São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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O ogro e o economista


Novela de Marcelo Coelho faz caricatura da classe média alta do Brasil da globalização


JOSÉ PAULO PAES
especial para a Folha

Assim como se fala em literatura de alcova, pode-se falar em literatura de sala de jantar. Pois tanto quanto aquela, também esta tem ilustres precedentes históricos. Em "Um Banquete", a delicada carne do amor é destrinchada pela faca e o garfo da dialética socrática para saciar a fome do espírito, já que ao idealismo de Platão interessava pouco a fome do corpo. A qual, em compensação, encontra pasto farto na ceia de Trimálquio do "Satyricon", episódio em cuja pintura o realismo de Petrônio não teme ir às raias de uma asquerosidade que a câmera de Fellini esmerou-se em captar sem rebuços.
"Jantando com Melvin", a segunda obra de ficção de Marcelo Coelho, se inscreve desde o título na tradição da literatura de sala de jantar, e não será despropositado discernir traços fantasmáticos desses dois antecessores clássicos por sob a ostensiva modernidade -ou pós-modernidade, caso prefiram, e se é que isso existe.
De raiz socrática, ainda que fortemente condimentada com a pimenta da irreverência brasileira, se inculca a ironia que perpassa a novela de Marcelo Coelho de começo a fim -ou do aperitivo à sobremesa, como conviria dizer em respeito ao seu nume culinário. O desbragamento realista de Petrônio tampouco deixa de estar presente em palimpsesto na fidelidade com que o novelista se compraz em descrever o colossal apetite de Mercedes, mulher de Melvin, e a grosseria de sua fala pontilhada de "mierdas" e "carajos". Aliás, a corpulência ciclóptica do casal Melvin, tanto quanto o seu apetite pantagruélico, remetem, num outro palimpsesto, ao gigantismo com que Rabelais levou avante a lição petroniana.
Estruturalmente, o texto de Marcelo Coelho é novela no melhor sentido da palavra, qual seja o de estar bem mais perto do romance que do conto. Um único episódio -dois casais convidados a jantar em casa de um terceiro casal- é quanto basta ao novelista para desenvolver a narrativa e dar aos protagonistas consistência ficcional. Pela ordem de importância, são eles o regente e compositor norte-americano Melvin Bronstein e sua esposa mexicana Mercedes, vindos ao Brasil para aqui desenvolver um projeto pedagógico, e o economista Paulini, em vésperas de viajar para Boston a serviço do banco de que é vice-presidente. Tem igualmente estatuto de protagonista o próprio narrador, Maurício, um advogado dublê de escritor por meio de quem, em primeira pessoa, vamos tendo notícia do curso do jantar e da personalidade dos convivas.
Como a caracterização que deles faz o novelista está mais para a caricatura do que para o retrato propriamente dito, "Jantando com Melvin" se revela uma novela humorística de costumes. Os costumes em pauta são os da classe média abonada do Brasil globalizante de nossos dias. As referências do narrador e demais personagens a Ibiúna, topônimo ligado de perto ao atual presidente da República, enquadram no presente a ação ficcional -se é que se pode falar em ação numa novela imobilista do tipo de "Jantando com Melvin".
Todavia, esse imobilismo nada tem de monótono graças ao humor sempre apropositado que dá agilidade e desenvoltura à narração. Não que os personagens da novela sejam intrinsecamente humorísticos: humorística é a visão do narrador. Trata-se, pois, para usar a conceituação de Fischer citada por Freud no seu clássico estudo sobre o chiste, de um humorismo antes de observação que de situação. Como dessa observação só podemos ter notícia por meio da escrita, segue-se que o humor de "Jantando com Melvin" é um humor preponderantemente de linguagem.
Ele se ostenta de imediato na graça das metáforas: o anfitrião do jantar não é dos que "esticam o tempo à mesa como se o tempo fosse um intestino de camelo, interminável"; a certa altura, o narrador-conviva pergunta algo à esposa "com a paciência de um escrevente de delegacia"; a mente do economista Paulini lhe parece uma "tela de agenda eletrônica. Imprimir. Formatar. Salvar. Exibir"; é com uma "presteza de esquilo ameaçado" que a anfitriã serve uma fatia de "charlotte a Mercedes".
Aliás, o apetite e a corpulência da esposa de Melvin desencadeiam, ao longo da novela, uma enfiada de hipérboles rabelaisianas. Ela é "uma usina de processamento de galinhas d'angola"; a sua "bocarra capaz de engolir sombreros como se fossem batatinhas fritas" se abre "com um esgar no qual se intuíam alguns fiapos de galinha, como na frente de um trem às vezes ficam manchas de sangue ou pedaços de um atropelamento".
Outro expediente retórico que responde por alguns dos melhores momentos humorísticos de "Jantando com Melvin" é o que se poderia chamar de sinédoque prolongada. Para dizê-lo menos pedantemente: uma palavra ou referência ocasional suscita uma série de associações que lhe ampliam, de maneira extravagante e cômica, o sentido próprio. Um exemplo são os tomates secos servidos no começo do jantar, pouco antes do creme de ovas de tainha. Na mente do narrador, os dois pratos se articulam com as peculiaridades da vida conjugal de Paulini e sua mulher, Regina. Enquanto toma o creme, Regina supostamente está pensando "na quantidade de tainhazinhas que poderiam ter saído dali, felizes, choramingantes, cuidadas pela mamãe, e em vez disso estavam cozidas na panela. Foi aí que pensei, ela não pode ter filhos, tem um problema no útero ou no ovário, a fisiologia desses organismos é surpreendentemente complexa, por isso chora e vai para Boston; e por isso Paulini não come tomates secos, farto de frequentar toda noite aquela vaginazinha murcha e sem azeite. As coisas começavam a fazer sentido".
Na verdade, todas as coisas aparentemente insignificantes que pontilham a narrativa de "Jantando com Melvin" só começam a fazer sentido depois de vistas pelas lentes deformantes da observação de Maurício, o narrador. Talvez se dissesse melhor "lentes formantes", já que só a partir delas é que adquirem, tais coisas, a graça capaz de impô-las à atenção do leitor. Sinédoques prolongadas que certamente o irão divertir são, entre outras, o discurso sobre os guardanapinhos de papel (págs. 19 a 22) ou a longa sequência de alusões a naves espaciais, disparada pela metáfora de Mercedes a olhar para o alto como um "crocodilo metido num sarongue" acompanhando a trajetória de um foguete em Cabo Canaveral (pág. 80 e seguintes). Ou ainda as alusões caricaturais a conceitos e procedimentos econômicos repetidamente feitas para caracterizar gestos e idéias de Paulini.
Restaria salientar um terceiro recurso caricatural usado com frequência pelo narrador de "Jantando com Melvin". Ao seu uso talvez não seja de todo estranho o modelo da dúvida socrática que tempera de ironia e ambiguidade o texto fundador da literatura de sala de jantar referido no princípio destas considerações. Por falta de melhor termo, poder-se-ia chamar esse recurso de falso silogismo. Diferentemente dos silogismos autênticos, que tiram uma conclusão das premissas que enunciam, os de Maurício se limitam a propor premissas ou alternativas sem delas concluir coisa alguma. Nisso lembram de perto, caricaturalmente, os testes de múltipla escolha dos exames vestibulares.
O único acontecimento digno do nome, ocorrido durante o jantar, é um tiro de arma de fogo que soa "off stage", perto da casa. Em vez de ir ver do que se trata -encargo que ninguém se dispõe a assumir-, Maurício prefere imaginar consigo um leque de possibilidades numeradas de um a seis, todas centradas num possível crime amoroso em que estariam disparatadamente implicados ou um hipotético japonês de Ibiúna ou o vigia da rua ou alguns dos convidados. A própria novela termina com uma relação numerada dos fatos ocorridos no ano que se seguiu ao memorável jantar.
Além de separações e reconciliações dos casais nele reunidos, a relação inclui uma notícia de jornal acerca de casos de pedofilia e canibalismo cometidos, em Vitória da Conquista, por dirigentes de uma rede internacional de pedofilia. Para Maurício, a notícia confirma suas anteriores suspeitas de que o projeto de Melvin e sua esposa -irem até o sertão da Bahia ajudar num projeto de educação musical das crianças sem-terra- não passava de camuflagem dos seus propósitos pedófilo-canibalescos.
Quem sabe não busque esta exacerbação bufa do humor de "Jantando com Melvin" dar figuração aos retorcidos meandros do inconsciente de uma classe média cujo bovarismo, não obstante sonhar com a utopia de um Brasil capital Miami, teme os dentes aguçados do lobo mau da globalização. Ou do seu ogro, para citar outro tipo de assombração infantil a que Melvin é expressamente comparado.
Nesta ordem de idéias, não deixa de ser significativo que o segundo protagonista da novela seja um economista: a economia é, como se sabe, a teologia da era da globalização. Mais significativa ainda é a interpretação que o novelista dá ao gesto de Paulini de recusar um segundo pedaço de "charlotte": "Era como se dissesse: "esqueçam o que eu disse', combinando esta frase com outra: "Façam como eu digo mas não façam como eu faço', ou seja -"comam, porque eu teoricamente acho certo, mas eu não como porque na prática não acho certo'±".
Se esta citação não chega a situar "Jantando com Melvin" nos domínios da ficção "à clef", basta no entanto para mostrar que, sob a aparente frivolidade pós-moderna da novela de Marcelo Coelho, corre um fio de ironia cuja virulência crítica nada tem de frívolo. Tampouco tem o que quer que seja de grosseiro. É com humor finório que, como quem não quer nada, ela transita da sala de jantar ao gabinete do poder, onde outros tipos de iguarias costumam ser servidos a gente, da casa ou de fora, ciente desde sempre de que, na prática, a teoria é outra.


José Paulo Paes é ensaísta, poeta e tradutor, autor, entre outros, de "A Meu Esmo" (Noa Noa), "De Ontem para Hoje" (Boitempo) e "Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios" (Topbooks).

A OBRA
Jantando com Melvin - Marcelo Coelho. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 021/502-9092). 164 págs. R$ 15,00.



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