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O saldo vermelho
GIANCARLO BOSETTI
do "L'Unità"
Há várias semanas sobre a mesa
de Norberto Bobbio, entre as revistas e as dezenas de livros espalhados que ele está examinando,
está "O Livro Negro do Comunismo", de Courtois, Werth, Panné,
Paczowski, Bartosek e Margolin,
publicado na Itália pela editora
Mondadori -aquele mesmo livro
que Berlusconi, ex-primeiro-ministro italiano, distribuiu aos delegados da Aliança Nacional e sobre
o qual tanto se discute, seja na Itália ou na França. Agora Bobbio fará seu comentário.
Em 9 de junho de 1989, depois do
massacre dos estudantes na Praça
Tien An Men, em Pequim, Bobbio
escrevera no jornal "La Stampa"
um artigo que se tornou famoso:
"A Utopia pelo Avesso", cujo
subtítulo era "O Que, Afinal,
Substituirá o Comunismo?". Nele, a falência do que Marx pensara
como a "solução do enigma da
história" declarava-se "incontestável"; os "amanhãs que cantam" haviam se transformado em
pesadelo orwelliano.
A ênfase porém estava nas angustiadas perguntas dirigidas ao
futuro: as democracias vão conseguir enfrentar a "sede de justiça"? Agora "O Livro Negro" solicita outro ponto de vista: o balanço histórico de uma relação implacável entre comunismo e violência, entre marxismo e despotismo. Questões de contabilidade política, criminal, moral. E a comparação com o nazismo.
Pergunta - Ainda tem sentido alguém fazer ou recear a propaganda anticomunista?
Norberto Bobbio - Em outros
países, como os EUA e a Inglaterra, não, mas em um país como a
Itália, em que ainda há um partido
influente e combativo que se chama Refundação Comunista, e um
jornal que, apesar das recentes discussões, ainda não retirou de sua
manchete o nome de "diário comunista" ("Il Manifesto"), talvez tenha. Pode ser então que, como tema de propaganda política
para o Polo (coalizão de direita) e
para a Aliança Nacional (partido
neofascista), o anticomunismo
renda frutos.
Pergunta - O livro foi pensado na
França e não para os italianos.
Bobbio - É claro que não foi escrito para a Itália, da qual muito
pouco se fala, mas sim para o
mundo todo, em que o comunismo não desapareceu totalmente,
deixando marcas profundas em
vários países. Na realidade, seria errôneo
considerar este livro
enorme, que poucos
lerão até o fim, como
um livro de propaganda política, ainda que
Berlusconi tenha comprado e dado de presente sei lá quantas cópias, para fins publicitários, a pessoas que
jamais o lerão. Até para
os que não vão lê-lo,
este volume espesso
vale como meio de
propaganda, devido ao
seu tamanho e ao seu
peso, e não por aquilo
que contém.
Pergunta - O ponto
crucial é que esta obra
se propõe a subverter
a "tradicional hierarquia da crueldade".
Bobbio - Desde as
primeiras páginas fica
claro que o interesse de
Stéphane Courtois é
escrever um livro a respeito da dimensão estritamente criminosa
do comunismo. O tema de fundo da obra, e
das contribuições individuais, é o terror prolongado e ininterrupto
como característica essencial da política soviética e, aos poucos,
de todos os Estados em
que, por revolução interna ou pressão externa, os regimes comunistas foram impostos.
Já desde as primeiras
páginas aparece a soma dos que morreram
assassinados nos Estados comunistas.
Pergunta - São cerca
de 85 milhões; comparados com as vítimas
do terror nazista, que
são 25 milhões, a soma é muito
maior.
Bobbio - Se considerarmos a
menor duração do terror nazista
em relação ao comunista e também o espaço mais restrito em que
o primeiro se exerceu, sempre em
comparação com o segundo, as
contas se invertem. A razão declarada desta contabilidade é a de acabar, de uma vez por todas, com a
distinção, no que diz respeito à
amplidão do crime, entre comunismo e nazismo. Haveríamos, talvez, de nos perguntar -e os autores sem dúvida o fazem- por que
essa distinção foi feita e, a partir
daí, tenha seguido não somente
uma atenuação das responsabilidades dos regimes comunistas,
mas também uma sobrevivência
do comunismo. Tenho, de qualquer modo, motivos de espanto
por não ter visto mencionado, em
nenhum momento, o excelente e
exaustivamente documentado livro de Andrea Kaminski, "Os
Campos de Concentração de 1896
aos Dias de Hoje", de 1982, cujo
tema principal é a comparação entre os campos de extermínio nazistas e os comunistas.
Pergunta - Para onde nos leva o
livro de Kaminski?
Bobbio - O problema que levanta é o porquê desta diferença,
que de fato houve e em parte ainda
há, entre nazismo e comunismo.
Desnecessário dizer que eu faço esta pergunta a mim mesmo, pois eu
também já fiz tal diferença, e mais
de uma vez, em declarações públicas que não posso desmentir. Uma
das razões, que o próprio Courtois
menciona, reside na indiscutível
constatação da contribuição da
União Soviética -o férreo, terrorista, criminoso Estado liderado
por Stálin- para a derrota do nazismo. Reconheço que esta consideração, inegavelmente correta,
nos fez esquecer, ou pelo menos
nos levou a não avaliar, em toda a
sua dramaticidade, que as nações
"libertadas" pela União Soviética
foram submetidas, anos a fio, a um
regime tão totalitário quanto o nazista. Isto sem falar das
atrocidades perpetradas pelo Exército soviético quando entrou
no território alemão,
sobre as quais o historiador Andrea Hillgruber nos fez refletir.
Pergunta - Mas a diferença de tratamento
depende somente de
um motivo histórico-militar?
Bobbio - Não, há
uma segunda razão,
menos persuasiva do
que a primeira, para as
atenuantes concedidas
à União Soviética, pela
"intelligentsia" de esquerda, que eu próprio
compartilhei, e é de caráter ideológico: o comunismo é um grande
ideal que percorre toda
a história da humanidade; um grande ideal
que, por razões históricas imprevistas e imprevisíveis, não encontrou atuação. O nazismo, ao contrário, é
de "per si" -enquanto teoria fundamentada na superioridade de uma raça sobre todas as outras-
desde o início teoricamente falsa e moralmente perversa.
Pergunta - Courtois
coloca outro problema: o comunismo produziu terror em todo o
lugar em que governou, sem exceções.
Bobbio - Isso mesmo: "Em todo lugar".
O que torna este livro
diferente dos outros é
justamente a constatação de que o comunismo instaurou um regime de terror onde quer
que tenha sido imposto. Objeção
fácil demais é a que vem de historiadores e políticos que, com ar de
superioridade, parecem dizer:
"Coisas que todos nós já sabíamos, há um tempão". Fácil demais e frágil demais, pois os autores deste livro não são uns despreparados: absolutamente não desconhecem o que já foi escrito sobre
os crimes comunistas.
O que constitui a importância e a
novidade do livro reside na ampla
dimensão em que se realizou o
exame destes regimes de terror.
Não sou historiador, mas, para julgar a utilidade e a novidade desta
obra, conta o fato de ser a primeira
da qual se apreende que não há
país onde, depois de instaurado
um regime comunista, não tenha
sido imposto um sistema de terror.
Podem variar os mecanismos do
exercício do terror, a quantidade e
a qualidade das vítimas, mas está
em todo o lugar, temos que repetir
com força, em todo o lugar, a idêntica ferocidade, a arbitrariedade e a
enormidade no uso da violência
para a manutenção do poder.
Pergunta - Comunismo e despotismo estão ligados sem salvação?
Bobbio - Este universalismo
despótico pertence à própria natureza do comunismo histórico. Se
for assim, e o livro oferece uma
prova irrefutável de que é assim,
não podemos deixar de nos perguntar se a forma despótica do poder não seria congênita à própria
essência do comunismo. Os que
ainda tentam a sua defesa, podem
falar à vontade: "O comunismo
histórico foi uma forma degenerativa do comunismo ideal". Mas
como é que esta degeneração se
deu sempre, e em todo lugar?
Pergunta - Mesmo para Courtois
não há uma única resposta, e sim
muitas. Vejamos algumas delas.
Bobbio - A primeira é a que
aflora na maioria das justificativas
póstumas: a relação entre fins e
meios. Se é verdade que a lei suprema da política é aquela segundo a
qual o fim justifica os meios ("faça
com que um príncipe conserve seu
Estado e todos louvarão os seus
meios", escreve Maquiavel),
quanto mais alto e difícil de alcançar for o fim, tanto mais tende-se a
justificar a dureza dos meios. Já em
1920 Trotski dissera que, posta a
tarefa da abolição da propriedade
individual -coisa que nenhum
regime já tentara-, não haveria
outro caminho a não ser o de um
poder ditatorial. Sobre a necessidade de um regime feroz, nem sequer Lenin tinha dúvidas. Dizia:
"A crueldade de nossa vida, imposta pelas circunstâncias, será
compreendida e perdoada. Tudo
será compreendido. Tudo!".
Pergunta - Também me impressionou essa bela citação. Mas as
coisas tomaram rumo diverso.
Bobbio - A tragédia, nessa história toda, é que o fim, talvez por
ser elevado demais, não foi alcançado. Não vamos discutir agora
-pois seria totalmente inútil- se
aquele fim era humanamente alcançável. O fato é que hoje não só
não foi alcançado, mas também o
resultado obtido depois de anos de
terror foi exatamente o oposto.
Raciocinemos um instante: se é
verdade que o fim justifica os
meios, deriva daí que não alcançar
o fim já não permite justificá-los.
Os meios então são, em sua factualidade crua, o que são. Se são baixos, baixos continuam sendo. O
terror continua sendo terror, e nada mais. Nada de novo sob o sol.
"Os judeus
não eram
homens para
os nazistas; os
inimigos de
classe não eram
homens para os
comunistas"
Norberto Bobbio
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Pergunta - Como dizia Isaiah Berlin, para uma omelete gigantesca não há limites para o número de ovos que se pode quebrar.
Bobbio - Isso mesmo. Remeter-se à relação entre meios e fins é uma das tradicionais causas de justificação do mal. O mal com vistas ao bem. Mas, ao lado desta tradicional causa de justificação, o tema da violência total é habitualmente acompanhado pela reflexão sobre a que se poderia chamar, na linguagem do direito penal, uma atenuante: a degradação do inimigo a ser destruído, a não-homem. Este tema é tão óbvio que é relembrado ao se citar o livro de Alain Brossat, que fala de uma verdadeira tradição da animalização do outro, ou de "deriva zoológica". E cita-se Górki, que escreveu: "É absolutamente natural que o poder operário extermine os inimigos como se fossem piolhos".
Pergunta - E isso também vale para o nazismo.
Bobbio - Sobre este tema a literatura é imensa. Basta lembrar "É Isto um Homem?", de Primo Levi; a população de um campo de extermínio é composta por sub-homens. O mecanismo da ideologia do extermínio consiste exatamente na desumanização: os índios não eram homens para os conquistadores espanhóis, os judeus não eram homens para os nazistas, os inimigos de classe não eram homens para os comunistas: piolhos, justamente, ou então cães raivosos. Domenico Losurdo usa o termo "desespecificação". Repito neste caso também: nada de novo sob sol.
Pergunta - "O Livro Negro" procura colocar em primeiro plano uma explicação histórica do nexo entre comunismo e violência e a encontra no caráter sanguinário da história russa. É convincente?
Bobbio - A tentativa de explicar historicamente o terror comunista mostra, na pior das hipóteses, que, apesar de todas as críticas avançadas contra o livro pelos mais zelosos guardiões da ortodoxia, trata-se, ainda assim, de um livro de história, ainda que com uma clara finalidade política. A meu ver, porém, ainda mais do que a tradição de violência na história russa, deve ser salientada outra peculiaridade desta história, e que não foi suficientemente considerada: a falta absoluta de uma tradição de pensamento liberal, especialmente de política liberal. Liberalismo significa limites jurídicos do poder estatal, reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão, Estado de direito. O contrário do Estado autocrático russo.
"Comparar o
nazismo ao
comunismo é
próprio de um
positivismo
unidimensional
e unilateral"
Eric Hobsbawm
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Pergunta - Foi o leninismo que difundiu uma ideologia totalmente falha de anticorpos liberais?
Bobbio - Na doutrina do Partido Comunista, tal como Lenin a formula, inspirando-se em Marx, não há nenhum traço de Estado de direito. Para Lenin, como para Marx, todos os Estados são ditaduras. As chamadas democracias burguesas também são, na realidade, ditaduras da classe burguesa, seja qual for a forma jurídica -autoritária ou liberal- pela qual se exerce o poder. Fatos notórios. Mas basta folhear o livro aqui e acolá para se dar conta disto. A teoria marxista do Estado é uma teoria do modo como se conquista o poder, não do modo como se o exerce, enquanto que o liberalismo é sobretudo uma teoria do exercício do poder.
Pergunta - Uma outra explicação amplamente retomada por Courtois é a que poderíamos atribuir a Popper, ainda que aqui nunca seja citado: a crítica do historicismo. Quem acredita conhecer as leis da história se desresponsabiliza moralmente, pois pensa que aquele que obsta a história pode e deve ser varrido do mapa.
Bobbio - É correto chamar a nossa atenção sobre a interpretação de Popper: a história como princípio de legitimação. Ao lado do princípio de legitimação religiosa, moral ou jurídica do poder, a história do pensamento político conhece o critério de legitimação histórica do poder, que tem duas faces diferentes: a legitimação fundamentada na história passada, que é própria do pensamento conservador, e a legitimação por meio da história futura, que é própria do pensamento revolucionário. Neste segundo caso, a história tem a mesma função que a Providência tem no pensamento religioso. Interpretar os desígnios da história dá a mesma força e segurança na ação a ser cumprida aos que crêem estar interpretando o inelutável curso histórico. Não há muita diferença entre proclamar "Deus está conosco", que era o lema do Exército alemão, e "A História está conosco", como sempre disseram e continuarão a dizer os revolucionários de todos os tempos.
Tradução de Roberta Barni.
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