São Paulo, domingo, 23 de dezembro de 2007

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Cassandra desencantada

Personagem da mitologia clássica é relida em chave feminista pela romancista alemã Christa Wolf

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

C assandra" (1983), a obra mais conhecida de Christa Wolf, é freqüentemente associada a discussões sobre o feminismo ou à própria biografia da autora e seus vínculos contraditórios com a então existente República Democrática Alemã. A estrutura do livro contribui para isso, já que, além da peça ficcional, ele traz outras quatro "conferências" que, juntas, compõem uma espécie de "making of" do romance.
Cria-se assim uma inversão da idéia habitual: mais importante do que discutir o texto parece ser a análise das razões que o levaram a ser escrito e da escolha de personagem trágica já utilizada por Ésquilo, Virgílio e tantos outros.
A história tradicional da princesa conta que a filha de Príamo e Hécuba foi amaldiçoada pelo deus Apolo, com quem se recusou a ter relações sexuais. Para puni-la, fez com que suas profecias, sempre verdadeiras, parecessem loucura a todos que a escutassem.
Na versão de Christa Wolf, Cassandra, uma sacerdotisa de Apolo, já não acredita em deus nenhum ("Não podia dizer desde quando me tornara incrédula. Se tivesse sido uma revelação, como uma conversão, eu me lembraria. Mas a fé se esvaiu de mim aos poucos") nem possui o mágico dom da profecia ("foi o inimigo quem divulgou a história de que eu dizia "a verdade" e que vocês não me queriam crer").
Neste longo monólogo de uma mulher em direção à morte, a clareza da percepção de tudo o que acontece e de tudo o que acontecerá decorre do desencanto, da convivência com a corrupção e com uma guerra estúpida, baseada em um absurdo jogo de aparências, de um prosaico bom senso onde já não há mais senso algum.
Se isso ocorre entre seu próprio povo, os inimigos, os gregos, não estão em situação melhor. Representados como povo bárbaro, têm como principal guerreiro o mais animalesco e cruel dos homens, Aquiles. Enfim, mais do que um romance sobre o poder decaído ou sobre o lugar da mulher em nossas sociedades, talvez este seja um texto, acima de tudo, a respeito da "ruína inscrita em nossa natureza".
Não é à toa, portanto, que um crítico como Michael Wood o considere a principal versão contemporânea da antiga história (em um belo livro à espera de tradução, "The Road to Delphi -The Life and Afterlife of Oracles").

ADRIANO SCHWARTZ é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.

CASSANDRA


Autora: Christa Wolf
Tradução: Marijane Vieira Lisboa
Editora: Estação Liberdade (tel. 0/xx/11/3661-2881)
Quanto: R$ 43 (312 págs.)



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