São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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A diferença do Holocausto

Associated Press - 1º.ago.97
Cambojano em antigo campo de extermínio do Khmer Vermelho em Tonle Battye, no Camboja


Do "L'Unità"

Eric Hobsbawm acabou de ler, no percurso entre Londres e sua casa no campo, "O Livro Negro do Comunismo", de Courtois, Werth e outros. Este octogenário, aclamado escritor de livros de história, sabe que estão querendo pegá-lo: antes de mais nada, ele é do ofício, tem uma poderosa produção, coroada por um best seller mundial, "A Era dos Extremos" (Companhia das Letras); em segundo lugar foi comunista, e tendo detestado a vida toda o zelo anticomunista dos "ex", observa incomodado as conversões repentinas, seguidas de campanhas de signo oposto e de intensidade amiúde proporcional ao dogmatismo anterior.
Por outro lado, carregou com decência, ao longo dos anos, a qualificação de "comunista", junto a um partido minoritário, o British Communist Party. É bom lembrar que Hobsbawm, em 1956, foi afastado do Partido Comunista, durante um certo período, por causa de suas críticas à repressão russa em Budapeste.

Pergunta - O que o sr. acha de "O Livro Negro do Comunismo": propaganda política ou pesquisa histórica?
Eric Hobsbawm -
Antes de mais nada, nós que fomos comunistas na época de Stálin temos o dever de estarmos conscientes das coisas terríveis que foram feitas na União Soviética e, em menor grau e por tempos mais breves, nos outros Estados do que se denominava "socialismo real". Não há como minimizar tais horrores. E o mesmo seja dito da China de Mao e do comunismo asiático.
Pergunta - Isto não lhe impede de julgar um livro de história.
Hobsbawm -
Não quero entrar no mérito das estatísticas citadas por este "Livro Negro" e criticá-las. Talvez sejam exageradas por motivos políticos, mas não cabe a pessoas como eu, que tiveram uma ligação de solidariedade com o projeto político comunista, corrigir esta contabilidade. Por outro lado, mesmo que as cifras caíssem para a metade, ainda seriam moralmente inaceitáveis.
Pergunta - Fale mais sobre isso, como professor de história.
Hobsbawm -
Para começar, diria que esta não é uma história do comunismo, mas um catálogo de suas violências. Há, ainda, em seu interior, trabalhos de níveis variados; por exemplo, a parte sobre a União Soviética, de Werth, e a de Margolin, sobre a China, são mais sérias do que outras. Há uma redução de perspectiva muito limitadora, não só para o comunismo, mas para o século como um todo, em que, por decisão humana, se deixou que morressem ou fossem mortos centenas de milhares de indivíduos, em praticamente todas as partes do mundo. Um calvário que ainda não terminou. Mas a história do século 20 não pode ser limitada à lista de seus sofrimentos.
Pergunta - Um dos aspectos centrais do livro está na intenção declarada de remover uma "hierarquia da crueldade", que faz com que os crimes do nazismo sejam considerados piores que os do comunismo.
Hobsbawm -
Não concordo com Bobbio. Precisamente esta abordagem não me parece ser a de uma análise histórica. O comunismo ou o nazismo, como outro sistema qualquer, não podem ser comparados e definidos unicamente numa única dimensão, a de quantas pessoas foram mortas. Estes são tipos de comparações próprias de um positivismo unilateral e unidimensional. Claro, como comunista, não apreciaria uma prova de que não há diferença entre nazismo e comunismo. Mas o fato é que não vejo aqui as bases desta demonstração. Percebo a volta de uma abordagem ideológica, de Guerra Fria: democracia contra totalitarismos. O que entra em contradição com o fato de que, na fase central deste século, determinou-se uma aliança entre as democracias, as verdadeiras, e a União Soviética, contra o nazismo.
Pergunta - O sr. está dizendo que a aliança das democracias contra o nazismo não foi casual. Mas não poderia ter sido diferente? Bem que houve algumas tentações de uma união com Hitler contra o comunismo.
Hobsbawm -
Todos procuraram se aliar ou se ajeitar com o fascismo, mas não deu certo. Muitos obstáculos também impediam uma aliança entre democracia e comunismo, mas o fascismo era um perigo, grave para ambas as partes, e seus princípios absolutamente inaceitáveis para as duas. A aliança, portanto, tinha a sua lógica.
Pergunta - Não há nada de interessante então no "Livro Negro"?
Hobsbawm -
Tem uma coisa interessante. O livro corrige, sob um certo aspecto, a argumentação clássica da Guerra Fria. A velha teoria tinha três pontos: (1) o comunismo é, em seus fundamentos, um projeto terrorista; (2) este elemento é, desde o início, central em qualquer grande revolução, dos jacobinos a Marx, até Lenin, Stálin e Mao; (3) ele não pode mudar. É o próprio Courtois quem abandona a continuidade lógica entre o terror jacobino, Marx e Outubro. O marxismo não é tratado como a raiz necessária de Lenin. E depois resulta que o caráter terrorista do comunismo é muito mais flexível, variável, do que a velha teoria sustentava. O terror total do stalinismo aplica-se aos 40 anos iniciais da história da URSS (inclusive a Lenin); os 40 anos seguintes são diferentes, o terror diminui sensivelmente. A URSS de Brejnev não pode ser julgada como a de Stálin ou a Hungria de Kadar como a de Rakosi. Isto é dito pelo livro.
Pergunta - O sr. viu a citação de Lenin: "A crueldade de nossa vida, imposta pelas circunstâncias, será compreendida e perdoada. Tudo será compreendido. Tudo!". Que sensação lhe provoca agora, quando nada mais é perdoado aos comunistas?
Hobsbawm -
Nós não sabemos o que vai ser entendido daqui a 50, 100 anos. Não existe um julgamento definitivo e permanente da história. O julgamento é variável, em função dos momentos. Observe o que aconteceu há seis, sete anos, quando se deram os 500 anos do desembarque de Colombo: um florescer de intervenções contra os crimes da conquista européia das Américas. Tudo verdadeiro, mas naquelas campanhas o elemento histórico era secundário em relação à atualidade das batalhas políticas.
Pergunta - O sr. considera provada, pelos fatos aqui descritos, a falência do comunismo?
Hobsbawm -
O fato é que a falência do comunismo não se prova por seus massacres, porque todos estes países, mesmo a China depois da morte de Mao, tinham deixado de lado os métodos da época negra. A falência do comunismo dependeu de muitos outros fatores e se deu quando aqueles massacres estavam distantes no tempo.
Pergunta - O sr. não era um comunista ortodoxo; em 1956, tomou uma posição herética sobre a questão de Budapeste. Agora tem ânimo de reconhecer as razões do anticomunismo liberal?
Resposta -
Nunca me deixei convencer pelo anticomunismo liberal, mesmo criticando o stalinismo -se o senhor quiser- de um ponto de vista liberal. O fato é que eu também estava disposto a aceitar coisas negativas do stalinismo, especialmente durante a luta contra o nazismo.
Pergunta - O sr. viu as citações de um intelectual como Gorki sobre os inimigos de classe a serem mortos como "piolhos"?
Resposta -
No entanto, veja, é justamente Gorki que, no início da revolução, criticava Lenin e os bolcheviques muito duramente. Foi a última voz da oposição de esquerda na Rússia soviética. O problema é justamente este: por que pessoas como Gorki se deixaram integrar ao regime soviético, mesmo tendo visto todo o tipo de crueldade, e Gorki melhor do que os outros, exatamente por tê-las criticado. Isto aconteceu porque a União Soviética não pode ser definida somente como sistema de terror. Havia o sonho de uma sociedade igualitária. Havia tudo aquilo que, no passado, atraiu as pessoas para o socialismo e o comunismo.
Pergunta - E hoje o sonho já não existe.
Resposta -
Mas será possível o mundo prosseguir sem o sonho da utopia? Eu afirmo que a tradição socialista, comunista, de Marx teve duas ramificações derivadas. Uma foi a do socialismo soviético, que vingou extraordinariamente torta por causa da situação russa. Não havia nenhuma condição para o seu sucesso. A outra ramificação era a da tradição social-democrática de Kautsky. Estas duas derivações são ambas legítimas, são filhas do iluminismo, da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Por causa da hegemonia ideológica e militar soviética, a primeira ramificação foi imposta aos únicos Estados que se denominavam socialistas.
Pergunta - Um artigo do historiador Martin Malia no "Times Literary Supplement" sobre o "Livro Negro" termina citando a anedota de um jornalista, dirigida aos russos depois da queda: "Obrigado por terem tentado!". Uma anedota que ninguém pode imaginar para os nazistas.
Resposta -
Courtois quer fazer equivaler o massacre dos gulags e o genocídio dos judeus, ao dizer que a raiz intelectual do comunismo foi o social-darwinismo. Não é verdade. Pode-se e deve-se criticar o comunismo. Mas não se pode criticá-lo e julgá-lo do mesmo modo que o nazismo.
Giancarlo Bosetti


Tradução de Roberta Barni.



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