São Paulo, domingo, 24 de março de 2002

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Peter Burke

A esfera pública 40 anos depois


As perguntas que Habermas fez sobre como certas estruturas sociais e institucionais encorajaram o debate público foram importantes, mas as respostas que deu e a história que contou foram demasiado simples


Faz apenas 40 anos desde que o jovem Jürgen Habermas, naquele momento um sociólogo de esquerda, ao contrário do filósofo liberal que desde então ele se tornou, publicou um livro chamado "Mudança Estrutural na Esfera Pública" (o título no original alemão era, tipicamente, mais abstrato, "Struktur der Öffentlichkeit" [Estrutura da Esfera Pública"). Nesse livro Habermas definiu essa "esfera pública" como uma zona para "discurso" ou "debate" na qual idéias são exploradas, instituições e políticas, criticadas, e uma "visão pública" pode ser expressa. De acordo com ele, o século 18 foi o período crucial na ascensão de tal esfera, ao menos na Europa. De certo modo isso era algo tradicional de dizer -e de certo modo era novo. Historiadores têm desde há muito tempo escrito sobre a ascensão da "opinião pública" nesse período, associando-a à ascensão dos jornais. Em sua ênfase no pensamento racional e crítico no Iluminismo, assim como em sua insistência na idéia de "público", Habermas estava repetindo ou traduzindo em termos do século 20 aquilo que intelectuais como Diderot, Voltaire e outros filósofos já haviam dito sobre si mesmos no século 18. Pressionando por uma reforma do velho sistema em vez de uma revolução, eles viam seu papel como educacional, no sentido mais amplo possível da palavra "educação". Não é portanto acidente que a frase "public opinion" ou "opinion publique" tenha adquirido uso regular naquele momento, primeiramente em inglês e francês e depois em outras línguas.

Salões e cafés
Entretanto a novidade e a vantagem do novo conceito, "esfera pública" ou "Öffentlichkeit", era que ele não parecia assumir que a totalidade do público tivesse uma mesma mente, mas realçava a idéia de uma arena pública, uma arena de debate e crítica. A segunda característica original do livro de Habermas foi seu realce da contribuição para a discussão de questões públicas por parte de instituições urbanas informais como salões, sociedades de debate e cafés tanto quanto instituições formais como o Parlamento inglês. Como seu contemporâneo Michel Foucault, Habermas tem uma consciência aguda do espaço social, especialmente dos microespaços, um sentido da importância de locais específicos como lugares que encorajam atividades particulares. Nos 40 anos desde que o livro foi publicado, o autor ficou famoso pelo mundo afora e o próprio livro "Mudança Estrutural da Esfera Pública" (ed. Tempo Brasileiro) se tornou assunto de discussões acalorados e de muitas críticas. Por exemplo, Habermas foi acusado de idealizar as instituições de comunicação, em outras palavras, de assumir a racionalidade e também o desinteresse de debates parlamentares ou artigos de jornal e, portanto, de ignorar as maneiras como os diferentes meios de comunicação podem ser -e na verdade frequentemente são- usados como meios de manipular opiniões políticas. Certamente não é acidental que o termo "propaganda" tenha começado a ser usado na França durante a Revolução Francesa para descrever os modos como os partidos políticos, como as igrejas rivais à época da Reforma estavam tentando mudar as crenças das pessoas e de fato convertê-las usando meios não-racionais de persuasão.

Praças de Florença
Alguns historiadores, entre os quais me incluo, acreditam que Habermas começou sua história tarde demais, tratando o século 18 como um início e portanto ignorando, por exemplo, o lugar do debate político nas cidades-Estado italianas dos séculos 14 e 15. Na Florença renascentista, por exemplo, artesãos e donos de lojas participavam até certo ponto do governo da sua cidade, de modo que as discussões na piazza della Signoria podiam ter sérias consequências políticas. As limitações da "esfera pública" dos séculos 18 e 19 também foram apontadas, notadamente a sua virtual exclusão das mulheres. Curiosamente, ao mesmo tempo em que scholars criticavam Habermas e sua noção de uma esfera pública, a queda do Muro de Berlim em 1989 e o consequente colapso de vários regimes comunistas tornaram suas idéias mais tópicas e relevantes do que jamais haviam sido. Russos, poloneses, húngaros, alemães-orientais, romenos, búlgaros e albaneses (para não falar dos estudantes chineses no momento da demonstração na praça Tiananmen) se perguntavam como uma esfera pública ou uma "sociedade civil" poderia ser construída em seus países. Esse novo debate, que não é e não deveria ser confinado à Europa, mas sim conduzido em um nível global, ilumina tanto as forças quanto as fraquezas do estudo de Habermas. As perguntas que Habermas fez sobre os modos como certas estruturas sociais e institucionais encorajaram debate público ou crítica racional foram importantes, mas as respostas que ele deu e a história que ele contou foram demasiado simples. Qual é a alternativa? Em meu ponto de vista, Habermas enganou-se ao assumir que a esfera pública esteja tanto presente em uma sociedade quanto ausente dela, como se os EUA, hoje, tivessem uma esfera pública, enquanto a China e o Afeganistão, não. Afinal, a distinção entre o público e o privado não se faz do mesmo modo e não tem a mesma importância em culturas diferentes. Então poderia ser mais útil e mais iluminador olhar não a simples presença ou ausência de uma esfera pública, mas as diferentes formas que uma esfera pública ou semipública pode tomar e a relativa importância que pode ter em diferentes culturas ou entre diferentes grupos sociais dentro de uma cultura. Na Rússia soviética, por exemplo, onde os jornais, assim como o rádio e a televisão, eram controlados pelo Estado, grupos de dissidentes se encontravam em residências privadas para discutir questões públicas e faziam circular textos em cópias datilografadas ou xerox, a famosa literatura "samizdat". Seus debates eram conduzidos com dificuldade, eram de fato perigosos, mas mesmo assim aconteciam. Novamente, em muitos lugares e períodos, a taverna ou o bar foram locais favoritos para a discussão de questões públicas, ao menos para os homens. Para as mulheres no Mediterrâneo ou, de forma mais geral, no mundo islâmico, os locais tradicionais das discussões (frequentemente repudiadas pelos homens, que as viam como "fofoca") incluem o poço público e os telhados planos das casas em que vizinhas podem trocar notícias e opiniões. Excluídas de uma esfera pública mais formal, as mulheres construíram a sua própria esfera informal. Pode ainda ser verdade quando se diz que as mulheres muçulmanas participam menos de questões públicas do que os homens muçulmanos ou mulheres ocidentais, mas isso não é a mesma coisa que dizer que elas não participam em nada dessas questões.

Os gêneros da esfera
Se nós desejarmos usar o conceito de "esfera pública" mais precisamente, então pode ser útil distinguir entre dois gêneros de esfera. O primeiro, relativamente comum na história, é o que pode ser chamado de esfera pública temporária ou "conjuntural", em outras palavras, um tempo de excitado debate ao qual frequentemente se seguem eventos incomuns.
Na Alemanha da década de 1520, por exemplo, seguindo a revolta de Martinho Lutero contra o papa em nome de uma reforma na igreja, discussões de questões religiosas ocorreram não apenas em cortes e universidades mas também em tavernas e em outros locais públicos, e elas envolveram pessoas comuns, homens e mulheres, camponeses e artesãos, além do clero e da nobreza.
Algo semelhante pôde ser visto e ouvido na Inglaterra nas décadas de 1640 e 1650, quando pessoas comuns participaram de debates e conflitos entre os que apoiavam o rei Carlos 1º e os que apoiavam o Parlamento, e mulheres puderam às vezes ser ouvidas pregando em igrejas e capelas londrinas. Houve uma situação parecida na França durante a Revolução Francesa assim como na Rússia em 1917 ou mesmo no Irã à época da queda do xá. Em todos esses casos houve meses ou mesmo anos de apaixonado debate público no nível da rua, seguido de perda de interesse ou mais frequentemente de tentativas de suprimir a discussão por parte de um novo e inseguro regime. A segunda forma de esfera pública, que não é tão comum na história, é a que pode ser chamada de esfera pública permanente ou "estrutural", com suas próprias instituições.

Panfleto, TV, internet
Elas incluiriam o panfleto político, tão comum na república holandesa do século 17, quando aquela república era a sociedade mais livre e aberta da Europa. Elas incluiriam os jornais e cafés que Habermas se deleitou em enfatizar. Elas também incluiriam o rádio, as redes de televisão, mais importantes hoje do que eram quando ele escrevia em 1962, ou a "esfera pública virtual" da internet, que não era nem mesmo imaginável naquele tempo.
Graças a essas novas instituições, é mais fácil pensar sobre questões públicas em termos globais do que o era 40 anos atrás, e é mais fácil também criticar os pontos de vista de Habermas como demasiado limitados. Mas essas críticas seriam impossíveis se Habermas não houvesse produzido sua formulação original. Nesse sentido nós estamos pensando com ele mesmo quando estamos contra ele, e por essa razão o quadragésimo aniversário de seu estudo merece ser comemorado.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Variedades de História Cultural" (Civilização Brasileira) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Victor Aiello Tsu.

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