São Paulo, domingo, 24 de maio de 1998

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PONTO DE FUGA
Berg e Chéreau

JORGE COLI
especial para a Folha, em Paris

Em 1925, na sua estréia, "Wozzeck", de Alban Berg, "foi um dos maiores sucessos que uma ópera já conheceu", como testemunhou Schoenberg. De fato, naqueles anos de 1920, somente "Turandot", de Puccini, obteve um triunfo tão estrondoso. Isto sempre embaraçou Adorno, descrente de que um público mais vasto pudesse reconhecer, de imediato, uma obra realmente elevada. Mas é que a genialidade de "Wozzeck" não é feita apenas de música "pura": ela é substancialmente teatral e age sobre os espectadores como uma armadilha inevitável. Em Paris, no teatro do Chatelet, Patrice Chéreau concebe uma montagem de "Wozzeck" e concentra-se na direção dos atores, obtendo o milagre de tornar cantores de ópera ágeis, com domínio pleno do corpo e dos gestos. Ele os faz correrem e agitarem-se diante dos cenários poéticos e simplificados de Richard Peduzzi. A filiação de "Wozzeck" a Strindberg sobressai por meio da despojada dramaturgia que sublinha, como nunca, o conflito dos personagens: a possível dimensão simbólica ou emblemática atenua-se e cresce a espessura humana. Os matizes da Staatkapelle de Berlim, sob a direção de Baremboim, criam sonoridades coerentes com a humanização do drama. Estupendo espetáculo: mais uma vez, "Wozzeck" deixa o público em delírio.

SEXO - "Lulu", a outra ópera de Berg, é também apresentada em Paris em nova produção da Ópera da Bastilha: montagem bastante neutra, mas música que flui, cristalina. A protagonista dos episódios complicadíssimos inventados por Wedekind adquiriu, no cinema, o rosto definitivo de Louise Brooks, dirigida por Pabst. A "Lulu" de Berg é, talvez, menos carnal, numa obra concebida como uma espécie de "divertissement" que se metamorfoseia em tensão e drama, sem nunca perder a leveza. A heroína não possui sentimentos e arma tramóias, mas a música de Berg se preocupa em acentuar a força de um erotismo involuntário que a ultrapassa e que é, ele, o agente dos males. "Lulu" afirma um desejo que se exacerba diante do prazer contrariado por horrores morais ou físicos, culminando, no fim, com o gesto assassino de Jack, o estripador, em que a moral doentia encontra seu justiceiro ao mesmo tempo em que permite o gozo.

DIAFRAGMA - "A fotografia não é arte." Esta frase é de Man Ray, a quem o Centro Georges Pompidou consagra exaustiva mostra em Paris, trazendo tiragens originais, contatos anotados e estudos preparatórios. Man Ray não buscava nunca o instantâneo do efêmero. Construía poses e objetos, manipulando negativos e imagens. Com ele, o surrealismo visual chegou a um apogeu. Mesmo suas obras ditas "comerciais" flutuam em mistério e se abrem para o infinito.

LA BELLA MANIERA - Francesco Salviati é um esquecido artista florentino do Renascimento tardio, que o Museu do Louvre revela em exposição. Pintura preciosa e secreta, em que Cristo pode desnudar-se em pose de bailarino: arte maneirista, mas contida, tentando atenuar perversões latentes que afloram de qualquer jeito.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



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