São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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+ Sociedade

Fascínio do eleitorado pobre por políticos de direita se deve a razões culturais, diz analista

Gente como a gente

JEAN BIRNBAUM

Por toda parte no Ocidente, a esquerda está perplexa. "Sou a herdeira do movimento operário, encarno a luta pela emancipação social, mas o povo me abandonou", ela se lamenta.
A esquerda expressa angústia em suas próprias palavras, sob a forma de um questionamento amargo: por que diabos os pobres apóiam a direita -em outras palavras, o partido dos dominantes? Como explicar que os condenados da terra dêem seu voto àqueles que, "objetivamente", defendem a causa dos senhores do mundo?
A pergunta não data de ontem. Mas, ultimamente, vem ganhando atualidade renovada. Para responder a ela, poderíamos optar pela via teórica: dissecar os bons autores e retomar o estudo daquilo que, no passado, era descrito como "servidão voluntária" ou "alienação". Thomas Frank, em "What's the Matter with Kansas?" [Qual É o Problema com o Kansas?] escolheu outro caminho: o da reportagem política, a meia distância entre a pesquisa de campo e um passeio irônico por seu tema.

Esquerda arrogante
Seu campo de pesquisa já estava pronto: o jornalista passou sua infância no Estado do Kansas, onde no passado nasceram muitas revoltas e onde, hoje, o presidente George W. Bush é ídolo dos mais pobres.
A ira de Frank é voltada não contra as elites econômicas, mas contra a esquerda "liberal", forçosamente "cosmopolita" e "arrogante". Assim, diz, vejam esses "democratas" que odeiam a América profunda, vejam esses sindicalistas parasitários, que não deixam passar uma única ocasião de trair o país, vejam esses universitários sabichões, incapazes de usar uma arma ou fazer uma instalação elétrica em suas casas, mas especialistas em feminismo chique e em queijo "frenchie".
Frank insiste no golpe de gênio dado pelos conservadores: de um lado, eles se reapropriaram de um tema em grande medida deixado de lado pelos democratas, o do furor justo das "massas" contra as elites; de outro, substituíram a luta de classes pela "guerra cultural". Os valores em primeiro lugar! "O que divide os americanos seria a autenticidade, e não algo tão complexo e repugnante quanto a economia", precisa o jornalista.
É nesse ponto que a pesquisa chega a seu limite. Pois, ao falar de "mau funcionamento" ou de "masoquismo" popular, o autor se revela prisioneiro de uma grade de leitura que o cega, mais que lhe esclarece os fatos. Ou, pelo menos, é o que afirma a especialista em ciência política Wendy Brown.

Falsa consciência
"Embora Frank explique de maneira convincente que os ricos e poderosos exploraram o desespero e a frustração das classes média e operária americanas, sua análise segue um modelo de "interesses objetivos", de um lado, e de manipulação ideológica, de outro."
"Assim, por meio da imagem batida da "falsa consciência", ela ressuscita uma certa esperança política e evita a perspectiva mais inquietante de uma orientação subjetiva antiigualitária, escravizadora e abjeta presente numa parte importante da população americana", ela escreve em "Les Habits Neufs de la Politique Mondiale" (Os Novos Hábitos da Política Mondial, ed. Les Prairies Ordinaires).
Brown descreve com precisão as zonas de divergência, mas também de convergência, entre os "valores" do neoconservadorismo, de um lado, e os "interesses" defendidos pelo neoliberalismo, de outro.
Para ela, não se trata mais de deplorar as "ilusões" populares nessas áreas, mas de compreender que essa aliança entre retórica moral e doutrina econômica assinala a chegada de um cidadão não-democrático: "Ele não ama a liberdade ou a igualdade, nem mesmo sob uma forma liberal. Ele não espera nem verdade, nem responsabilidade do governo", ela observa.


A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain .


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