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RETRATO DE UM
HOMEM INVISÍVEL
"Sem forças" e encerrado em seu apartamento em um bairro nobre
de Paris, Lévi-Strauss não deverá participar das comemorações
de seu centenário; amigos falam sobre a convivência com o antropólogo
GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS
Mais importante
intelectual vivo, Lévi-Strauss completa cem anos,
no próximo dia 28, recolhido.
Tido como o pai do estruturalismo e grande responsável
pela afirmação da antropologia
no campo das ciências humanas, ele assistiu -ou participou- às infinitas transformações políticas, sociais e comportamentais do século 20.
Depois de atravessar duas
guerras mundiais, um Maio de
68 e todos os rebuliços que se
seguiram, a Paris atual tem
muito pouco em comum com
aquela em que ele passou a infância e a juventude.
Grande área residencial da
burguesia parisiense -comparável, talvez, ao bairro de Higienópolis, em São Paulo-, o
16º arrondissement foi desde
sempre a casa de Lévi-Strauss.
É ali que mora, há mais de 50
anos, num quinto andar do número 2 da rua dos Marroniers.
A poucas quadras, fica a rua
Passy, endereço onde viveu por
mais de 20 anos com os pais,
num apartamento de onde se
avistava ainda o campo e suas
fazendas.
Hoje, os prédios de La Défense -principal centro financeiro da França, localizado no
extremo oeste- transformaram a paisagem.
A arquitetura de arranha-céu
que Lévi-Strauss vira em São
Paulo nos anos 1930 e em Nova
York nos anos 1940 ganharia
um canto específico para se desenvolver, para que o restante
de Paris mantivesse preservada a unidade estética dos prédios baixos, telhados com chaminés, terraços de ferro e os
bulevares haussmanianos que
deixam transparecer os séculos
18 e 19.
Se a arquitetura se manteve
em certa medida uniforme, para a alegria dos turistas, a população mudou.
Milhões de chineses, marroquinos, brasileiros, senegaleses, malianos são agora tão parisienses quanto aquele professor de etnologia que trabalhava
como subdiretor do Museu do
Homem e visitava os mercados
de pulgas em busca de peças
exóticas para sua coleção.
O kebab é tão popular quanto o crepe. O pluriculturalismo
-termo em grande medida lévi-straussiano- é a marca
principal desta nova cidade e
de seus subúrbios, com todos
os problemas de imigração e
discriminação que gravitam
em torno desse novo quadro.
A Paris de Godard e Truffaut
é substituída pela de Laurent
Cantet, com "Entre Paredes".
"Sem forças"
Mas esta cidade, mais lévi-straussiana do que nunca, tornou-se distante para Lévi-Strauss, que praticamente não
sai mais de casa.
No dia 25, não irá ao colóquio
que o Collège de France organiza com a presença de alguns de
seus principais seguidores.
E, no 28, não estará presente
à grande jornada de homenagens que o Museu do Quai
Branly prepara para o centenário, com leituras de suas obras,
projeção de documentários e
fotos das expedições.
"É preciso dizer que ele está
absolutamente sem forças", adverte à Folha, por telefone, a
secretária que gerencia sua
correspondência.
As visitas de seus ex-alunos
se tornam cada vez mais raras,
assim como rareou-se seu hábito de escutar música clássica
ao longo da tarde.
Mas são fatos recentes. Até o
ano passado, Lévi-Strauss recebia amigos para jantar, lia
publicações de sua área.
Com freqüência, atravessava
ainda o rio rumo ao Quartier
Latin, onde fazia visitas ao Laboratório de Antropologia Social (LAS), que ele fundou em
1960 após sua nomeação para a
recém-criada cadeira de antropologia social do Collège de
France, grande consagração de
seu nome e seu trabalho.
Visitar hoje o laboratório no
nº 52 da rua Cardinale Lemoine é mergulhar na atmosfera
parisiense dos anos 1970, com
o carpete vermelho manchado,
um cheiro agridoce e o design
editorial antiquado dos periódicos, expostos lado a lado numa pequena vitrina de vidro.
Com a Sorbonne, a Escola
Normal Superior e o Collège de
France ali próximos, o 5º arrondissement continua sendo
por excelência o bairro dos estudantes -embora as jovens
pró-Sarkozy não lembrem em
muito as radicais feministas
que passeavam pelas ruas no
tumulto daquela época.
Dirigido atualmente por
Pierre Descola, o centro de pesquisa tem cerca de 50 membros e uma das mais importantes bibliotecas da área de etnologia e etnografia.
Escaninho vazio
Entre os avisos no mural da
entrada, uma folha sulfite
anuncia um colóquio em homenagem a Lévi-Strauss na
Rússia e escaninhos de madeira
guardam a correspondência
destinada a cada um dos membros. O de Lévi-Strauss está lá,
sim, embora vazio.
A vice-diretora Brigitte Derlon lembra-se bem de vê-lo
chegar até bem pouco tempo,
caminhando com certa dificuldade, mas bem-disposto.
Quando criou o laboratório, o
etnólogo francês contava com a
companhia de um pesquisador
romeno, Isac Chiva, a quem nomeou subdiretor.
Fugindo do stalinismo, o jovem judeu chegou a Paris, onde
foi aluno de Lévi-Strauss na Escola Prática de Altos Estudos
antes de tornar-se seu parceiro.
Hoje, também recolhido em
seu apartamento, tem dificuldade para rememorar antigos
nomes, datas, histórias.
"Lévi-Strauss está bem, afinal tem cem anos. O problema
sou eu, que tenho 82 e estou assim. É muito difícil lembrar.
Não deveria ter aceitado te receber para esta entrevista, pois
não tenho mais memória", diz.
Cada frase é interrompida e
seguida por longos silêncios e
as perguntas ficam quase todas
sem resposta.
Mas, ao ouvir falar em Lévi-Strauss, o colega caminha da
sala até sua biblioteca e começa
a mostrar as primeiras edições
de "Antropologia Estrutural",
"As Estruturas Elementares do
Parentesco" e "Tristes Trópicos" autografadas.
"Para Isac Chiva, pesquisador sutil e tenaz, em testemunho de minha estima e amizade", diz uma das dedicatórias.
Esses amigos de tanta convivência jantavam juntos há um
ano, mas hoje muito raramente
trocam um telefonema.
Resposta doce
De uma geração bem mais jovem de pesquisadores, Emmanuel Devaux foi procurá-lo em
1978. "Eu era um jovem tímido.
Queria saber se era pertinente
partir para um trabalho de
campo na América do Norte, e
não na Amazônia, como faziam
todos os meus colegas do departamento", contou à Folha.
Lévi-Strauss recebeu-o, muito cortês. "Vá sim, mas saiba
que será deprimente", foi a resposta. Em 2007, Devaux enviou-lhe um livro, em que
questionava os conceitos estruturalistas. "Recebi uma resposta muito doce que dizia:
"Leio seu livro ainda, embora
muito lentamente. O que me
deixa mais tempo para meditar
sobre nossas concordâncias e
discordâncias"."
As atuais concordâncias e
discordâncias de Lévi-Strauss
em torno da imigração na
França, da eleição de Obama,
da crise financeira e de outras
ordens do dia são um mistério.
Faz alguns anos que parou por
completo de dar entrevistas
por "já não se considerar um
homem deste tempo".
E de que tempo ele é, então?
Talvez daquele tempo mítico
que ele próprio descreve em "A
Via das Máscaras".
Tempo em que a coleção de
arte primitiva morava no Museu do Homem, e não no enorme Museu do Quai Branly,
criado por Jean Nouvel.
Tempos de Barthes, Bachelard, Braudel. Hoje, todos eles
viraram nomes de ruas parisienses, escritos em letras
brancas sobre placas azuis.
Saussure é uma avenida movimentada perto da Porte de
Clichy, bem ao norte. Foucault
é uma alameda que termina no
rio, colada ao Trocadéro.
Hoje, solto num tempo em
que seus amigos, inimigos e seguidores diretos já desapareceram, Lévi-Strauss persiste como homem e como mito -ele
que tanto analisou a interação
simbólica entre vivos e mortos
na sociedade dos bororos.
Disputando com Sartre o título de intelectual mais influente do século 20, ele é ainda um senhor de cem anos, recolhido no silêncio. Absolutamente vivo.
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