São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O BRASIL POR ACIDENTE

Vinda ao país para lecionar na USP, nos anos 1930, foi uma casualidade que redefiniu os rumos da cultura nacional

BEATRIZ PERRONE-MOISÉS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi por acaso que Lévi-Strauss veio ao Brasil. Em 1934, depois de estudar direito e filosofia, já tinha descoberto a vocação para a etnologia. Tudo levava o jovem Lévi-Strauss para fora do Velho Mundo, mas nada o trazia obrigatoriamente ao Brasil.
Sua iniciação como etnólogo poderia ter sido realizada em outro lugar: "Se me tivessem proposto a Nova Caledônia [na Oceania] ou a África, eu teria aceitado", diria ele mais tarde. Mas foi aqui que ocorreu.
"Minha carreira foi decidida num domingo do outono de 1934, às 9h, num telefonema", conta ele em "Tristes Trópicos", o livro que o tornou conhecido do grande público como escritor. Livro inclassificável, espécie de microcosmo de toda a obra. O tal telefonema era um convite para vir dar aulas na recém-fundada Universidade de São Paulo, onde poderia, disseram-lhe, fazer pesquisa com os índios nos arrabaldes da cidade.
Os índios estavam bem mais longe, mas o trabalho de campo entre eles, indispensável para obter suas "credenciais de etnólogo", seria realizado aqui. Lévi-Strauss descreve o Brasil, sobretudo em "Tristes Trópicos" (mas também na introdução a "Saudades do Brasil", de 1994), com cheiro, ruído, tato, paladar, audição e visão, operando constantemente com códigos sensoriais, como que prefigurando "O Pensamento Selvagem" (1962) e os mitos desdobrados nas "Mitológicas" (1964-71).
Também descreve a natureza, homenageando paisagens como a do litoral entre Santos e o Rio de Janeiro, a que chama de "trópicos de sonho".
Além disso, ele lembra cidades. O Rio de Janeiro, cidade "mordida" até o osso pela baía de Guanabara, em que tudo parece "démodé". Ou Goiás Velho, um conjunto de "fachadas degradadas" tomadas por cipós, bananeiras e palmeiras.
E Goiânia, "uma planície interminável, misto de terreno baldio e campo de batalha, espetado com postes elétricos e estacas de medição". A São Paulo da década de 1930 lhe parecia ser um exemplo típico das cidades americanas, de ciclo curto, sempre a "meio caminho entre o canteiro de obras e a ruína". Uma cidade que, "de modo geral, [...] tinha os tons fortes e arbitrários que caracterizam as más construções".
Apesar disso, aquela São Paulo da década de 1930 não lhe parecia feia ao ser lembrada mais tarde, apenas selvagem, "como todas as cidades americanas", fez questão de notar. Esse Brasil não tem, contudo, lugar de destaque em seu pensamento. Ocupa, em sua obra, um lugar comparável ao do Sudeste Asiático, da América do Norte ou até da própria Europa.

Dois trópicos
Pertence a um conjunto de lugares que fazem parte da trajetória de Lévi-Strauss, que ele compara e conecta uns aos outros, no que ele mesmo chama de seu "traveling mental".
Os "trópicos desocupados" no Brasil se opõem aos "trópicos superpovoados" na Índia. O Rio, à primeira vista, lembra as galerias de Milão e Amsterdã ou a estação Saint-Lazare em Paris, mas ao ar livre. E também o faz pensar em Nice ou em Biarritz no século 19, assim como Calcutá. Mas o Rio é também o contrário de Chittagong [em Bangladesh].
São Paulo, assim como Chicago e Nova York, surpreende o europeu por parecer precocemente devastada pelo tempo. Porto Esperança figura em sua memória ao lado de Fire Island, no Estado de Nova York, por sua vez espécie de Veneza invertida.
Pelos lugares do mundo, Lévi-Strauss percorre um grupo de transformação conectado por oposições, desdobramentos, inversões, duplicações, como os que vai seguindo entre os mitos ameríndios nas "Mitológicas", grupo em que esse Brasil não é mais do que o ponto de partida de uma viagem que poderia ter começado em qualquer outro lugar.
É outro o Brasil que marca a vida e a obra de Lévi-Strauss. O Brasil que faz dele um americanista e inflete sua produção intelectual é aquele em que vivem nambiquaras, bororos, cadiuéus, tupi-cavaíbas, tupi-mondés... o dos índios.
O que foi decidido naquele imprevisível telefonema levaria Lévi-Strauss a ser um americanista com uma entrada "brasileira", ou um europeu que encontra a América em solo do Brasil.

Qualquer lugar
A trajetória de Lévi-Strauss poderia ter começado em qualquer lugar, contanto que fosse na América. Pois os ameríndios não são meros objetos de sua reflexão, são co-autores de seu pensamento.
O encontro entre Lévi-Strauss e o Novo Mundo é tão importante que especialistas têm apontado uma "indianização" de seu imaginário científico e uma inflexão ameríndia em sua teoria do social, tributária de Marcel Mauss tanto quanto dos nambiquaras ou dos bororos.
"Tinha ido para o Brasil porque queria me tornar etnólogo", disse ele certa vez. Lévi-Strauss tornou-se etnólogo entre os brasis -como chamavam aos índios ainda os românticos- e aprofundou sua iniciação mergulhando na leitura de obras dedicadas aos ameríndios, nas bibliotecas de Nova York.
Tendo inaugurado um diálogo capaz de pôr nossa cultura no caminho de um novo pensamento, como notou Pierre Clastres, o pensamento de Lévi-Strauss, que é também pensamento ameríndio, não cessa de indicar novos caminhos, gerando novas perguntas e outras idéias.


BEATRIZ PERRONE-MOISÉS é professora no departamento de antropologia da USP.


Texto Anterior: As obras capitais
Próximo Texto: Trópicos não tão tristes
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.