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O Rambo da periferia
Ao contrário do guerreiro americano, Capitão Nascimento é uma anomalia, um herói fracassado que não tem acesso aos valores morais da sociedade
Divulgação
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O ator Silvester Stallone em cena de "Rambo 4"; à direita, Wagner Moura como Capitão Nascimento em "Tropa de Elite"
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Em "Rambo 4", John
Rambo está na Tailândia. É um homem
amargo e solitário,
que não acredita nos
outros homens.
Do outro lado da fronteira,
em Mianmar, milicianos esmagam uma revolta muito mais
pelo prazer de fazer mal aos
outros do que por um (inexistente) espírito profissional. É
nessa selva que um grupo de
médicos e pregadores pretende
se aventurar, com a arrogância
da ciência e da fé. Rambo desaconselha a aventura, mas acaba
levando-os no seu barco.
Entregues à própria sorte, os
missionários caem nas mãos
dos sádicos governamentais.
Um grupo de mercenários é
contratado para efetuar o resgate. O barco de Rambo novamente é convocado. Apesar de
toda a arrogância (a do saber
militar, desta vez) do líder dos
mercenários, na primeira
chance ele quer pular fora.
É bem aí que o instinto do
guerreiro vai se manifestar e
John Rambo proclamará que
"ou vive-se por nada ou morre-se por uma causa".
Não há nenhuma causa, essa
é a verdade, exceto a atração
que exerce sobre ele a pregadora Sarah, que pode não ser uma
Catherine Zeta-Jones, mas para aquela selva está mais que
satisfatória.
O quadro está completo: 1)
uma causa política -restituir a
Mianmar os direitos humanos;
2) um objetivo humanístico
-levar a fé cristã a esse povo
bárbaro; 3) um objetivo militar
-demonstrar a superioridade
ocidental (e americana) a esses
sub-homens; 4) um objetivo
metafísico -reencontrar o espírito guerreiro.
Salvar o mundo
Talvez o ideário de Rambo
não tenha mudado muito desde
o segundo exemplar: trata-se,
sempre, de salvar o mundo,
mesmo à custa do desprezo de
seus concidadãos (aqui os missionários torcem o nariz até
quando ele lhes salva a vida).
Podemos dizer, ao primeiro
olhar, que é o velho imperialismo americano em ação. No espírito do Partido Republicano,
que não por acaso Sylvester
Stallone apóia. Talvez seja isso
mesmo. Mas, se Rambo permanece um herói americano, a
despeito das intervenções no
mínimo controversas dos últimos anos, é menos por pregar
uma espécie de antiisolacionismo do que por encarnar uma
virtude muito americana.
Sem estabelecer um juízo sobre a, digamos, qualidade de
seu heroísmo, ele é herói porque representa uma nação em
que, se você tem algo a fazer,
deve fazer direito e até o fim.
No Brasil temos um herói recente, na pessoa do Capitão
Nascimento de "Tropa de Elite". Ele sobe o morro nas piores
circunstâncias, desafia os traficantes, combate os corruptos e
acomodados da polícia e não se
dobra a certos preceitos civilizados (como o de não torturar
suas vítimas) que costumamos
associar a fraqueza no combate
ao crime.
Acordo tácito
Breve, Nascimento é o nosso
Rambo. Ou quase.
Porque, a despeito da solidão
a que é condenado, do desprezo
que muitos lhe dedicam, existe
um acordo tácito, garantido pelo pragmatismo americano,
que insere Rambo numa ordem: a da eficiência, do fazer
bem-sucedido.
Já Nascimento é uma anomalia (assim também os recrutas que trabalham com ele).
A classe média que o elege
como herói tem seus motivos:
só um cara assim, à frente de
uma tropa competente e impoluta, para limpar o Rio de Janeiro, triunfar nessa até aqui
inglória guerra do tráfico e liquidar o espírito mafioso que
se estabeleceu.
Nascimento criou-se, em
nosso imaginário, como uma
mistura de Rambo e Elliot Ness
(mais algo como um sociólogo
capaz de nos libertar das invencionices de Foucault e outros
que envenenam nossos universitários -porque, se nada funciona, a culpa deve ser da cultura, esse veneno).
O que os fãs do capitão Nascimento talvez não tenham notado no filme é que seu herói é
mais fracassado do que o Homem-Aranha. Para ser quem é,
ele não pode preservar o casamento, ele não tem direito nem
sequer à paternidade.
Numa sociedade moral (em
que seus princípios se mantenham minimamente coesos), o
sujeito que rouba ou que mata é
uma anomalia. O policial corrupto é um criminoso. Etc.
O combate ao crime, ao erro,
faz parte natural da existência e
da cultura (ver os inúmeros filmes policiais).
No Brasil, sabemos que as
coisas não funcionam assim, e é
nessa medida que os heróis de
"Tropa de Elite" aparecem como seres dignos de admiração e
imitação. São exemplares, o
que não significa que sejamos
capazes de imitá-los.
Tudo se passa como se o
mundo simbólico, do cinema
no caso, não devesse ter relação
com o mundo empírico, de tal
modo que Nascimento só existe como ser ideal. O sujeito que
o evoca, assim como se evoca o
Super-Homem, é o mesmo que
não admitiria um policial perto
de sua filha. O mundo das imagens não é, em definitivo, o
mundo real.
Como se nossa experiência
cultural conduzisse a um tipo
de esquizofrenia, em que nos
miramos e de certa forma aspiramos ao heroísmo cultivado
pelo cinema americano, mas
somos simplesmente incapazes de inserir esse tipo de experiência na nossa vivência cotidiana. Porque Nascimento é
tragicamente cortado de sua
sociedade.
Em seu mundo
Ainda que vivendo na Tailândia, isolado, ignorado por todos, John Rambo está de certa
forma em seu mundo, é capaz
de reencontrá-lo. Já o capitão
está cortado de seu mundo: o
Bope, mais que uma tropa de
elite, é um refúgio, um lugar
que constrói à sua imagem e semelhança, mas que, para existir, o isola até mesmo da mulher e do filho.
Porque o seu mundo é o da
eficiência e de uma lógica simples: se a polícia existe para
combater o crime, ela não pode
se associar a ele. Mas o capitão
vive em um mundo que não foi
feito para funcionar. Podemos
elogiar ou questionar à vontade
seus métodos e idéias.
O problema não está em
eventuais virtudes ou defeitos,
mas no fato de ambos existirem
numa esfera exclusivamente
simbólica, a do cinema, como
se não concebêssemos mais,
como real, outra sociedade que
não a do espetáculo.
Esse mundo simbólico que
não mantém relação com o real
é tão doentio quanto a incapacidade de distinguir os heróis
do cinema da vida. Nesse sentido, "Tropa de Elite" é um fenômeno terrivelmente saudável,
entre outras porque desvenda
alguns dos impasses em que vivemos afundados.
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