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Cassandra desencantada
Personagem da mitologia clássica é relida em chave feminista pela romancista alemã
Christa Wolf
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
C
assandra" (1983), a
obra mais conhecida
de Christa Wolf, é
freqüentemente associada a discussões
sobre o feminismo ou à própria
biografia da autora e seus vínculos contraditórios com a então existente República Democrática Alemã.
A estrutura do livro contribui para isso, já que, além da
peça ficcional, ele traz outras
quatro "conferências" que, juntas, compõem uma espécie de
"making of" do romance.
Cria-se assim uma inversão
da idéia habitual: mais importante do que discutir o texto
parece ser a análise das razões
que o levaram a ser escrito e da
escolha de personagem trágica
já utilizada por Ésquilo, Virgílio e tantos outros.
A história tradicional da
princesa conta que a filha de
Príamo e Hécuba foi amaldiçoada pelo deus Apolo, com
quem se recusou a ter relações
sexuais. Para puni-la, fez com
que suas profecias, sempre verdadeiras, parecessem loucura a
todos que a escutassem.
Na versão de Christa Wolf,
Cassandra, uma sacerdotisa de
Apolo, já não acredita em deus
nenhum ("Não podia dizer desde quando me tornara incrédula. Se tivesse sido uma revelação, como uma conversão, eu
me lembraria. Mas a fé se esvaiu de mim aos poucos") nem
possui o mágico dom da profecia ("foi o inimigo quem divulgou a história de que eu dizia "a
verdade" e que vocês não me
queriam crer").
Neste longo monólogo de
uma mulher em direção à morte, a clareza da percepção de
tudo o que acontece e de tudo o
que acontecerá decorre do desencanto, da convivência com a
corrupção e com uma guerra
estúpida, baseada em um absurdo jogo de aparências, de
um prosaico bom senso onde já
não há mais senso algum.
Se isso ocorre entre seu próprio povo, os inimigos, os gregos, não estão em situação melhor. Representados como povo bárbaro, têm como principal
guerreiro o mais animalesco e
cruel dos homens, Aquiles.
Enfim, mais do que um romance sobre o poder decaído
ou sobre o lugar da mulher em
nossas sociedades, talvez este
seja um texto, acima de tudo, a
respeito da "ruína inscrita em
nossa natureza".
Não é à toa, portanto, que um
crítico como Michael Wood o
considere a principal versão
contemporânea da antiga história (em um belo livro à espera de tradução, "The Road to
Delphi -The Life and Afterlife
of Oracles").
ADRIANO SCHWARTZ é professor da Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da USP.
CASSANDRA
Autora: Christa Wolf
Tradução: Marijane Vieira Lisboa
Editora: Estação Liberdade (tel. 0/xx/11/3661-2881)
Quanto: R$ 43 (312 págs.)
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