São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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O beco sem saída do socialismo


Leia texto inédito em que Che Guevara critica a política na URSS


CHE GUEVARA


E nós preocupados já não somente com o socialismo. Além disso, estabelecemos, creio que pela primeira vez no mundo -podemos dizê-lo sem que soe petulante-, um sistema marxista, socialista congruente ou aproximadamente congruente, no qual se coloca o homem no centro, se fala do indivíduo, se fala do homem e da importância que tem como fator essencial da Revolução.
Porém não somos capazes de desenvolver os sistemas que permitam a esse homem render o que deve render, e as falhas em nossa mecânica fazem com que tendamos a convertê-lo em máquina, inclusive em coisas como o trabalho voluntário, transformando-o em mecanismo. Não se cumpra (como eu poderia dizer) do indivíduo para fora, para a sociedade que é a forma em que o trabalho rende seu fruto. (...)
Mas há certa preguiça mental em se aprofundar no problema, saber o que estamos fazendo e tratar de encontrar seu porquê. Há excessiva disciplina em seguir a linha, faltando uma disciplina consciente para buscar os porquês; é preciso estudar todos esses temas da construção do socialismo, dos problemas que coloca a construção do homem -é preciso estudá-los. (...)
Então, essa ligação de que você fala, da autogestão (financeira ou cálculo econômico) pela massa, é mentira. Na autogestão o que existe é uma valorização do homem pelo que ele rende, o que o capitalismo faz perfeitamente, perfeitissimamente, mas tampouco há uma ligação entre a massa e o dirigente, nenhuma. (...) Bom, quando nós começamos a nos colocar estas coisas -não sei se ainda há algum sobrevivente daquela época. Porque diziam: "Estão revisando", "isto é preciso perguntar ao partido", "porque isto está feio". Foi aí que se começou a colocar, claro, foi uma coisa violenta. A Bíblia, que é o "Manual" (da Academia de Ciências da URSS), porque desgraçadamente a Bíblia não é "O Capital" aqui, mas sim o "Manual" (...).
A única coisa em que eu creio é que nós temos que ter a suficiente capacidade de destruir todas as opiniões contrárias baseados em argumentos ou, se não, deixar que as opiniões se expressem. Opinião que temos de destruir com pancada é opinião que tem vantagem sobre nós. Não é possível destruir as opiniões na porrada, e é isso precisamente o que mata todo o desenvolvimento livre da inteligência (...).
Nós somos demasiado ignorantes individualmente, cada um de nós, para podermos elaborar toda uma teoria sólida. E, além disso, em geral as pessoas inteligentes e sábias tampouco elaboram teorias sólidas, menos ainda nestes momentos do mundo. Então, é preciso se ajudar, vocês deveriam se ajudar mais, deveriam pensar, colaborar, ler todas as coisas fundamentais, todas as que estejam ao alcance de todos.
Frente à concepção do plano como uma decisão econômica das massas, conscientes de seu povo, elas se comportam como um placebo, em que os mecanismos econômicos decidem o seu sucesso. É mecanicista, antimarxista. As massas devem ter a possibilidade de dirigir seus destinos, resolver quanto vai para a acumulação e quanto para o consumo, a técnica econômica deve operar com estas cifras e a consciência das massas assegurar o seu cumprimento.
O Estado atua sobre o indivíduo que não cumpre seu dever de classe, punindo-o ou premiando-o conforme o caso; estes são fatores educativos que contribuirão para a transformação do homem, como parte do grande sistema educacional do socialismo. É o dever social do indivíduo que o obriga a atuar na produção, não seu estômago. A isso deve tender a educação.
O interesse pessoal dever ser reflexo do interesse social; basear-se naquele para mobilizar a produção é retroceder diante das dificuldades, dar asas à ideologia capitalista. É no momento crucial da URSS, saindo de uma guerra civil longa e custosa, quando Lenin, angustiado diante do quadro geral, retrocede em suas concepções teóricas, que começa um longo processo de hibridização, culminando com as mudanças atuais na estrutura da direção econômica.
Tudo parte da concepção errônea de querer construir o socialismo com elementos do capitalismo, sem mudar-lhe realmente a significação. Assim se chega a um sistema híbrido, que leva a um beco sem saída, dificilmente perceptível, o que obriga a novas concessões dos mecanismos econômicos.
Sabe-se há muito tempo que o ser social determina a consciência e se conhece o papel da superestrutura; agora assistimos a um fenômeno interessante, que não pretendemos ter descoberto, mas sobre cuja importância tratamos de aprofundar: a inter-relação da estrutura com a superestrutura. Nossa tese é que as mudanças produzidas com a NEP calaram tão fundo na vida da URSS que marcaram com seu sinal toda essa etapa. E seus resultados são desalentadores: a superestrutura capitalista foi influenciando de maneira cada vez mais marcada as relações de produção, e os conflitos provocados pela hibridização que significou a NEP se estão resolvendo a favor da superestrutura; está havendo um retorno ao capitalismo.


Trecho de texto a ser publicado no nš 5 da revista "praga", a sair nesta semana.



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