São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2008

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RETRATO DE UM HOMEM INVISÍVEL

"Sem forças" e encerrado em seu apartamento em um bairro nobre de Paris, Lévi-Strauss não deverá participar das comemorações de seu centenário; amigos falam sobre a convivência com o antropólogo

GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Mais importante intelectual vivo, Lévi-Strauss completa cem anos, no próximo dia 28, recolhido.
Tido como o pai do estruturalismo e grande responsável pela afirmação da antropologia no campo das ciências humanas, ele assistiu -ou participou- às infinitas transformações políticas, sociais e comportamentais do século 20.
Depois de atravessar duas guerras mundiais, um Maio de 68 e todos os rebuliços que se seguiram, a Paris atual tem muito pouco em comum com aquela em que ele passou a infância e a juventude.
Grande área residencial da burguesia parisiense -comparável, talvez, ao bairro de Higienópolis, em São Paulo-, o 16º arrondissement foi desde sempre a casa de Lévi-Strauss.
É ali que mora, há mais de 50 anos, num quinto andar do número 2 da rua dos Marroniers. A poucas quadras, fica a rua Passy, endereço onde viveu por mais de 20 anos com os pais, num apartamento de onde se avistava ainda o campo e suas fazendas.
Hoje, os prédios de La Défense -principal centro financeiro da França, localizado no extremo oeste- transformaram a paisagem.
A arquitetura de arranha-céu que Lévi-Strauss vira em São Paulo nos anos 1930 e em Nova York nos anos 1940 ganharia um canto específico para se desenvolver, para que o restante de Paris mantivesse preservada a unidade estética dos prédios baixos, telhados com chaminés, terraços de ferro e os bulevares haussmanianos que deixam transparecer os séculos 18 e 19.
Se a arquitetura se manteve em certa medida uniforme, para a alegria dos turistas, a população mudou.
Milhões de chineses, marroquinos, brasileiros, senegaleses, malianos são agora tão parisienses quanto aquele professor de etnologia que trabalhava como subdiretor do Museu do Homem e visitava os mercados de pulgas em busca de peças exóticas para sua coleção.
O kebab é tão popular quanto o crepe. O pluriculturalismo -termo em grande medida lévi-straussiano- é a marca principal desta nova cidade e de seus subúrbios, com todos os problemas de imigração e discriminação que gravitam em torno desse novo quadro.
A Paris de Godard e Truffaut é substituída pela de Laurent Cantet, com "Entre Paredes".

"Sem forças"
Mas esta cidade, mais lévi-straussiana do que nunca, tornou-se distante para Lévi-Strauss, que praticamente não sai mais de casa.
No dia 25, não irá ao colóquio que o Collège de France organiza com a presença de alguns de seus principais seguidores.
E, no 28, não estará presente à grande jornada de homenagens que o Museu do Quai Branly prepara para o centenário, com leituras de suas obras, projeção de documentários e fotos das expedições.
"É preciso dizer que ele está absolutamente sem forças", adverte à Folha, por telefone, a secretária que gerencia sua correspondência.
As visitas de seus ex-alunos se tornam cada vez mais raras, assim como rareou-se seu hábito de escutar música clássica ao longo da tarde.
Mas são fatos recentes. Até o ano passado, Lévi-Strauss recebia amigos para jantar, lia publicações de sua área.
Com freqüência, atravessava ainda o rio rumo ao Quartier Latin, onde fazia visitas ao Laboratório de Antropologia Social (LAS), que ele fundou em 1960 após sua nomeação para a recém-criada cadeira de antropologia social do Collège de France, grande consagração de seu nome e seu trabalho.
Visitar hoje o laboratório no nº 52 da rua Cardinale Lemoine é mergulhar na atmosfera parisiense dos anos 1970, com o carpete vermelho manchado, um cheiro agridoce e o design editorial antiquado dos periódicos, expostos lado a lado numa pequena vitrina de vidro.
Com a Sorbonne, a Escola Normal Superior e o Collège de France ali próximos, o 5º arrondissement continua sendo por excelência o bairro dos estudantes -embora as jovens pró-Sarkozy não lembrem em muito as radicais feministas que passeavam pelas ruas no tumulto daquela época.
Dirigido atualmente por Pierre Descola, o centro de pesquisa tem cerca de 50 membros e uma das mais importantes bibliotecas da área de etnologia e etnografia.

Escaninho vazio
Entre os avisos no mural da entrada, uma folha sulfite anuncia um colóquio em homenagem a Lévi-Strauss na Rússia e escaninhos de madeira guardam a correspondência destinada a cada um dos membros. O de Lévi-Strauss está lá, sim, embora vazio.
A vice-diretora Brigitte Derlon lembra-se bem de vê-lo chegar até bem pouco tempo, caminhando com certa dificuldade, mas bem-disposto.
Quando criou o laboratório, o etnólogo francês contava com a companhia de um pesquisador romeno, Isac Chiva, a quem nomeou subdiretor.
Fugindo do stalinismo, o jovem judeu chegou a Paris, onde foi aluno de Lévi-Strauss na Escola Prática de Altos Estudos antes de tornar-se seu parceiro. Hoje, também recolhido em seu apartamento, tem dificuldade para rememorar antigos nomes, datas, histórias.
"Lévi-Strauss está bem, afinal tem cem anos. O problema sou eu, que tenho 82 e estou assim. É muito difícil lembrar. Não deveria ter aceitado te receber para esta entrevista, pois não tenho mais memória", diz.
Cada frase é interrompida e seguida por longos silêncios e as perguntas ficam quase todas sem resposta.
Mas, ao ouvir falar em Lévi-Strauss, o colega caminha da sala até sua biblioteca e começa a mostrar as primeiras edições de "Antropologia Estrutural", "As Estruturas Elementares do Parentesco" e "Tristes Trópicos" autografadas.
"Para Isac Chiva, pesquisador sutil e tenaz, em testemunho de minha estima e amizade", diz uma das dedicatórias. Esses amigos de tanta convivência jantavam juntos há um ano, mas hoje muito raramente trocam um telefonema.

Resposta doce
De uma geração bem mais jovem de pesquisadores, Emmanuel Devaux foi procurá-lo em 1978. "Eu era um jovem tímido. Queria saber se era pertinente partir para um trabalho de campo na América do Norte, e não na Amazônia, como faziam todos os meus colegas do departamento", contou à Folha.
Lévi-Strauss recebeu-o, muito cortês. "Vá sim, mas saiba que será deprimente", foi a resposta. Em 2007, Devaux enviou-lhe um livro, em que questionava os conceitos estruturalistas. "Recebi uma resposta muito doce que dizia: "Leio seu livro ainda, embora muito lentamente. O que me deixa mais tempo para meditar sobre nossas concordâncias e discordâncias"."
As atuais concordâncias e discordâncias de Lévi-Strauss em torno da imigração na França, da eleição de Obama, da crise financeira e de outras ordens do dia são um mistério. Faz alguns anos que parou por completo de dar entrevistas por "já não se considerar um homem deste tempo".
E de que tempo ele é, então? Talvez daquele tempo mítico que ele próprio descreve em "A Via das Máscaras".
Tempo em que a coleção de arte primitiva morava no Museu do Homem, e não no enorme Museu do Quai Branly, criado por Jean Nouvel.
Tempos de Barthes, Bachelard, Braudel. Hoje, todos eles viraram nomes de ruas parisienses, escritos em letras brancas sobre placas azuis.
Saussure é uma avenida movimentada perto da Porte de Clichy, bem ao norte. Foucault é uma alameda que termina no rio, colada ao Trocadéro.
Hoje, solto num tempo em que seus amigos, inimigos e seguidores diretos já desapareceram, Lévi-Strauss persiste como homem e como mito -ele que tanto analisou a interação simbólica entre vivos e mortos na sociedade dos bororos.
Disputando com Sartre o título de intelectual mais influente do século 20, ele é ainda um senhor de cem anos, recolhido no silêncio. Absolutamente vivo.


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