São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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Bagunçando a Rússia


Economistas de Harvard ajudam oligarquia corrupta a enriquecer


JANINE R. WEDEL
da "The Nation"

Após sete anos de "reforma" econômica financiada por bilhões de dólares em ajuda dos EUA e outras fontes ocidentais, empréstimos subsidiados e reescalonamento de sua dívida, a maioria da população russa se encontra em situação econômica pior do que a anterior. O programa de privatizações que supostamente iria colher os frutos do mercado livre ajudou, em lugar disso, a criar um sistema de capitalismo de magnatas, operado em benefício de uma oligarquia política corrupta que se apropriou de centenas de milhões de dólares de ajuda ocidental e saqueou a riqueza nacional.
O arquiteto das privatizações foi o ex-vice-primeiro-ministro Anatoli Chubais, o queridinho dos establishments financeiros norte-americano e ocidentais. A administração drástica e corrupta de Chubais o tornou extremamente impopular. Segundo o "The New York Times", ele "talvez seja o homem mais odiado da Rússia".
Um elemento essencial da implementação das políticas de Chubais foi o apoio entusiástico que teve da administração Clinton e de seu representante-chave na assistência econômica em Moscou, o Instituto Harvard de Desenvolvimento Internacional (Harvard Institute for International Development ou HIID). Utilizando-se do prestígio associado ao nome Harvard e das conexões do instituto com o governo norte-americano, representantes do HIID conseguiram uma virtual carta branca para controlar o programa de assistência econômica norte-americana à Rússia, com supervisão mínima dos órgãos governamentais envolvidos. Com esse acesso e a aliança estreita com Chubais e seu círculo, eles teriam, segundo algumas alegações, lucrado pessoalmente também. No entanto, poucos americanos estão cientes do papel desempenhado pelo HIID no programa russo de privatizações, como tampouco do mau uso que -suspeita-se- ele tenha feito do dinheiro dos contribuintes.
No recente Simpósio EUA-Rússia de Investimentos, que teve lugar na Escola John F. Kennedy de Governo da Universidade de Harvard, o prefeito de Moscou, Iuri Luzhkov, fez o que para muitos dos presentes pode ter soado como referências descorteses a seus anfitriões. Depois de fustigar Chubais e sua política monetarista, Luzhkov, segundo um relato do evento, "identificou Harvard como a culpada pelo mal causado à economia russa por seus assessores, que incentivaram a abordagem incorreta de Chubais à privatização e ao monetarismo".
Luzhkov se referia ao HIID. Chubais, a quem Boris Ieltsin delegou poderes enormes sobre a economia nacional, foi derrubado no expurgo que Ieltsin promoveu em março passado, mas em maio foi indicado para o cargo imensamente lucrativo de chefe do Sistema Energético Unificado, a companhia que detém o monopólio sobre a eletricidade nacional. Alguns dos principais atores do projeto russo de Harvard ainda não tiveram que arcar com as consequências de seus atos, mas essa situação poderá mudar se a investigação que está sendo realizada pelo governo americano resultar em processos.
As atividades do HIID na Rússia oferecem algumas lições acauteladoras quanto ao abuso de confiança por parte de assessores estrangeiros supostamente desinteressados, a arrogância norte-americana e toda a política de apoio a um grupo russo único de chamados reformistas. A história do HIID é uma instância já familiar na saga contínua dos desastres da política externa norte-americana, provocados por aqueles que são vistos como "os melhores e mais inteligentes de nosso país".
Durante o final do verão e o outono de 1991, enquanto a República Soviética desabava, o professor de Harvard Jeffrey Sachs e outros economistas ocidentais participaram de reuniões promovidas numa casa de campo nos arredores de Moscou, onde jovens reformadores pró-Ieltsin planejavam o futuro econômico e político da Rússia.
Sachs juntou-se a Iegor Gaidar, o primeiro arquiteto da reforma econômica escolhido por Ieltsin, para promover um plano de "terapia de choque" a fim de eliminar rapidamente a maioria dos subsídios e dos controles sobre os preços que formavam a base da vida dos cidadãos soviéticos havia décadas. A terapia de choque gerou mais choque -entre outros, uma hiperinflação que atingiu os 2.500%- do que terapia. Um resultado dela foi a evaporação de um grande capital de investimento potencial: a substancial poupança dos cidadãos russos. Em novembro de 1992 Gaidar já era criticado pelo fracasso de suas políticas e, pouco tempo depois, foi demitido. Quando Gaidar começou a ser atacado, Sachs escreveu um memorando a um de seus principais adversários, Ruslan Khasbulatov, presidente do Soviete Supremo, o Parlamento russo da época, oferecendo conselhos e ajuda para arranjar assistência ocidental e contatos no Congresso dos EUA.
É nesse momento que entra em cena Anatoli Chubais, o sofisticado capitalista de 42 anos, fluente no inglês, que iria tornar-se o czar econômico de Ieltsin. Comprometido com a "reforma radical", Chubais jurou construir uma economia de mercado e acabar com os últimos vestígios de comunismo no país. A Agência Norte-americana de Desenvolvimento Internacional (Usaid), sem experiência na ex-União Soviética, foi facilmente persuadida a entregar a responsabilidade de remodelar a economia russa ao HIID, fundado em 1974 para ajudar países a empreender reformas econômicas e sociais.
O HIID tem defensores em altos cargos da administração nacional. Um deles era Lawrence Summers, ele próprio ex-professor de economia em Harvard, a quem Clinton nomeou subsecretário do Tesouro para Assuntos Internacionais, em 1993. Summers, agora vice-secretário do Tesouro, tinha vínculos de longa data com os principais participantes no projeto de Harvard na Rússia e seu projeto posterior na Ucrânia.
O HIID recebeu suas primeiras doações do Usaid para trabalhos na Rússia em 1992, durante a administração Bush. Durante os quatro anos seguintes, com o endosso da administração Clinton, o instituto receberia US$ 57,7 milhões, dos quais apenas US$ 17,4 milhões concedidos após licitação. Em junho de 1994, por exemplo, representantes da administração assinaram um vale com o qual o HIID podia receber US$ 20 milhões para seu programa de reforma jurídica na Rússia. A aprovação de uma quantia tão alta sob a forma de "emenda" não competitiva a uma doação muito menor (a doação inicial que o instituto recebeu em 1992 foi de US$ 2,1 milhões) foi extremamente incomum, assim como o foi a citação feita de supostas considerações de política externa oferecidas como justificativa do vale.
Apesar disso, porém, o vale recebeu o endosso de cinco órgãos do governo norte-americano, incluindo o Departamento do Tesouro e o Conselho Nacional de Segurança, dois dos principais órgãos que formulam a política americana de ajuda à Rússia. Além dos milhões recebidos diretamente, o HIID ajudou a dirigir e coordenar cerca de US$ 300 milhões em repasses do Usaid a outras empresas.
Quando o governo russo encabeçado por Ieltsin assumiu o patrimônio soviético, no final de 1991 e início de 1992, foram aventados vários esquemas de privatização. Aquele que o Soviete Supremo aprovou, em 1992, foi estruturado de maneira a impedir a ocorrência de corrupção, mas o programa que Chubais acabou implementando em lugar dele encoraja o acúmulo de propriedade em poucas mãos, abrindo caminho para a corrupção ampla e irrestrita. O programa provocou tanta controvérsia que Chubais acabou tendo que depender em grande medida dos decretos presidenciais de Ieltsin para sua implementação, sem a aprovação do Parlamento. Muitos altos funcionários americanos defenderam esse "modus operandi" ditatorial. Nas palavras de Walter Coles, membro do Usaid e um dos primeiros defensores do programa de privatizações de Chubais, "quando precisávamos de um decreto, Chubais não precisava percorrer a burocracia toda para consegui-lo".
Com a ajuda de seus assessores do HIID e outros ocidentais, Chubais e seus aliados montaram uma rede de organizações "privadas", financiadas pela assistência, com as quais puderam passar ao largo dos organismos governamentais legítimos e do novo Parlamento da Federação Russa, a Duma. Por meio dessa rede, dois dos associados de Chubais, Maxim Boyoko (que co-escreveu "Privatizing Russia" com Andrei Shleifer) e Dmitri Vasiliev, supervisionaram quase um terço de um US$ 1 bilhão em dinheiro da ajuda e outros milhões em empréstimos concedidos por instituições financeiras internacionais.
Boa parte desse dinheiro passou pelo Centro Russo de Privatizações (CRP), sediado em Moscou. Fundado em 1992 sob a direção de Chubais, que era presidente de seu conselho de direção, e de Boyoko, que foi seu executivo-chefe durante a maior parte de sua existência, o CRP era legalmente uma organização não-governamental privada e sem fins lucrativos. Na realidade, foi criado por mais um decreto de Ieltsin e ajudava a implementar a política governamental de inflação e outras questões macroeconômicas, além de negociar empréstimos com instituições financeiras internacionais.
O HIID também foi fundador do CRP, e Andrei Shleifer integrou seu conselho de diretores. Seus outros membros foram recrutados por Chubais, segundo Ira Lieberman, alto executivo do departamento de desenvolvimento do setor privado do Banco Mundial e que ajudou a criar o CRP. Com a ajuda do HIID, o CRP recebeu cerca de US$ 45 milhões do Usaid e outros milhões de dólares da União Européia, de governos europeus individuais, do Japão e de outros países, além de empréstimos do Banco Mundial (US$ 59 milhões) e do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (US$ 43 milhões), empréstimos estes que terão que ser pagos pela população russa. Um resultado desse financiamento foi o enriquecimento político e financeiro de Chubais e seus aliados.
O HIID ajudou a criar várias outras instituições financiadas pela ajuda internacional. Uma delas foi a Comissão Federal de Valores, órgão grosso modo equivalente à Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission - SEC) dos EUA. Esta também foi criada por decreto presidencial, e dirigida por Dmitri Vasiliev, protegido de Chubais. A comissão tinha financiamento e poderes de implementação muitos restritos, mas a Usaid fornecia o dinheiro por meio de duas instituições criadas em Harvard e dirigidas por Hay, Vasiliev e os outros integrantes do círculo Harvard-Chubais.
Uma delas era o Instituto de Economia Baseada no Direito, financiado pelo Banco Mundial e o Usaid. Esse instituto, criado para ajudar a desenvolver uma estrutura jurídica e regulatória para os mercados, chegou a redigir decretos para o governo russo e recebeu quase US$ 20 milhões do Usaid. Em agosto passado seus diretores russos foram flagrados retirando equipamentos no valor de US$ 500 mil do escritório do instituto em Moscou. Os equipamentos só foram devolvidos após semanas de pressão norte-americana. Quando auditores do escritório do inspetor geral da Usaid procuraram registros e documentos relativos às operações do instituto, este se negou a entregá-los.
Contra o pano de fundo do capitalismo russo no estilo "corrida ao ouro", que Chubais e sua equipe estavam supostamente regulamentando e ajudando a criar, os assessores do HIID exploraram os vínculos estreitos que mantinham com Chubais e o governo e puderam, segundo denúncias, conduzir atividades comerciais para seu enriquecimento pessoal. Segundo fontes próximas à investigação do governo norte-americano, Hay teria utilizado a influência que exercia, além de recursos financiados pelo Usaid, para ajudar sua namorada, Elizabeth Hebert, a criar um fundo mútuo na Rússia, o Pallada Asset Management. O Pallada tornou-se o primeiro fundo mútuo a ser licenciado pela Comissão Federal de Valores dirigida por Vasiliev. Vasiliev aprovou o fundo antes mesmo do Credit Suisse, First Boston e Pioneer First Voucher, instituições financeiras muito maiores e mais respeitadas.
Anne Williamson, jornalista especializada em assuntos russos e soviéticos, detalha esses e outros conflitos de interesses entre os assessores do HIID e seus supostos clientes -a população russa- em seu livro a ser lançado em breve, "How America Built the New Russian Oligarchy" (Como os EUA Construíram a Nova Oligarquia Russa). Por exemplo, em 1995, em leilões de importantes propriedades nacionais (conhecidos como empréstimos-contra-ações) organizados por Chubais, a Harvard Management Company (HMC), que investe a dotação da universidade, e o especulador bilionário George Soros foram as únicas entidades estrangeiras cuja participação foi permitida. A HMC e Soros se tornaram acionistas importantes na Novolipetsk, a segunda maior siderúrgica russa, e na Sidanko Oil, cujas reservas são superiores às da Mobil. A HMC e Soros também investiram no mercado russo de obrigações, subsidiado pelo FMI e altamente rentável.
Apesar da exposição dessa corrupção toda na mídia russa (e, de maneira muito menos contundente, na americana), a claque HID-Chubais continuou até pouco tempo atrás atuando como principal instrumento da política norte-americana de assistência à Rússia. Chegou até a utilizar a Comissão Gore-Chernomyrdin, de alto nível, que ajudou a orquestrar a cooperação de transações petrolíferas EUA-Rússia e da estação espacial Mir. O agora extinto Fórum de Mercados de Capital dessa comissão era presidido, do lado russo, por Chubais e Vasiliev, e do lado americano por Arthur Levitt Jr., presidente do SEC, e Robert Rubin, secretário do Tesouro. Andrei Shleifer foi nomeado coordenador especial de todos os quatro subgrupos operacionais do Fórum de Mercados de Capital.
Na verdade, os projetos do HIID nunca foram adequadamente fiscalizados pelo Usaid. Em 1996, um relatório do Escritório Geral de Contabilidade qualificou como "frouxa" a administração e supervisão do HIID por parte do Usaid. No início de 1997, o inspetor geral do Usaid recebeu documentos incriminatórios relativos às atividades do HIID na Rússia e começou a investigar o assunto. Em maio, Shleifer e Hay perderam seus projetos quando a agência revogou a maior parte dos US$ 14 milhões ainda previstos para serem repassados ao HIID, citando evidências de que os dois administradores estariam envolvidos em atividades "visando lucro particular". Alegou-se que os dois haviam utilizado seus cargos para lucrar com investimentos feitos nos mercados russos de valores mobiliários e outros empreendimentos particulares.
Durante os cinco anos em que o grupinho de Chubais presidiu a política e ajuda econômica ocidental à Rússia, ele causou danos tremendos ao país. Pelo fato de darem apoio incondicional a Chubais e seus associados, os agentes de Harvard, seus patronos no governo norte-americano e os doadores ocidentais podem ter reforçado o novo sistema oligárquico pós-soviético. Shleifer praticamente o reconheceu em "Privatizing Russia", o livro que escreveu em conjunto com Maxim Boyoko, associado de Chubais e que, posteriormente, seria flagrado com este em outro ato de indiscrição financeira, que envolveu a aceitação de um "suborno velado" sob a forma de adiantamentos pagos para um livro sobre a história das privatizações russas. Dizem eles: "A ajuda pode alterar o equilíbrio político, ajudando explicitamente os reformistas de livre mercado a derrotar seus adversários".
Richard Morningstar, coordenador da ajuda norte-americana à ex-União Soviética, defende essa abordagem: "Se não houvéssemos estado lá para conceder financiamentos a Chubais, será que poderíamos haver ganho a batalha de realização das privatizações? Provavelmente não. Quando se fala de algumas centenas de milhões de dólares, não se vai transformar o país, mas pode-se prover uma ajuda dirigida a ajudar Chubais".
A política norte-americana para a Rússia requer uma investigação rigorosa do Congresso. O Escritório Geral de Contabilidade realmente investigou os projetos russo e ucraniano do HIID em 1996, mas suas descobertas foram em grande medida suprimidas por sua direção tímida. A equipe responsável pela auditoria concluiu, por exemplo, que o governo americano havia exercido "favoritismo" em relação a Harvard, mas essa conclusão e a documentação que a comprovava foram retiradas do relatório final.
No outono passado, o Congresso pediu ao Escritório Geral de Contabilidade que investigasse os programas de ajuda à Europa oriental e o papel de Shleifer na Comissão Gore-Chernomyrdin. Perguntas desse tipo não precisam ser respondidas, mas qualquer inquérito sério precisa ultrapassar o âmbito da corrupção individual e investigar como a política norte-americana, utilizando dezenas de milhões de dólares dos contribuintes, ajudou a deturpar a democracia e as reformas econômicas na Rússia e a criar uma oligarquia que hoje atua sem freios.


Janine R. Wedel é antropóloga, professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Europeus, Russos e Eurasianos da Universidade George Washington. Seu novo livro, "Collision and Collusion - The Strange Case of Western Aid to Eastern Europe 1989-1998", será publicado pela St. Martin's neste ano. O artigo acima foi extraído de uma reportagem maior publicada na "The Nation" deste mês.
Tradução de Clara Allain



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