São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

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O Rambo da periferia

Ao contrário do guerreiro americano, Capitão Nascimento é uma anomalia, um herói fracassado que não tem acesso aos valores morais da sociedade

Divulgação
O ator Silvester Stallone em cena de "Rambo 4"; à direita, Wagner Moura como Capitão Nascimento em "Tropa de Elite"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Em "Rambo 4", John Rambo está na Tailândia. É um homem amargo e solitário, que não acredita nos outros homens.
Do outro lado da fronteira, em Mianmar, milicianos esmagam uma revolta muito mais pelo prazer de fazer mal aos outros do que por um (inexistente) espírito profissional. É nessa selva que um grupo de médicos e pregadores pretende se aventurar, com a arrogância da ciência e da fé. Rambo desaconselha a aventura, mas acaba levando-os no seu barco.
Entregues à própria sorte, os missionários caem nas mãos dos sádicos governamentais. Um grupo de mercenários é contratado para efetuar o resgate. O barco de Rambo novamente é convocado. Apesar de toda a arrogância (a do saber militar, desta vez) do líder dos mercenários, na primeira chance ele quer pular fora.
É bem aí que o instinto do guerreiro vai se manifestar e John Rambo proclamará que "ou vive-se por nada ou morre-se por uma causa".
Não há nenhuma causa, essa é a verdade, exceto a atração que exerce sobre ele a pregadora Sarah, que pode não ser uma Catherine Zeta-Jones, mas para aquela selva está mais que satisfatória.
O quadro está completo: 1) uma causa política -restituir a Mianmar os direitos humanos; 2) um objetivo humanístico -levar a fé cristã a esse povo bárbaro; 3) um objetivo militar -demonstrar a superioridade ocidental (e americana) a esses sub-homens; 4) um objetivo metafísico -reencontrar o espírito guerreiro.

Salvar o mundo
Talvez o ideário de Rambo não tenha mudado muito desde o segundo exemplar: trata-se, sempre, de salvar o mundo, mesmo à custa do desprezo de seus concidadãos (aqui os missionários torcem o nariz até quando ele lhes salva a vida).
Podemos dizer, ao primeiro olhar, que é o velho imperialismo americano em ação. No espírito do Partido Republicano, que não por acaso Sylvester Stallone apóia. Talvez seja isso mesmo. Mas, se Rambo permanece um herói americano, a despeito das intervenções no mínimo controversas dos últimos anos, é menos por pregar uma espécie de antiisolacionismo do que por encarnar uma virtude muito americana.
Sem estabelecer um juízo sobre a, digamos, qualidade de seu heroísmo, ele é herói porque representa uma nação em que, se você tem algo a fazer, deve fazer direito e até o fim.
No Brasil temos um herói recente, na pessoa do Capitão Nascimento de "Tropa de Elite". Ele sobe o morro nas piores circunstâncias, desafia os traficantes, combate os corruptos e acomodados da polícia e não se dobra a certos preceitos civilizados (como o de não torturar suas vítimas) que costumamos associar a fraqueza no combate ao crime.

Acordo tácito
Breve, Nascimento é o nosso Rambo. Ou quase.
Porque, a despeito da solidão a que é condenado, do desprezo que muitos lhe dedicam, existe um acordo tácito, garantido pelo pragmatismo americano, que insere Rambo numa ordem: a da eficiência, do fazer bem-sucedido.
Já Nascimento é uma anomalia (assim também os recrutas que trabalham com ele).
A classe média que o elege como herói tem seus motivos: só um cara assim, à frente de uma tropa competente e impoluta, para limpar o Rio de Janeiro, triunfar nessa até aqui inglória guerra do tráfico e liquidar o espírito mafioso que se estabeleceu.
Nascimento criou-se, em nosso imaginário, como uma mistura de Rambo e Elliot Ness (mais algo como um sociólogo capaz de nos libertar das invencionices de Foucault e outros que envenenam nossos universitários -porque, se nada funciona, a culpa deve ser da cultura, esse veneno).
O que os fãs do capitão Nascimento talvez não tenham notado no filme é que seu herói é mais fracassado do que o Homem-Aranha. Para ser quem é, ele não pode preservar o casamento, ele não tem direito nem sequer à paternidade.
Numa sociedade moral (em que seus princípios se mantenham minimamente coesos), o sujeito que rouba ou que mata é uma anomalia. O policial corrupto é um criminoso. Etc.
O combate ao crime, ao erro, faz parte natural da existência e da cultura (ver os inúmeros filmes policiais).
No Brasil, sabemos que as coisas não funcionam assim, e é nessa medida que os heróis de "Tropa de Elite" aparecem como seres dignos de admiração e imitação. São exemplares, o que não significa que sejamos capazes de imitá-los.
Tudo se passa como se o mundo simbólico, do cinema no caso, não devesse ter relação com o mundo empírico, de tal modo que Nascimento só existe como ser ideal. O sujeito que o evoca, assim como se evoca o Super-Homem, é o mesmo que não admitiria um policial perto de sua filha. O mundo das imagens não é, em definitivo, o mundo real.
Como se nossa experiência cultural conduzisse a um tipo de esquizofrenia, em que nos miramos e de certa forma aspiramos ao heroísmo cultivado pelo cinema americano, mas somos simplesmente incapazes de inserir esse tipo de experiência na nossa vivência cotidiana. Porque Nascimento é tragicamente cortado de sua sociedade.

Em seu mundo
Ainda que vivendo na Tailândia, isolado, ignorado por todos, John Rambo está de certa forma em seu mundo, é capaz de reencontrá-lo. Já o capitão está cortado de seu mundo: o Bope, mais que uma tropa de elite, é um refúgio, um lugar que constrói à sua imagem e semelhança, mas que, para existir, o isola até mesmo da mulher e do filho.
Porque o seu mundo é o da eficiência e de uma lógica simples: se a polícia existe para combater o crime, ela não pode se associar a ele. Mas o capitão vive em um mundo que não foi feito para funcionar. Podemos elogiar ou questionar à vontade seus métodos e idéias.
O problema não está em eventuais virtudes ou defeitos, mas no fato de ambos existirem numa esfera exclusivamente simbólica, a do cinema, como se não concebêssemos mais, como real, outra sociedade que não a do espetáculo.
Esse mundo simbólico que não mantém relação com o real é tão doentio quanto a incapacidade de distinguir os heróis do cinema da vida. Nesse sentido, "Tropa de Elite" é um fenômeno terrivelmente saudável, entre outras porque desvenda alguns dos impasses em que vivemos afundados.


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