciclo
curto, sempre a "meio caminho
entre o canteiro de obras e a
ruína". Uma cidade que, "de
modo geral, [...] tinha os tons
fortes e arbitrários que caracterizam as más construções".
Apesar disso, aquela São
Paulo da década de 1930 não
lhe parecia feia ao ser lembrada
mais tarde, apenas selvagem,
"como todas as cidades americanas", fez questão de notar.
Esse Brasil não tem, contudo, lugar de destaque em seu
pensamento. Ocupa, em sua
obra, um lugar comparável ao
do Sudeste Asiático, da América do Norte ou até da própria
Europa.
Dois trópicos
Pertence a um conjunto de
lugares que fazem parte da trajetória de Lévi-Strauss, que ele
compara e conecta uns aos outros, no que ele mesmo chama
de seu "traveling mental".
Os "trópicos desocupados"
no Brasil se opõem aos "trópicos superpovoados" na Índia.
O Rio, à primeira vista, lembra as galerias de Milão e Amsterdã ou a estação Saint-Lazare
em Paris, mas ao ar livre. E
também o faz pensar em Nice
ou em Biarritz no século 19, assim como Calcutá. Mas o Rio é
também o contrário de Chittagong [em Bangladesh].
São Paulo, assim como Chicago e Nova York, surpreende o
europeu por parecer precocemente devastada pelo tempo.
Porto Esperança figura em sua
memória ao lado de Fire Island,
no Estado de Nova York, por
sua vez espécie de Veneza invertida.
Pelos lugares do mundo, Lévi-Strauss percorre um grupo
de transformação conectado
por oposições, desdobramentos, inversões, duplicações, como os que vai seguindo entre os
mitos ameríndios nas "Mitológicas", grupo em que esse Brasil
não é mais do que o ponto de
partida de uma viagem que poderia ter começado em qualquer outro lugar.
É outro o Brasil que marca a
vida e a obra de Lévi-Strauss. O
Brasil que faz dele um americanista e inflete sua produção intelectual é aquele em que vivem
nambiquaras, bororos, cadiuéus, tupi-cavaíbas, tupi-mondés... o dos índios.
O que foi decidido naquele
imprevisível telefonema levaria Lévi-Strauss a ser um americanista com uma entrada
"brasileira", ou um europeu
que encontra a América em solo do Brasil.
Qualquer lugar
A trajetória de Lévi-Strauss
poderia ter começado em qualquer lugar, contanto que fosse
na América. Pois os ameríndios
não são meros objetos de sua
reflexão, são co-autores de seu
pensamento.
O encontro entre Lévi-Strauss e o Novo Mundo é tão
importante que especialistas
têm apontado uma "indianização" de seu imaginário científico e uma inflexão ameríndia
em sua teoria do social, tributária de Marcel Mauss tanto
quanto dos nambiquaras ou
dos bororos.
"Tinha ido para o Brasil porque queria me tornar etnólogo", disse ele certa vez.
Lévi-Strauss tornou-se etnólogo entre os brasis -como
chamavam aos índios ainda os
românticos- e aprofundou sua
iniciação mergulhando na leitura de obras dedicadas aos
ameríndios, nas bibliotecas de
Nova York.
Tendo inaugurado um diálogo capaz de pôr nossa cultura
no caminho de um novo pensamento, como notou Pierre
Clastres, o pensamento de Lévi-Strauss, que é também pensamento ameríndio, não cessa
de indicar novos caminhos, gerando novas perguntas e outras
idéias.
BEATRIZ PERRONE-MOISÉS é professora no
departamento de antropologia da USP.
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