São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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Filosofia em guerra

"As Paixões Intelectuais" retrata a batalha dos pensadores por glória, dignidade e poder na França do século 18

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

E lisabeth Badinter, em que pese sua grande riqueza pessoal (é a segunda maior acionista do grupo Publicis) e sua condição social (seu marido foi o ministro da Justiça que, no governo Mitterrand, 1981-95, aboliu a pena de morte na França), é uma historiadora de mérito, ao mesmo tempo que boa divulgadora dos assuntos que estuda.
Fez-se conhecida com "Um Amor Conquistado" [ed. Nova Fronteira], em que mostra como o amor materno -em vez de ser natural, inato- é uma novidade histórica, construída sobretudo a partir do século 18. Mas esse bem vendido livro de 1981 não foi tão original.
A tese nascera 20 anos antes, chocando a opinião, com Philippe Ariès, autor de "História Social da Criança e da Família" [ed. LTC]: Montaigne, lembrava ele, por volta de 1600 dizia que tivera "dois ou três filhos" que morreram "em tenra idade", ou seja, perto dos dois anos. Como um pai não sabe quantos filhos teve? -perguntava Ariès. É porque o amor à família ainda não fazia parte dos costumes.

Glória e dignidade
"As Paixões Intelectuais", das quais agora são traduzidos os dois primeiros volumes -o último, "A Vontade de Poder", saiu na França em abril-, são uma obra longa e ambiciosa. Cobrem o século 18 francês, com a devida ênfase no iluminismo e na "Enciclopédia", mas sem esquecer as academias, sobretudo a de ciências.
Talvez o livro devesse se chamar "As Guerras Intelectuais", porque as paixões não aparecem como objetos de estudo dos pensadores, mas como a paixão deles por glória, dignidade e poder. Badinter navega com destreza entre as idéias, as redes de amizades e interesses, as ambições. Mostra a fragilidade daquilo que hoje parece um conjunto homogêneo. Escreve passagens brilhantes, como, no segundo volume, a discussão sobre a morte filosófica. Quando um pensador agoniza, os padres cercam sua casa. A opinião pública aposta: ele vai morrer como filósofo, recusando se arrepender, ou como cristão, isto é, renegando suas obras? A igreja não hesita em relatar conversões que não ocorreram.


Quando um pensador agoniza, os padres cercam sua casa: ele vai morrer como filósofo ou como cristão?

O desenho da sociedade culta que Badinter traça é rico, matizado. Os filósofos têm vícios "humanos, demasiado humanos". Mas, ao mesmo tempo, nesses 27 anos que ela examina [1735-62], vai nascendo a figura do intelectual, um personagem que vai marcar profundamente a França e que é, por definição, uma figura pública. Aliás, a palavra no século 18 é outra: "Philosophe". Redigir e publicar a "Enciclopédia", magistral empreendimento coletivo, "filosófico", leva o conhecimento a todos os que possam lê-la.
Até então, o pensador podia viver em certa paz com seus colegas. O áspero conflito entre Maupertuis e Cassini (a Terra tem a forma de limão ou de tangerina?) rompe essa paz, nos anos 1730. "Soou a hora do debate público. Esse inconteste progresso da democracia marca também o início dos desvios demagógicos que se seguirão", diz a autora.
As relações entre os acadêmicos se desgastam, mas as academias se abrem para o mundo. Nada mais longe do fenômeno que Antonio Candido detectou em nosso pouco ilustrado século 18, quando os autores eram seus próprios -e únicos- leitores. Os acadêmicos franceses, mesmo os hoje esquecidos, em seu tempo mobilizaram as consciências. O preço disso é que, falando de Maupertuis e Cassini, "o ódio toma conta dos dois campos", diz a autora, "pois cada um deles parece ter em jogo sua própria razão de ser. Para Jacques Cassini, reconhecer seu erro seria como uma sentença de morte". Uma guerra civil racha a academia. Ao terminar, nasce o partido dos intelectuais ou dos filósofos.
Se de 1735 a 1751 tivemos o desejo de glória, a década seguinte vive o que Badinter chama de exigência de dignidade. Rousseau, d'Alembert e Diderot "ignoram a corte, suas vantagens e suas obrigações. Querem escrever livremente".

Liberdade na pobreza
Seu lema é liberdade, verdade e pobreza. Uns valorizam mais a verdade, outros mais a virtude. Critica-se o filósofo cortesão.
Mas a liberdade de exprimir-se conhece altos e baixos, e a mesquinharia do mundo filosófico lhe custa pontos junto à opinião que ele tenta influenciar. O que salva esse novo mundo intelectual, num belo e terrível "finale", é o caso Calas. O protestante Jean Calas é executado de maneira atroz, acusado de matar o próprio filho, que se tornou católico. Voltaire luta por sua reabilitação.
O intelectual, como o conhecemos, data do caso Dreyfus, outra injustiça, do começo do século 20; mas, com a luta por Calas, Voltaire firma um papel, o do filósofo lutando contra a superstição e a injustiça, o que vai deixar seu nome como o mais forte das Luzes até há poucas décadas, quando Diderot começou a eclipsá-lo.
Recomendo, para essa obra, um belo complemento: "Boemia Literária e Revolução" [Companhia das Letras], de Robert Darnton. O historiador norte-americano, 20 anos atrás, mostrava quantos pensadores menores, alguns deles no limite do pornográfico, como Restif de la Bretonne, tiveram papel relevante na luta pela liberdade, mais talvez que os grandes pensadores.
Badinter é mais séria, mais política, mais panorâmica. Darnton aprecia mais a infração, o ensaio, o que foge às grandes articulações. A moldura de Badinter ajuda a ler o animado esboço de Darnton.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP.

AS PAIXÕES INTELECTUAIS


Autora: Elisabeth Badinter
Tradução: Clóvis Marques
Editora: Record (tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 60 (volume 1, 532 págs.) e R$ 50 (volume 2, 462 págs.)




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