São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

Antigos mestres


Como o surrealismo foi bastante cerceado no Brasil pela cultura da identidade nacional, as obras de Tarsila do Amaral continuam, muitas vezes, sendo vistas por uma óptica verde-amarela

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Uma bela mostra no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo, é dedicada a Lasar Segall [1891-1957]. As obras, bem-escolhidas, respondem-se, inserindo-se num fluxo comum e contínuo. O partido, conceitual e difícil, é trazido pelo título: "Segall Realista". "Expressionismo", "realismo", "cubismo"; essas e outras noções empregadas pela crítica e pela história são apenas instrumentos para classificação. Cômodas, permitem agrupar obras por diversos critérios.
Em suas singularidades complexas, cada criação artística se encarrega de neutralizar as simplificações genéricas contidas nesses termos.
De uma perspectiva histórica, no correr dos anos de 1920, Segall se aproximou de uma tendência que então ocorria na pintura alemã, a "nova objetividade" ou "realismo mágico". Para perceber as efetivas relações entre elas, seria necessária uma exposição ambiciosa pondo em confronto a produção germânica com telas precisas de Segall.
Fora dessa dimensão, é difícil pensar Segall, com seus poderes altamente universais e sintéticos, submetendo-se à observação do "real" à sua volta, como faziam os realistas norte-americanos (Hopper, Bellows, Grant Wood ou Reginald Marsh, entre tantos). Muito menos corrigindo e engrandecendo o "real", como o realismo socialista operava.
A grandeza humana contida nos quadros de Segall é interior. Vem transfigurada por aquilo que Guilherme de Almeida [1890-1969] chamou de "seu equilíbrio exato" ou por seu "espírito apolíneo", como dizia Gilda de Mello e Souza [1919-2005].

Palmeira
Outra esplêndida exposição modernista: "Tarsila Viajante", na Pinacoteca do Estado, também em São Paulo. Causa grande impacto ver "A Negra", "Abaporu", "Antropofagia" na mesma parede, com suas figuras que irrompem, amplas, nítidas, definidas, poderosas.
Muitos desenhos. O traço é preciso, tão característico e econômico, um nada que transforma o vazio do papel em grandes massas de montanhas, em infinito do céu e do mar, em bicho esquisito e gordo, em cidade inteira. Muitos quadros de Tarsila do Amaral [1886-1973], sobretudo aqueles que assimilaram a gramática de Fernand Léger, têm a aplicação delicada de moça bordadeira. São luminosos, elegantes, felizes.
Os mais intensos, pintados no final dos anos de 1920, enveredam por mundos oníricos. Marcados pelas interpretações de época que, de Oswald de Andrade a Plínio Salgado, imaginavam construir uma alma brasileira, tais quadros são, na verdade, intensas experiências surrealistas. Como o surrealismo foi bastante cerceado no Brasil pela cultura da identidade nacional, elas continuam, muitas vezes, sendo vistas por uma óptica verde-amarela.
Está mais do que na hora de se tomarem distâncias com os sempre mesmos critérios herdados daqueles tempos, para perceber tantas outras possíveis ramificações tantos outros significados.

Clique
Ainda na Pinacoteca, a mostra com cem fotos de Boris Kossoy. Prolonga, de modo curioso e por coincidência, certa atmosfera de estranheza que se depreende de Tarsila do Amaral. Mundo irreal e perturbador desse grande fotógrafo, no qual mesmo os ensaios sobre o cotidiano se embebem de eloqüência insólita.

Arco-íris Outra exposição na Pinacoteca, tão notável quanto as precedentes, reúne obras de Gonçalo Ivo. Trata-se de telas com faixas horizontais e esculturas feitas de tocos pintados. A geometria está presente, mas uma certa materialidade sutil e irregular contamina as cores e as formas.


jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os Dez +
Próximo Texto: Discoteca básica: Expresso 2222
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.