São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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O saldo vermelho

GIANCARLO BOSETTI
do "L'Unità"

Há várias semanas sobre a mesa de Norberto Bobbio, entre as revistas e as dezenas de livros espalhados que ele está examinando, está "O Livro Negro do Comunismo", de Courtois, Werth, Panné, Paczowski, Bartosek e Margolin, publicado na Itália pela editora Mondadori -aquele mesmo livro que Berlusconi, ex-primeiro-ministro italiano, distribuiu aos delegados da Aliança Nacional e sobre o qual tanto se discute, seja na Itália ou na França. Agora Bobbio fará seu comentário.
Em 9 de junho de 1989, depois do massacre dos estudantes na Praça Tien An Men, em Pequim, Bobbio escrevera no jornal "La Stampa" um artigo que se tornou famoso: "A Utopia pelo Avesso", cujo subtítulo era "O Que, Afinal, Substituirá o Comunismo?". Nele, a falência do que Marx pensara como a "solução do enigma da história" declarava-se "incontestável"; os "amanhãs que cantam" haviam se transformado em pesadelo orwelliano.
A ênfase porém estava nas angustiadas perguntas dirigidas ao futuro: as democracias vão conseguir enfrentar a "sede de justiça"? Agora "O Livro Negro" solicita outro ponto de vista: o balanço histórico de uma relação implacável entre comunismo e violência, entre marxismo e despotismo. Questões de contabilidade política, criminal, moral. E a comparação com o nazismo.

Pergunta - Ainda tem sentido alguém fazer ou recear a propaganda anticomunista?
Norberto Bobbio -
Em outros países, como os EUA e a Inglaterra, não, mas em um país como a Itália, em que ainda há um partido influente e combativo que se chama Refundação Comunista, e um jornal que, apesar das recentes discussões, ainda não retirou de sua manchete o nome de "diário comunista" ("Il Manifesto"), talvez tenha. Pode ser então que, como tema de propaganda política para o Polo (coalizão de direita) e para a Aliança Nacional (partido neofascista), o anticomunismo renda frutos.
Pergunta - O livro foi pensado na França e não para os italianos.
Bobbio -
É claro que não foi escrito para a Itália, da qual muito pouco se fala, mas sim para o mundo todo, em que o comunismo não desapareceu totalmente, deixando marcas profundas em vários países. Na realidade, seria errôneo considerar este livro enorme, que poucos lerão até o fim, como um livro de propaganda política, ainda que Berlusconi tenha comprado e dado de presente sei lá quantas cópias, para fins publicitários, a pessoas que jamais o lerão. Até para os que não vão lê-lo, este volume espesso vale como meio de propaganda, devido ao seu tamanho e ao seu peso, e não por aquilo que contém.
Pergunta - O ponto crucial é que esta obra se propõe a subverter a "tradicional hierarquia da crueldade".
Bobbio -
Desde as primeiras páginas fica claro que o interesse de Stéphane Courtois é escrever um livro a respeito da dimensão estritamente criminosa do comunismo. O tema de fundo da obra, e das contribuições individuais, é o terror prolongado e ininterrupto como característica essencial da política soviética e, aos poucos, de todos os Estados em que, por revolução interna ou pressão externa, os regimes comunistas foram impostos. Já desde as primeiras páginas aparece a soma dos que morreram assassinados nos Estados comunistas.
Pergunta - São cerca de 85 milhões; comparados com as vítimas do terror nazista, que são 25 milhões, a soma é muito maior.
Bobbio -
Se considerarmos a menor duração do terror nazista em relação ao comunista e também o espaço mais restrito em que o primeiro se exerceu, sempre em comparação com o segundo, as contas se invertem. A razão declarada desta contabilidade é a de acabar, de uma vez por todas, com a distinção, no que diz respeito à amplidão do crime, entre comunismo e nazismo. Haveríamos, talvez, de nos perguntar -e os autores sem dúvida o fazem- por que essa distinção foi feita e, a partir daí, tenha seguido não somente uma atenuação das responsabilidades dos regimes comunistas, mas também uma sobrevivência do comunismo. Tenho, de qualquer modo, motivos de espanto por não ter visto mencionado, em nenhum momento, o excelente e exaustivamente documentado livro de Andrea Kaminski, "Os Campos de Concentração de 1896 aos Dias de Hoje", de 1982, cujo tema principal é a comparação entre os campos de extermínio nazistas e os comunistas.
Pergunta - Para onde nos leva o livro de Kaminski?
Bobbio -
O problema que levanta é o porquê desta diferença, que de fato houve e em parte ainda há, entre nazismo e comunismo. Desnecessário dizer que eu faço esta pergunta a mim mesmo, pois eu também já fiz tal diferença, e mais de uma vez, em declarações públicas que não posso desmentir. Uma das razões, que o próprio Courtois menciona, reside na indiscutível constatação da contribuição da União Soviética -o férreo, terrorista, criminoso Estado liderado por Stálin- para a derrota do nazismo. Reconheço que esta consideração, inegavelmente correta, nos fez esquecer, ou pelo menos nos levou a não avaliar, em toda a sua dramaticidade, que as nações "libertadas" pela União Soviética foram submetidas, anos a fio, a um regime tão totalitário quanto o nazista. Isto sem falar das atrocidades perpetradas pelo Exército soviético quando entrou no território alemão, sobre as quais o historiador Andrea Hillgruber nos fez refletir.
Pergunta - Mas a diferença de tratamento depende somente de um motivo histórico-militar?
Bobbio -
Não, há uma segunda razão, menos persuasiva do que a primeira, para as atenuantes concedidas à União Soviética, pela "intelligentsia" de esquerda, que eu próprio compartilhei, e é de caráter ideológico: o comunismo é um grande ideal que percorre toda a história da humanidade; um grande ideal que, por razões históricas imprevistas e imprevisíveis, não encontrou atuação. O nazismo, ao contrário, é de "per si" -enquanto teoria fundamentada na superioridade de uma raça sobre todas as outras- desde o início teoricamente falsa e moralmente perversa.
Pergunta - Courtois coloca outro problema: o comunismo produziu terror em todo o lugar em que governou, sem exceções.
Bobbio -
Isso mesmo: "Em todo lugar". O que torna este livro diferente dos outros é justamente a constatação de que o comunismo instaurou um regime de terror onde quer que tenha sido imposto. Objeção fácil demais é a que vem de historiadores e políticos que, com ar de superioridade, parecem dizer: "Coisas que todos nós já sabíamos, há um tempão". Fácil demais e frágil demais, pois os autores deste livro não são uns despreparados: absolutamente não desconhecem o que já foi escrito sobre os crimes comunistas.
O que constitui a importância e a novidade do livro reside na ampla dimensão em que se realizou o exame destes regimes de terror. Não sou historiador, mas, para julgar a utilidade e a novidade desta obra, conta o fato de ser a primeira da qual se apreende que não há país onde, depois de instaurado um regime comunista, não tenha sido imposto um sistema de terror.
Podem variar os mecanismos do exercício do terror, a quantidade e a qualidade das vítimas, mas está em todo o lugar, temos que repetir com força, em todo o lugar, a idêntica ferocidade, a arbitrariedade e a enormidade no uso da violência para a manutenção do poder.
Pergunta - Comunismo e despotismo estão ligados sem salvação?
Bobbio -
Este universalismo despótico pertence à própria natureza do comunismo histórico. Se for assim, e o livro oferece uma prova irrefutável de que é assim, não podemos deixar de nos perguntar se a forma despótica do poder não seria congênita à própria essência do comunismo. Os que ainda tentam a sua defesa, podem falar à vontade: "O comunismo histórico foi uma forma degenerativa do comunismo ideal". Mas como é que esta degeneração se deu sempre, e em todo lugar?
Pergunta - Mesmo para Courtois não há uma única resposta, e sim muitas. Vejamos algumas delas.
Bobbio -
A primeira é a que aflora na maioria das justificativas póstumas: a relação entre fins e meios. Se é verdade que a lei suprema da política é aquela segundo a qual o fim justifica os meios ("faça com que um príncipe conserve seu Estado e todos louvarão os seus meios", escreve Maquiavel), quanto mais alto e difícil de alcançar for o fim, tanto mais tende-se a justificar a dureza dos meios. Já em 1920 Trotski dissera que, posta a tarefa da abolição da propriedade individual -coisa que nenhum regime já tentara-, não haveria outro caminho a não ser o de um poder ditatorial. Sobre a necessidade de um regime feroz, nem sequer Lenin tinha dúvidas. Dizia: "A crueldade de nossa vida, imposta pelas circunstâncias, será compreendida e perdoada. Tudo será compreendido. Tudo!".
Pergunta - Também me impressionou essa bela citação. Mas as coisas tomaram rumo diverso.
Bobbio -
A tragédia, nessa história toda, é que o fim, talvez por ser elevado demais, não foi alcançado. Não vamos discutir agora -pois seria totalmente inútil- se aquele fim era humanamente alcançável. O fato é que hoje não só não foi alcançado, mas também o resultado obtido depois de anos de terror foi exatamente o oposto. Raciocinemos um instante: se é verdade que o fim justifica os meios, deriva daí que não alcançar o fim já não permite justificá-los. Os meios então são, em sua factualidade crua, o que são. Se são baixos, baixos continuam sendo. O terror continua sendo terror, e nada mais. Nada de novo sob o sol.


"Os judeus não eram homens para os nazistas; os inimigos de classe não eram homens para os comunistas"

Norberto Bobbio



Pergunta - Como dizia Isaiah Berlin, para uma omelete gigantesca não há limites para o número de ovos que se pode quebrar.
Bobbio -
Isso mesmo. Remeter-se à relação entre meios e fins é uma das tradicionais causas de justificação do mal. O mal com vistas ao bem. Mas, ao lado desta tradicional causa de justificação, o tema da violência total é habitualmente acompanhado pela reflexão sobre a que se poderia chamar, na linguagem do direito penal, uma atenuante: a degradação do inimigo a ser destruído, a não-homem. Este tema é tão óbvio que é relembrado ao se citar o livro de Alain Brossat, que fala de uma verdadeira tradição da animalização do outro, ou de "deriva zoológica". E cita-se Górki, que escreveu: "É absolutamente natural que o poder operário extermine os inimigos como se fossem piolhos".
Pergunta - E isso também vale para o nazismo.
Bobbio -
Sobre este tema a literatura é imensa. Basta lembrar "É Isto um Homem?", de Primo Levi; a população de um campo de extermínio é composta por sub-homens. O mecanismo da ideologia do extermínio consiste exatamente na desumanização: os índios não eram homens para os conquistadores espanhóis, os judeus não eram homens para os nazistas, os inimigos de classe não eram homens para os comunistas: piolhos, justamente, ou então cães raivosos. Domenico Losurdo usa o termo "desespecificação". Repito neste caso também: nada de novo sob sol.
Pergunta - "O Livro Negro" procura colocar em primeiro plano uma explicação histórica do nexo entre comunismo e violência e a encontra no caráter sanguinário da história russa. É convincente?
Bobbio -
A tentativa de explicar historicamente o terror comunista mostra, na pior das hipóteses, que, apesar de todas as críticas avançadas contra o livro pelos mais zelosos guardiões da ortodoxia, trata-se, ainda assim, de um livro de história, ainda que com uma clara finalidade política. A meu ver, porém, ainda mais do que a tradição de violência na história russa, deve ser salientada outra peculiaridade desta história, e que não foi suficientemente considerada: a falta absoluta de uma tradição de pensamento liberal, especialmente de política liberal. Liberalismo significa limites jurídicos do poder estatal, reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, Estado de direito. O contrário do Estado autocrático russo.

"Comparar o nazismo ao comunismo é próprio de um positivismo unidimensional e unilateral"

Eric Hobsbawm



Pergunta - Foi o leninismo que difundiu uma ideologia totalmente falha de anticorpos liberais?
Bobbio -
Na doutrina do Partido Comunista, tal como Lenin a formula, inspirando-se em Marx, não há nenhum traço de Estado de direito. Para Lenin, como para Marx, todos os Estados são ditaduras. As chamadas democracias burguesas também são, na realidade, ditaduras da classe burguesa, seja qual for a forma jurídica -autoritária ou liberal- pela qual se exerce o poder. Fatos notórios. Mas basta folhear o livro aqui e acolá para se dar conta disto. A teoria marxista do Estado é uma teoria do modo como se conquista o poder, não do modo como se o exerce, enquanto que o liberalismo é sobretudo uma teoria do exercício do poder.
Pergunta - Uma outra explicação amplamente retomada por Courtois é a que poderíamos atribuir a Popper, ainda que aqui nunca seja citado: a crítica do historicismo. Quem acredita conhecer as leis da história se desresponsabiliza moralmente, pois pensa que aquele que obsta a história pode e deve ser varrido do mapa.
Bobbio -
É correto chamar a nossa atenção sobre a interpretação de Popper: a história como princípio de legitimação. Ao lado do princípio de legitimação religiosa, moral ou jurídica do poder, a história do pensamento político conhece o critério de legitimação histórica do poder, que tem duas faces diferentes: a legitimação fundamentada na história passada, que é própria do pensamento conservador, e a legitimação por meio da história futura, que é própria do pensamento revolucionário. Neste segundo caso, a história tem a mesma função que a Providência tem no pensamento religioso. Interpretar os desígnios da história dá a mesma força e segurança na ação a ser cumprida aos que crêem estar interpretando o inelutável curso histórico. Não há muita diferença entre proclamar "Deus está conosco", que era o lema do Exército alemão, e "A História está conosco", como sempre disseram e continuarão a dizer os revolucionários de todos os tempos.


Tradução de Roberta Barni.



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